quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Memórias do Cárcere - Viagens 12

Memórias do Cárcere

Graciliano Ramos



Volume I 

 Editora Record 

PRIMEIRA PARTE 

VIAGENS 


12


PELA manhã, de volta do banheiro, atravessando um corredor, avistamos o comandante em companhia de um homem alto, magro, sério. Enviamos-lhe um cumprimento, e ele nos deteve, nos apresentou: 

– General, estes senhores... 

Finda a apresentação, o homem alto pregou-me um olho irritado:

– Comunista, hem? Atrapalhei-me e respondi: – Não. 

– Não? Comunista confesso. 

– De forma nenhuma. Não confessei nada. 

Espiou-me um instante, carrancudo, manifestou-se: 

– Eu queria que o governo me desse permissão para mandar fuzilá-lo. 

.– Oh! General! murmurei. Pois não estou preso?

E calei-me prudente: o diabo da frase podia ser interpretada como um desafio, que eu não estava em condições de lançar. Felizmente o homem não ligou importância a ela, deu-me as costas, voltou-se para o meu companheiro e interrogou-o com dureza. Capitão Mata aprumou-se, declarou-se vítima de calúnias e perseguições, como tinha por hábito fazer.
De pijama e com a toalha ao ombro, a posição de sentido se tornava cômica.

– Ainda hei de provar a v. ex.ª que sou um bom patriota. 

Estava ali um período conveniente, dos que devemos emitir num quartel. Não me aventuraria a semelhante declaração. Poderia julgar-me um bom patriota? Realmente nem me considerava patriota, seria desonestidade falar daquela maneira. Mas determinadas palavras acalmam determinados espíritos, sem que seja necessário demonstrar a veracidade delas. Capitão Mata nada referia como indício da virtude que se imputava: oferecia exibir provas no futuro. E isso bastou. O general, sem desenrugar a sobrancelha, apreciou devidamente a fala e a postura do acusado. Gastou mais algumas energias e afastou-se, digno, seguido pelo comandante. Foi pouco mais ou menos o que se deu, suponho. Tiramo-nos dali, entramos na gaiola, vagarosos e encabulados. Eu, por mim, ia com as orelhas pegando fogo.  

– Puxa! 

Capitão Mata, abalado, afirmava que me havia comportado lastimosamente. Ora essa! E porquê? Não era aquele o modo próprio de me dirigir a um general. De fato eu ignorava tudo nessa matéria, mas convencia-me de não haver praticado nenhuma inconsideração. Afirmara não ser comunista – e dissera a verdade estava fora do Partido. Se estivesse dentro, não iria confessar atividades ilegais, claro, mas não estava Quanto ao mais, apenas aquela referência a um fuzilamento improvável. Ninguém tinha intenção de fuzilar-me, pois isto não representava nenhuma vantagem. Eu era bem insignificante e a minha morte passaria despercebida, não serviria de exemplo. E se me quisessem elevar depois de finado, isto seria talvez prejudicial à reação: dar-me-iam papel de mártir, emprestar-me-iam qualidades que nunca tive, úteis à propaganda, embrulhar-me-iam em folhetos clandestinos, mudar-me-iam em figura notável. Não, ninguém tinha interesse em fuzilar-me. Além disso quando um vivente quer extinguir outro, não lhe vai revelar este desejo: extingue-o, se pode. Recurso ingênuo ameaçar as pessoas à toa, sem saber se elas se apavoram. No Brasil não havíamos atingido a sangueira pública. Até nos países inteiramente fascistas ela exigia aparência de legalidade, ainda se receava a opinião pública. Entre nós execuções de aparato eram inexequíveis: a covardia oficiai restringia-se a espancar, torturar prisioneiros, e de quando em quando se anunciavam suicídios misteriosos. Isso se aplicava a sujeitos mais ou menos comprometidos no barulho de 1935. Mas que diabo tinha eu com ele? Certamente não me pregariam agulhas nas unhas nem me fariam saltar de uma janela de andar alto. Quanto a mim achava-me tranquilo. E não me recordava de haver piado uma sílaba que ofendesse a autoridade.
O meu companheiro julgava a minha observação a respeito do fuzilamento uma leviandade. Imaginativo, adicionava-lhe vocábulos não proferidos, dava-lhe inflexões que lhe proporcionavam sentido temerário. Divagava: seguramente aquilo teria consequências desagradáveis. Tolice. Decerto eu desconhecia a maneira de tratar com a farda: não deviam esperar que me apresentasse de mão na testa, espinhaço vertical, as pernas tesas. E se a minha última resposta encerrava alguma impertinência, isto pouco significava: o cidadão importante não lhe dera atenção: desviara-se, voltara-me as costas, fora ocupar-se em negócio diferente. Naquele jogo infantil de se mostrar papão, enferrujando a cara, engrossando a voz, talvez me considerasse mais ou menos fuzilado. Provavelmente se contentaria com isso. Tinha casos de vulto para resolver, e naquele momento as nossas fisionomias lhe desbotavam na memória. Não corríamos risco, era o que eu supunha. E não corremos, durante alguns dias tudo andou sem novidade.  
Voltamos à rotina, comemos a bóia de tabuleiro, recebemos as visitas do comandante, ouvimos as longas falas do capitão Lobo, tentamos encher as enfadonhas horas ocas amolando-nos reciprocamente. Lá embaixo, junto aos dois canhões, uma fila de soldados, de roupas leves, marchava; um tenente risonho, de apito, desenvolvia-se em gestos largos. No outro lado, no 
pátio interno, rapazes se esforçavam por jogar uma bola no cesto preso ao muro. E defronte dos banheiros, longe, esfumadas, abriam-se as goelas escuras das baias. A corneta soava, queria saber quantos dentes tem sagui na boca, e o amigo capitão Mata já não se alvoroçava com a pergunta. Findaram os sustos: agora não havia razão para temer que, entre coisas dessa espécie, ela anunciasse a presença de um general. A sentinela nos observava de esguelha, soltava remoques engraçados e, na ausência de testemunhas, cavaqueava num sussurro. 0 faxina vinha pedir-nos a lista de encomendas A mala do capitão se abria, a agulha e o carretel de linha vinham à luz, um minuto se consumia na tarefa de repregar o botão solto de uma cueca. O meu indicador esquerdo supurava, coberto de iodo, pouco a pouco a unha se desprendia. Os três volumes. lidos a custo, diluíam-se no ramerrão do serviço, nas vozes de comando, nas estridências da meia-volta, do rancho, do silêncio. 
Escrevi a lápis uma carta a minha mulher. renovando o pedido que lhe havia feito de enviar um conto a Buenos Aires. Permitiria o correio, obediente à censura. a exportação dessas letras? Era uma história repisada, com voltas infinitas em redor do mesmo ponto, literatura de peru. Como arte e como política valia bem pouco, mas talvez enxergassem nela dinamite. A crítica policial era tão estúpida que julgava a produção artística não pelo conteúdo, mas pelo nome do autor. Eu vivera numa sombra razoável, quase anônimo: dois livros de fôlego curto haviam despertado fraco interesse e alguma condescendência desdenhosa. Era um rabiscador provinciano detestado na província, ignorado na metrópole. Iriam analisar-me os romances, condená-los, queimá-los, chamar para eles a atenção da massa? Ou lançar-me-iam, tacitamente culpado, no meio de criminosos, indivíduos que sempre desejei conhecer de perto? O mais provável era jogarem-me entre rebeldes de Natal, do 3.° Regimento, da Escola de Aviação De qualquer jeito me apresentariam sociedade nova, me proporcionariam elementos para redigir qualquer coisa menos inútil que os dois volumes chochos encalhados nas prateleiras dos editores. Essa afirmação presunçosa esbarrava com as dificuldades imensas que me surgiam quando buscava utilizar o papel trazido pelo faxina. Sempre compusera lentamente: sucedia-me ficar diante da folha muitas horas, sem conseguir desvanecer a treva mental, buscando em vão agarrar algumas ideias, limpá-las, vesti-las; agora tudo piorava, findara até esse desejo de torturar-me para arrancar do interior nebuloso meia dúzia de linhas. sentia-me indiferente e murcho, incapaz de vencer uma preguiça enorme subitamente aparecida, a considerar baldos todos os esforços.
A minha decisão de traçar um diário encolhia-se, bambeava, sem nenhum estímulo fora ou dentro. Os fatos, repisados, banalizavam-se. Apenas quatro ou cinco sobressaíam, mas, ao dar-lhes forma, vi-os reduzidos, insignificantes. Difícil enxertar neles alguma circunstância que lhes desse relevo e brilho: saíam naturalmente apagados, chatos – e irremediáveis. Prosa de noticiarista vagabundo. Tropeços horríveis para alinhavar um simples comentário. Ora comentário! Se até a narração e o diálogo emperravam, certo não me iria meter em funduras. Havia chumbo na minha cabeça. E eu imaginara fabricar uma novela na cadeia, devagar, com método, página hoje, página amanhã. Lembrava-me da opinião lida anos antes sobre a arte dos criminosos, arte ruim. E vinham-me dúvidas. Seriam essas criaturas naturalmente insensíveis, brutas, lerdas? Talvez o cárcere lhes roubasse as energias, embotasse a inteligência e a sensibilidade.

continua página 54....
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Graciliano Ramos de Oliveira (Quebrangulo, 27 de outubro de 1892 – Rio de Janeiro, 20 de março de 1953) foi um romancista, cronista, contista, jornalista, político e memorialista brasileiro do século XX, mais conhecido por sua obra Vidas Secas (1938).
Em setembro de 1915, motivado pela morte dos irmãos Otacília, Leonor e Clodoaldo e do sobrinho Heleno, vitimados pela epidemia de peste bubônica, volta para o Nordeste, fixando-se junto ao pai, que era comerciante em Palmeira dos Índios, Alagoas. Neste mesmo ano casou-se com Maria Augusta de Barros, que morreu em 1920, deixando-lhe quatro filhos.
Foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios em 1927, tomando posse no ano seguinte. Apoiado pelo governador do estado e impulsionado por ser um nome de fora da política, foi eleito em um pleito de uma candidatura só. Ficou no cargo por dois anos, renunciando a 10 de abril de 1930. Segundo uma das autodescrições, "Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas." Os relatórios da prefeitura que escreveu nesse período chamaram a atenção de Augusto Frederico Schmidt, editor carioca que o animou a publicar Caetés (1933).
Entre 1930 e 1936. viveu em Maceió, trabalhando como diretor da Imprensa Oficial, professor e diretor da Instrução Pública do estado. Em 1934, havia publicado São Bernardo, e quando se preparava para publicar o próximo livro, foi preso após a Intentona Comunista de 1935. Foi levado para o Rio de Janeiro e ficou preso por onze meses, sendo liberado sem ter sido acusado de nada ou julgado. Em Memórias do Cárcere recorda a prisão que sofrera seis anos antes.

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