sábado, 5 de novembro de 2022

A Hora da Estrela - Mas voltemos a hoje

Clarice Lispector

A Hora da Estrela


Mas voltemos a hoje. Porque, como se sabe, hoje é hoje. Não estão me entendendo e eu ouço escuro que estão rindo de mim em risos rápidos e ríspidos de velhos. E ouço passos cadenciados na rua. Tenho um arrepio de medo. Ainda bem que o que eu vou escrever já deve estar na certa de algum modo escrito em mim. Tenho é que me copiar com uma delicadeza de borboleta branca. Essa ideia de borboleta branca vem de que, se a moça vier a se casar, casar-se-á magra e leve, e, como virgem, de branco. Ou não se casará? O fato é que tenho nas minhas mãos um destino e no entanto não me sinto com o poder de livremente inventar: sigo uma oculta linha fatal. Sou obrigado a procurar uma verdade que me ultrapassa. Por que escrevo sobre uma jovem que nem pobreza enfeitada tem? Talvez porque nela haja um recolhimento e também porque na pobreza de corpo e espírito eu toco na santidade, eu que quero sentir o sopro do meu além. Para ser mais do que eu, pois tão pouco sou.

Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse sempre a novidade que é escrever, eu morreria simbolicamente todos os dias. Mas preparado estou para sair discretamente pela saída da porta dos fundos. Experimentei quase tudo, inclusive a paixão e o seu desespero. E agora só quereria ter o que eu tivesse sido e não fui.

Pareço conhecer nos menores detalhes essa nordestina, pois se vivo com ela. E com muito adivinhei a seu respeito, ela se me grudou na pele qual melado pegajoso ou lama negra. Quando eu era menino li a história de um velho que estava com medo de atravessar um rio. E foi quando apareceu um homem jovem que também queria passar para a outra margem. O velho aproveitou e disse:

– Me leva também? Eu bem montado nos teus ombros?

O moço consentiu e passada a travessia avisou-lhe:

– Já chegamos, agora pode descer.

Mas aí o velho respondeu muito sonso e sabido.

– Ah, essa não! É tão bom estar aqui montado como estou que nunca mais vou sair de você!

Pois a datilógrafa não quer sair dos meus ombros. Logo eu que constato que a pobreza é feia e promíscua. Por isso não sei se minha história vai ser – ser o quê? Não sei de nada, ainda não me animei a escrevê-la. Terá acontecimentos? Terá. Mas quais? Também não sei. Não estou tentando criar em vós uma expectativa aflita e voraz: é que realmente não sei o que me espera, tenho um personagem buliçoso nas mãos e que me escapa a cada instante querendo que eu o recupere.

Esqueci de dizer que tudo o que estou agora escrevendo é acompanhado pelo rufar enfático de um tambor batido por um soldado. No instante mesmo em que eu começar a história – de súbito cessará o tambor.

Vejo a nordestina se olhando ao espelho e – um rufar de tambor – no espelho aparece o meu rosto cansado e barbudo. Tanto nós nos inter trocamos. Não há dúvida que ela é uma pessoa física. E adianto um fato: trata-se de moça que nunca se viu nua porque tinha vergonha. Vergonha por pudor ou por ser feia? Pergunto-me também como é que eu vou cair de quatro em fatos e fatos. É que de repente o figurativo me fascinou: crio a ação humana e estremeço. Também quero o figurativo assim como um pintor que só pintasse cores abstratas quisesse mostrar que o fazia por gosto, e não por não saber desenhar. Para desenhar a moça tenho que me domar e para poder captar sua alma tenho que me alimentar frugalmente de frutas e beber vinho branco gelado pois faz calor neste cubículo onde me tranquei e de onde tenho a veleidade de querer ver o mundo. Também tive que me abster de sexo e de futebol. Sem falar que não entro em contato com ninguém. Voltarei algum dia à minha vida anterior? Duvido muito. Vejo agora que esqueci de dizer que por enquanto nada leio para não contaminar com luxos a simplicidade de minha linguagem. Pois como eu disse a palavra tem que se parecer com a palavra, instrumento meu. Ou não sou um escritor? Na verdade sou mais ator porque, com apenas um modo de pontuar, faço malabarismos de entonação, obrigo o respirar alheio a me acompanhar o texto.


continua pag 31...

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"Clarice Lispector deixou vários depoimentos sobre a sua produção literária. Em alguns, parecia se defender do estranhamento que causava em leitores e críticos.
Ela tinha consciência de sua diferença. Desde pequena, ao ver recusadas as histórias que mandava para um jornal de Recife, pressentia que era porque nenhuma “contava os fatos necessários a uma história”, nenhuma relatava um acontecimento. Sabia também, já adulta, que poderia tornar mais “atraente” o seu texto se usasse, “por exemplo, algumas das coisas que emolduram uma vida ou uma coisa ou romance ou um personagem”.
Entretanto, mesmo arriscando-se ao rótulo de escritora difícil, mesmo admitindo ter um público mais reduzido, ela não conseguiria abrir mão de seu traçado: “Tem gente que cose para fora, eu coso para dentro”. Ela se afastou dos “escritores que por opção e engajamento defendem valores morais, políticos e sociais, outros cuja literatura é dirigida ou planificada a fim de exaltar valores, geralmente impostos por poderes políticos, religiosos etc., muitas vezes alheios ao escritor”, em nome de uma outra forma de questionar a realidade e nela intervir, através da literatura." 
Clarisse Fukelman, Professora de Literatura Brasileira da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

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