Thomas Mann
A Montanha Mágica
Capítulo III
Satã faz propostas desonrosas
continuando...
Ao proferir essas palavras, lançou casualmente um olhar para a sala vizinha, onde viu
Mme. Chauchat pela frente, com os olhos oblíquos e as largas maçãs. “Que me recorda ela, meu
Deus, e a quem?”, pensou, mas apesar de todo o esforço, sua cabeça exausta foi incapaz de
encontrar a resposta.
– Naturalmente, não é fácil aclimatar-se aqui em cima – continuou. –– Mas isto era de prever. Se eu logo desistisse, só por sentir durante alguns dias um pouco de calor e de tonturas, teria vergonha de mim e me julgaria covarde. Isto será contrário a toda razão... Não! Diga o senhor mesmo...
De repente começou a falar com grande ênfase, acompanhando as palavras de vivos movimentos dos ombros. Parecia insistir com o italiano para que este retirasse formalmente a sugestão.
– Inclino-me diante da razão – respondeu Settembrini. – Inclino-me também diante da coragem. O que o senhor disse não soa mal. Seria difícil opor-lhe um argumento sólido. Além disso, já observei uns belíssimos casos de aclimatação. Houve, por exemplo, no ano passado, a Srta. Kneifer, Ottilie Kneifer, moça de boa família, filha de um alto funcionário do Estado. Esteve aqui cerca de um ano e meio e habituara-se de tal modo ao ambiente, que por coisa alguma quis ir embora quando a sua saúde ficou restabelecida por completo. (Ora, também isto acontece, há gente que fica boa aqui.) Bem, ela suplicou ao Dr. Behrens, fervorosamente, que lhe permitisse ficar. Não queria nem podia voltar para a sua terra. Aqui se sentia em casa, aqui estava feliz. Mas, como houvesse muitos pedidos e se precisasse do quarto dela, seus rogos foram em vão, e insistiram em dar-lhe alta como curada. E Ottilie começou a ter muita febre. Sua curva subiu consideravelmente. Contudo, foi desmascarada quando lhe substituíram o termômetro por uma “irmã muda”. O senhor ainda não sabe o que isso significa? É um termômetro sem escala que o médico controla pessoalmente, medindo a coluna de mercúrio e inscrevendo a temperatura na papeleta. Ottilie tinha 36,9; sim senhor, não tinha febre. Então tomou um banho no lago; era em princípios de maio, e de noite havia temperaturas abaixo de zero. A água do lago não estava propriamente gelada, mas ainda muitíssimo fria. Ottilie passo bom tempo na água, para contrair esta ou aquela doença. Mas, e o resultado? Continuou perfeitamente boa. Despediu-se desolada, inacessível ao consolo dos pais. “Que vou fazer lá embaixo?” gritou uma e outra vez. “Meu lar é aqui!” Não sei que fim ela levou... Mas tenho a impressão de que o senhor não me presta atenção, meu caro engenheiro. Parece que lhe custa manter-se de pé, se não me engano. Tenente, aqui lhe entrego seu primo – disse voltando-se para Joachim, que nesse instante se aproximava. – Ponhao na cama. Reúne em si razão e coragem, mas esta noite anda meio débil.
– Não, senhor, entendi tudo, realmente – afirmou Hans Castorp – A “irmã muda” é apenas uma coluna de mercúrio, totalmente sem escala. Está vendo que compreendi muito bem. - mesmo assim entrou no elevador, com Joachim e mais alguns outros pensionistas. Terminara a reunião e o pessoal dispersava-se em busca das sacadas ou dos alpendres para o repouso noturno. Hans Castorp acompanhou Joachim até o quarto. O chão do corredor, com a passadeira de palha de coqueiro, executava sob os seus pés movimentos suavemente ondulantes, mas que não o incomodavam. Sentou-se na grande poltrona de forro florido do quarto de Joachim – outra igual achava-se no seu próprio aposento e acendeu um Maria Mancini. Achou-o sabor de cola, de carvão e outras coisas, menos o que deveria Apesar disso, continuou a fumá-lo, enquanto observava como Joachim se arrumava para o repouso, vestindo o fumoir e, por cima, um velho sobretudo, para depois ir à sacada, com a lâmpada do criado mudo e o manual de russo na mão. Lá fora, o primo acendeu a lâmpada e, com o termômetro na boca, deitou-se na espreguiçadeira, onde com surpreendente habilidade começou a envolver-se em dois grandes cobertores de lã de camelo, que se achavam estendidos na cadeira. Hans Castorp contemplou com sincera admiração aqueles movimentos destros. Joachim jogou os cobertores, um após outro, por cima de si, primeiro pela esquerda, cobrindo-se até a axila, depois por baixo, sobre os pés, e por fim pela direita, até formar uma espécie de pacote perfeitamente simétrico e liso, do qual saíam apenas a cabeça, os ombros e os braços.
– É formidável como você faz isso! – disse Hans Castorp.
É questão de prática – respondeu Joachim, falando com o termômetro preso entre os dentes. – Você também vai aprender. Amanhã, sem falta, teremos de comprar alguns cobertores para você. Serão úteis também lá embaixo, e aqui são indispensáveis, sobretudo para você que não tem saco de peles.
– Mas não tenciono deitar-me na sacada de noite – declarou Hans Castorp. – Não farei isto, posso garantir. Acho que me sentiria ridículo. Tudo tem limites, afinal. Além disso me parece preciso acentuar, num ou noutro ponto, que estou apenas de visita aqui em cima. Vou ficar ainda alguns instantes com você e fumar um charuto, como de costume. Ele tem um sabor infame, mas eu sei que é de boa qualidade; é o que me basta por enquanto. Daqui a pouco serão nove horas. Infelizmente faltam ainda alguns minutos. Mas, nove e meia já será uma hora mais ou menos normal para a gente se recolher.
De repente sentiu um calafrio, primeiro um, e logo depois diversos outros, em rápida sequência. Hans Castorp levantou-se de um pulo e correu para o termômetro suspenso na parede, como se se tratasse de apanhá-lo em flagrante delito. Segundo a escala de Réaumur havia nove graus no quarto. Hans Castorp apalpou o radiador e verificou que estava frio e apagado. Resmungou algumas palavras confusas, significando aproximadamente que, embora estivessem em agosto, era uma vergonha não se acender a calefação; pois o que importava não era o nome do mês, mas a temperatura reinante, e esta era de um frio de rachar. Mas nas suas faces continuava o referido ardor. Hans Castorp voltou a sentar-se. Pôs-se novamente de pé, e em voz baixa pediu licença para tomar o cobertor da cama de Joachim. Instalado na poltrona, cobriu-se com ele, dos quadris para baixo. Assim permaneceu, ao mesmo tempo ardendo e tiritando, a torturar-se com o charuto de gosto asqueroso. Invadiu-o uma intensa sensação de miséria, como se nunca na vida ele se tivesse sentido tão mal quanto nesse momento. – Que horror! – murmurou. Em seguida, porém, achou-se de repente tomado por uma estranha e exuberante sensação de alegria e esperança, e depois de tê-la experimentado, ficou-se esperando que ela se reproduzisse. Mas isto não se deu, e o que lhe restava então era apenas a miséria. Finalmente se levantou, atirou o cobertor de Joachim sobre a cama, cochichou, de boca crispada, qualquer coisa parecida com “Boa noite!” e “Veja se não morre de frio!” e “Trate de me buscar na hora do café!”. Depois, cambaleando, atravessou o corredor, em busca do seu quarto.
Ao despir-se, começou a cantarolar, mas não de alegria. Mecanicamente, sem prestar atenção, desempenhou-se das pequenas funções e obrigações da higiene noturna de um homem civilizado; pingo copo umas gotas de um dentifrício vermelho, contido num frasco de viagem, e gargarejou discretamente; lavou as mãos com um sabonete de violeta, suave e de excelente qualidade, e pôs a camisola de cambraia, em cujo bolsinho se viam bordadas as iniciais H.C. Feito isso, meteu-se na cama e apagou a luz, enquanto deixava cair a cabeça quente e agitada sobre o travesseiro de agonia da americana.
Esperara com a mais absoluta certeza mergulhar sem demora no sono, mas verificou que se enganara, e as mesmas pálpebras que pouco antes tivera tanto trabalho de manter abertas, não queriam agora permanecer fechadas e abriam-se, latejando irrequietamente, logo tentava cerrá-las. “Ainda não é a hora em que costumo dormir”, disse de si para si. “Além disso passei muito tempo deitado durante o dia”. Lá fora, alguém parecia bater um tapete – coisa pouco verossímil, e que em realidade não se dava; evidenciou-se que eram as palpitações do seu próprio coração, que Hans Castorp ouvia fora de si, ao longe, exatamente como se um tapete fosse tratado com um batedor de junco.
O quarto não estava completamente escuro. Pela porta aberta da sacada entrava a luz das lampadazinhas acesas nos compartimentos de Joachim e do casal da mesa dos “russos ordinários”. E enquanto Hans Castorp estava assim de costas, com as pálpebras a piscar, sentiu renovar-se nele uma impressão toda especial que recebera durante o dia, uma observação que logo procurara esquecer, por terror e delicadeza. Tornou a ver aquela expressão que assumira o rosto de Joachim quando se falava de Marusja e das suas qualidades físicas – essa contração particularmente dolorosa da boca acompanhada do palor como que salpicado de manchas das faces tostadas pelo sol. Hans Castorp compreendia o que aquilo significava; compreendia-o e penetrava-o de uma forma nova, tão profunda e tão íntima, que o batedor de junco, lá fora, redobrava a velocidade e o vigor dos seus golpes e quase que abafava os sons de uma serenata que vinham de Davos-Platz. Pois havia outro concerto naquele hotel. Uma melodia simétrica e barata de opereta ressoava através das trevas, e Hans Castorp pôs-se a assobiá-la num cicio – pode-se muito bem assobiar num cicio –, enquanto marcava o ritmo com os pés frios debaixo do acolchoado de penas.
Está visto que este não é um método apropriado para adormecer, e ademais, Hans Castorp já não tinha vontade alguma de fazê-lo. Desde que compreendera, de uma forma tão inédita e viva, por que Joachim empalidecera, o mundo parecia-lhe renovado, e aquela sensação de exuberante alegria e esperança tornou a comovê-lo no seu íntimo. De resto, aguardava mais alguma coisa, sem saber claramente o que era. Mas, quando notou que os vizinhos da direita e da esquerda haviam terminado o repouso e entravam nos quartos, para trocar a posição horizontal na sacada pela mesma posição no interior do aposento, expressou de si para si a convicção de que o casal bárbaro, dessa vez, observaria a trégua. “Posso dormir tranquilamente”, pensou. “Esta noite, eles vão se comportar bem, disso tenho certeza.” No entanto, tal não aconteceu. O próprio Hans Castorp não acreditara seriamente nessa possibilidade e, para dizer a verdade, teria ficado grandemente surpreendido se não tivessem aberto as hostilidades. Mesmo assim soltou grande número de exclamações silenciosas do mais veemente espanto, diante dos ruídos que ouvia. – É incrível! – gritou, sem voz. – Que coisa impressionante! Quem teria pensado que isto fosse possível! – E, de quando em vez, voltou a acompanhar, ciciando, a melodia de opereta barata, que obstinadamente chegava até ele.
Depois veio o sono. Mas, junto com ele, surgiram fantásticas imagens de sonhos, mais fantásticas ainda do que as da primeira noite no meio das quais diversas vezes se sobressaltou, assustado ou entregue à perseguição de uma idéia confusa. Sonhava que via o Dr. Behrens passear pelas alamedas do jardim, caminhando de joelhos dobrados com os braços pendendo, rijos, para a frente, e acertando os passos longos, como que monótonos, ao ritmo de uma marcha que ressoava ao longe. Quando o conselheiro áulico estacou diante de Hans Castorp, usava óculos com grossas lentes redondas e dizia coisas sem nexo: “Paisano, naturalmente”, observou, e sem pedir licença abaixou a pálpebra de Hans Castorp com os dedos indicador e médio da mão enorme. “Um paisano decente, como notei logo. Mas não lhe falta talento, absolutamente não lhe falta talento para uma intensa combustão geral. Não se incomodaria em gastar conosco alguns anos, alguns anos alegres de serviço aqui em cima? Pois então, cavalheiros, e agora um passeio, vamos!”, exclamou, metade na boca os dois índices enormes e dando assobios tão estranhamente melodiosos, que de diversos lados e em miniatura surgiram, voando através dos ares, a professora e Miss Robinson, para lhe pousarem nos ombros, à direita e à esquerda, assim como na sala de refeições ficavam sentadas ao lado de Hans Castorp. E assim o médico se foi, a passo saltitante, esfregado um guardanapo por trás das lentes dos óculos, a fim de enxugar olhos e secar não se sabia o quê, suor ou lágrimas.
Depois, Hans Castorp sonhou que se encontrava no pátio do ginásio, onde durante tantos anos passara os intervalos entre as aulas, e que estava a ponto de pedir emprestado um lápis a Mme... Chauchat, que igualmente estava presente. Ela deu-lhe uma lapiseira de prata, que continha um lápis pintado de vermelho, gasto até a metade, e recomendou a Hans Castorp, numa voz agradavelmente velada, que devolvesse sem falta depois da aula. E quando o olhou, com seus olhos rasgados, de um azul esverdeado, por cima das maçãs salientes, ele fez um esforço violento para se desprender do sonho; pois agora já sabia e queria gravar na memória que acontecimento e que pessoa ela lhe recordava com tamanha intensidade. A toda pressa, pôs-se a guardar essa percepção num lugar seguro, já que sentia como o sono e o sonho novamente se apoderavam dele. Com efeito, viu-se logo na contingência de procurar um refúgio para se abrigar contra a perseguição do Dr. Krokowski, que lhe quis dissecar a alma, o que provocou em Hans Castorp um medo louco que realmente não tinha limites. Fugiu a passo trôpego, diante do doutor, passando pelas divisões de vidro que separavam os compartimentos das sacadas, e com perigo de vida saltou ao jardim. Em último recurso, tentou trepar no mastro pardo da bandeira. Despertou, banhado em suor, quando o perseguidor lhe agarrava a perna da calça.
Apenas se acalmou um pouco e voltou a adormecer, os acontecimentos tomaram o seguinte rumo: ele se encontrou empenhado em arredar com o ombro o Sr. Settembrini, que ali se achava, de pé, sorrindo – um sorriso fino, seco, zombeteiro, sob o espesso bigode negro, e que se esboçava justamente no ponto em que esse bigode se erguia numa bela curva; um sorriso que melindrava Hans Castorp. “O senhor é demais aqui”, ouviu-se distintamente dizer. “Vá-se embora! É apenas um tocador de realejo e é demais aqui!” Mas Settembrini não deixou que o afastasse do lugar e Hans Castorp estava ainda a perguntar-se o que deveria fazer, quando, de chofre e por sorte, lhe ocorreu uma excelente ideia a respeito da natureza do tempo: evidenciou-se que o tempo nada mais era senão uma “irmã muda”, uma coluna de mercúrio totalmente desprovida de escala, para aqueles que quisessem trapacear. Em seguida, acordou com a firme intenção de comunicar, no dia seguinte, essa descoberta a seu primo Joachim.
No meio de tais aventuras e achados decorreu a noite, e também Hermine Kleefeld, assim como o Sr. Albin e o Capitão Miklosich, desempenharam papéis complicados. Este último carregava nas suas fauces a Srª. Stöhr e era trespassado com uma lançada pelo promotor Público, Sr. Paravant. Houve ainda um sonho que Hans Castorp teve duas vezes durante essa noite, e ambas as vezes exatamente do mesmo modo, a segunda já de madrugada. Achava-se sentado na sala das sete mesas, quando a porta envidraçada se fechou com enorme estrondo. Entrara Mme... Chauchat, no seu suéter branco, com uma mão no bolso e a outra na nuca. Porém, ao invés de se dirigir à mesa dos “russos distintos”, a mulher mal-educada aproximou-se a passo cioso de Hans Castorp e, sem dizer palavra, estendeu-lhe a mão para beijar – não as costas, mas sim a palma. E Hans Castorp beijou o interior dessa mão; beijou essa mão pouco cuidada, um tanto larga, de dedos curtos, com a pele áspera nas bordas das unhas. Novamente o invadiu então, dos pés à cabeça, aquela sensação de gozo dissoluto por que passara, quando, a título de experiência, se sentira livre da pressão da honra e desfrutara as ilimitadas vantagens que acarreta a vergonha. Foi essa a sensação que ele tornou a encontrar no sonho, mas com uma intensidade mil vezes maior.
– Naturalmente, não é fácil aclimatar-se aqui em cima – continuou. –– Mas isto era de prever. Se eu logo desistisse, só por sentir durante alguns dias um pouco de calor e de tonturas, teria vergonha de mim e me julgaria covarde. Isto será contrário a toda razão... Não! Diga o senhor mesmo...
De repente começou a falar com grande ênfase, acompanhando as palavras de vivos movimentos dos ombros. Parecia insistir com o italiano para que este retirasse formalmente a sugestão.
– Inclino-me diante da razão – respondeu Settembrini. – Inclino-me também diante da coragem. O que o senhor disse não soa mal. Seria difícil opor-lhe um argumento sólido. Além disso, já observei uns belíssimos casos de aclimatação. Houve, por exemplo, no ano passado, a Srta. Kneifer, Ottilie Kneifer, moça de boa família, filha de um alto funcionário do Estado. Esteve aqui cerca de um ano e meio e habituara-se de tal modo ao ambiente, que por coisa alguma quis ir embora quando a sua saúde ficou restabelecida por completo. (Ora, também isto acontece, há gente que fica boa aqui.) Bem, ela suplicou ao Dr. Behrens, fervorosamente, que lhe permitisse ficar. Não queria nem podia voltar para a sua terra. Aqui se sentia em casa, aqui estava feliz. Mas, como houvesse muitos pedidos e se precisasse do quarto dela, seus rogos foram em vão, e insistiram em dar-lhe alta como curada. E Ottilie começou a ter muita febre. Sua curva subiu consideravelmente. Contudo, foi desmascarada quando lhe substituíram o termômetro por uma “irmã muda”. O senhor ainda não sabe o que isso significa? É um termômetro sem escala que o médico controla pessoalmente, medindo a coluna de mercúrio e inscrevendo a temperatura na papeleta. Ottilie tinha 36,9; sim senhor, não tinha febre. Então tomou um banho no lago; era em princípios de maio, e de noite havia temperaturas abaixo de zero. A água do lago não estava propriamente gelada, mas ainda muitíssimo fria. Ottilie passo bom tempo na água, para contrair esta ou aquela doença. Mas, e o resultado? Continuou perfeitamente boa. Despediu-se desolada, inacessível ao consolo dos pais. “Que vou fazer lá embaixo?” gritou uma e outra vez. “Meu lar é aqui!” Não sei que fim ela levou... Mas tenho a impressão de que o senhor não me presta atenção, meu caro engenheiro. Parece que lhe custa manter-se de pé, se não me engano. Tenente, aqui lhe entrego seu primo – disse voltando-se para Joachim, que nesse instante se aproximava. – Ponhao na cama. Reúne em si razão e coragem, mas esta noite anda meio débil.
– Não, senhor, entendi tudo, realmente – afirmou Hans Castorp – A “irmã muda” é apenas uma coluna de mercúrio, totalmente sem escala. Está vendo que compreendi muito bem. - mesmo assim entrou no elevador, com Joachim e mais alguns outros pensionistas. Terminara a reunião e o pessoal dispersava-se em busca das sacadas ou dos alpendres para o repouso noturno. Hans Castorp acompanhou Joachim até o quarto. O chão do corredor, com a passadeira de palha de coqueiro, executava sob os seus pés movimentos suavemente ondulantes, mas que não o incomodavam. Sentou-se na grande poltrona de forro florido do quarto de Joachim – outra igual achava-se no seu próprio aposento e acendeu um Maria Mancini. Achou-o sabor de cola, de carvão e outras coisas, menos o que deveria Apesar disso, continuou a fumá-lo, enquanto observava como Joachim se arrumava para o repouso, vestindo o fumoir e, por cima, um velho sobretudo, para depois ir à sacada, com a lâmpada do criado mudo e o manual de russo na mão. Lá fora, o primo acendeu a lâmpada e, com o termômetro na boca, deitou-se na espreguiçadeira, onde com surpreendente habilidade começou a envolver-se em dois grandes cobertores de lã de camelo, que se achavam estendidos na cadeira. Hans Castorp contemplou com sincera admiração aqueles movimentos destros. Joachim jogou os cobertores, um após outro, por cima de si, primeiro pela esquerda, cobrindo-se até a axila, depois por baixo, sobre os pés, e por fim pela direita, até formar uma espécie de pacote perfeitamente simétrico e liso, do qual saíam apenas a cabeça, os ombros e os braços.
– É formidável como você faz isso! – disse Hans Castorp.
É questão de prática – respondeu Joachim, falando com o termômetro preso entre os dentes. – Você também vai aprender. Amanhã, sem falta, teremos de comprar alguns cobertores para você. Serão úteis também lá embaixo, e aqui são indispensáveis, sobretudo para você que não tem saco de peles.
– Mas não tenciono deitar-me na sacada de noite – declarou Hans Castorp. – Não farei isto, posso garantir. Acho que me sentiria ridículo. Tudo tem limites, afinal. Além disso me parece preciso acentuar, num ou noutro ponto, que estou apenas de visita aqui em cima. Vou ficar ainda alguns instantes com você e fumar um charuto, como de costume. Ele tem um sabor infame, mas eu sei que é de boa qualidade; é o que me basta por enquanto. Daqui a pouco serão nove horas. Infelizmente faltam ainda alguns minutos. Mas, nove e meia já será uma hora mais ou menos normal para a gente se recolher.
De repente sentiu um calafrio, primeiro um, e logo depois diversos outros, em rápida sequência. Hans Castorp levantou-se de um pulo e correu para o termômetro suspenso na parede, como se se tratasse de apanhá-lo em flagrante delito. Segundo a escala de Réaumur havia nove graus no quarto. Hans Castorp apalpou o radiador e verificou que estava frio e apagado. Resmungou algumas palavras confusas, significando aproximadamente que, embora estivessem em agosto, era uma vergonha não se acender a calefação; pois o que importava não era o nome do mês, mas a temperatura reinante, e esta era de um frio de rachar. Mas nas suas faces continuava o referido ardor. Hans Castorp voltou a sentar-se. Pôs-se novamente de pé, e em voz baixa pediu licença para tomar o cobertor da cama de Joachim. Instalado na poltrona, cobriu-se com ele, dos quadris para baixo. Assim permaneceu, ao mesmo tempo ardendo e tiritando, a torturar-se com o charuto de gosto asqueroso. Invadiu-o uma intensa sensação de miséria, como se nunca na vida ele se tivesse sentido tão mal quanto nesse momento. – Que horror! – murmurou. Em seguida, porém, achou-se de repente tomado por uma estranha e exuberante sensação de alegria e esperança, e depois de tê-la experimentado, ficou-se esperando que ela se reproduzisse. Mas isto não se deu, e o que lhe restava então era apenas a miséria. Finalmente se levantou, atirou o cobertor de Joachim sobre a cama, cochichou, de boca crispada, qualquer coisa parecida com “Boa noite!” e “Veja se não morre de frio!” e “Trate de me buscar na hora do café!”. Depois, cambaleando, atravessou o corredor, em busca do seu quarto.
Ao despir-se, começou a cantarolar, mas não de alegria. Mecanicamente, sem prestar atenção, desempenhou-se das pequenas funções e obrigações da higiene noturna de um homem civilizado; pingo copo umas gotas de um dentifrício vermelho, contido num frasco de viagem, e gargarejou discretamente; lavou as mãos com um sabonete de violeta, suave e de excelente qualidade, e pôs a camisola de cambraia, em cujo bolsinho se viam bordadas as iniciais H.C. Feito isso, meteu-se na cama e apagou a luz, enquanto deixava cair a cabeça quente e agitada sobre o travesseiro de agonia da americana.
Esperara com a mais absoluta certeza mergulhar sem demora no sono, mas verificou que se enganara, e as mesmas pálpebras que pouco antes tivera tanto trabalho de manter abertas, não queriam agora permanecer fechadas e abriam-se, latejando irrequietamente, logo tentava cerrá-las. “Ainda não é a hora em que costumo dormir”, disse de si para si. “Além disso passei muito tempo deitado durante o dia”. Lá fora, alguém parecia bater um tapete – coisa pouco verossímil, e que em realidade não se dava; evidenciou-se que eram as palpitações do seu próprio coração, que Hans Castorp ouvia fora de si, ao longe, exatamente como se um tapete fosse tratado com um batedor de junco.
O quarto não estava completamente escuro. Pela porta aberta da sacada entrava a luz das lampadazinhas acesas nos compartimentos de Joachim e do casal da mesa dos “russos ordinários”. E enquanto Hans Castorp estava assim de costas, com as pálpebras a piscar, sentiu renovar-se nele uma impressão toda especial que recebera durante o dia, uma observação que logo procurara esquecer, por terror e delicadeza. Tornou a ver aquela expressão que assumira o rosto de Joachim quando se falava de Marusja e das suas qualidades físicas – essa contração particularmente dolorosa da boca acompanhada do palor como que salpicado de manchas das faces tostadas pelo sol. Hans Castorp compreendia o que aquilo significava; compreendia-o e penetrava-o de uma forma nova, tão profunda e tão íntima, que o batedor de junco, lá fora, redobrava a velocidade e o vigor dos seus golpes e quase que abafava os sons de uma serenata que vinham de Davos-Platz. Pois havia outro concerto naquele hotel. Uma melodia simétrica e barata de opereta ressoava através das trevas, e Hans Castorp pôs-se a assobiá-la num cicio – pode-se muito bem assobiar num cicio –, enquanto marcava o ritmo com os pés frios debaixo do acolchoado de penas.
Está visto que este não é um método apropriado para adormecer, e ademais, Hans Castorp já não tinha vontade alguma de fazê-lo. Desde que compreendera, de uma forma tão inédita e viva, por que Joachim empalidecera, o mundo parecia-lhe renovado, e aquela sensação de exuberante alegria e esperança tornou a comovê-lo no seu íntimo. De resto, aguardava mais alguma coisa, sem saber claramente o que era. Mas, quando notou que os vizinhos da direita e da esquerda haviam terminado o repouso e entravam nos quartos, para trocar a posição horizontal na sacada pela mesma posição no interior do aposento, expressou de si para si a convicção de que o casal bárbaro, dessa vez, observaria a trégua. “Posso dormir tranquilamente”, pensou. “Esta noite, eles vão se comportar bem, disso tenho certeza.” No entanto, tal não aconteceu. O próprio Hans Castorp não acreditara seriamente nessa possibilidade e, para dizer a verdade, teria ficado grandemente surpreendido se não tivessem aberto as hostilidades. Mesmo assim soltou grande número de exclamações silenciosas do mais veemente espanto, diante dos ruídos que ouvia. – É incrível! – gritou, sem voz. – Que coisa impressionante! Quem teria pensado que isto fosse possível! – E, de quando em vez, voltou a acompanhar, ciciando, a melodia de opereta barata, que obstinadamente chegava até ele.
Depois veio o sono. Mas, junto com ele, surgiram fantásticas imagens de sonhos, mais fantásticas ainda do que as da primeira noite no meio das quais diversas vezes se sobressaltou, assustado ou entregue à perseguição de uma idéia confusa. Sonhava que via o Dr. Behrens passear pelas alamedas do jardim, caminhando de joelhos dobrados com os braços pendendo, rijos, para a frente, e acertando os passos longos, como que monótonos, ao ritmo de uma marcha que ressoava ao longe. Quando o conselheiro áulico estacou diante de Hans Castorp, usava óculos com grossas lentes redondas e dizia coisas sem nexo: “Paisano, naturalmente”, observou, e sem pedir licença abaixou a pálpebra de Hans Castorp com os dedos indicador e médio da mão enorme. “Um paisano decente, como notei logo. Mas não lhe falta talento, absolutamente não lhe falta talento para uma intensa combustão geral. Não se incomodaria em gastar conosco alguns anos, alguns anos alegres de serviço aqui em cima? Pois então, cavalheiros, e agora um passeio, vamos!”, exclamou, metade na boca os dois índices enormes e dando assobios tão estranhamente melodiosos, que de diversos lados e em miniatura surgiram, voando através dos ares, a professora e Miss Robinson, para lhe pousarem nos ombros, à direita e à esquerda, assim como na sala de refeições ficavam sentadas ao lado de Hans Castorp. E assim o médico se foi, a passo saltitante, esfregado um guardanapo por trás das lentes dos óculos, a fim de enxugar olhos e secar não se sabia o quê, suor ou lágrimas.
Depois, Hans Castorp sonhou que se encontrava no pátio do ginásio, onde durante tantos anos passara os intervalos entre as aulas, e que estava a ponto de pedir emprestado um lápis a Mme... Chauchat, que igualmente estava presente. Ela deu-lhe uma lapiseira de prata, que continha um lápis pintado de vermelho, gasto até a metade, e recomendou a Hans Castorp, numa voz agradavelmente velada, que devolvesse sem falta depois da aula. E quando o olhou, com seus olhos rasgados, de um azul esverdeado, por cima das maçãs salientes, ele fez um esforço violento para se desprender do sonho; pois agora já sabia e queria gravar na memória que acontecimento e que pessoa ela lhe recordava com tamanha intensidade. A toda pressa, pôs-se a guardar essa percepção num lugar seguro, já que sentia como o sono e o sonho novamente se apoderavam dele. Com efeito, viu-se logo na contingência de procurar um refúgio para se abrigar contra a perseguição do Dr. Krokowski, que lhe quis dissecar a alma, o que provocou em Hans Castorp um medo louco que realmente não tinha limites. Fugiu a passo trôpego, diante do doutor, passando pelas divisões de vidro que separavam os compartimentos das sacadas, e com perigo de vida saltou ao jardim. Em último recurso, tentou trepar no mastro pardo da bandeira. Despertou, banhado em suor, quando o perseguidor lhe agarrava a perna da calça.
Apenas se acalmou um pouco e voltou a adormecer, os acontecimentos tomaram o seguinte rumo: ele se encontrou empenhado em arredar com o ombro o Sr. Settembrini, que ali se achava, de pé, sorrindo – um sorriso fino, seco, zombeteiro, sob o espesso bigode negro, e que se esboçava justamente no ponto em que esse bigode se erguia numa bela curva; um sorriso que melindrava Hans Castorp. “O senhor é demais aqui”, ouviu-se distintamente dizer. “Vá-se embora! É apenas um tocador de realejo e é demais aqui!” Mas Settembrini não deixou que o afastasse do lugar e Hans Castorp estava ainda a perguntar-se o que deveria fazer, quando, de chofre e por sorte, lhe ocorreu uma excelente ideia a respeito da natureza do tempo: evidenciou-se que o tempo nada mais era senão uma “irmã muda”, uma coluna de mercúrio totalmente desprovida de escala, para aqueles que quisessem trapacear. Em seguida, acordou com a firme intenção de comunicar, no dia seguinte, essa descoberta a seu primo Joachim.
No meio de tais aventuras e achados decorreu a noite, e também Hermine Kleefeld, assim como o Sr. Albin e o Capitão Miklosich, desempenharam papéis complicados. Este último carregava nas suas fauces a Srª. Stöhr e era trespassado com uma lançada pelo promotor Público, Sr. Paravant. Houve ainda um sonho que Hans Castorp teve duas vezes durante essa noite, e ambas as vezes exatamente do mesmo modo, a segunda já de madrugada. Achava-se sentado na sala das sete mesas, quando a porta envidraçada se fechou com enorme estrondo. Entrara Mme... Chauchat, no seu suéter branco, com uma mão no bolso e a outra na nuca. Porém, ao invés de se dirigir à mesa dos “russos distintos”, a mulher mal-educada aproximou-se a passo cioso de Hans Castorp e, sem dizer palavra, estendeu-lhe a mão para beijar – não as costas, mas sim a palma. E Hans Castorp beijou o interior dessa mão; beijou essa mão pouco cuidada, um tanto larga, de dedos curtos, com a pele áspera nas bordas das unhas. Novamente o invadiu então, dos pés à cabeça, aquela sensação de gozo dissoluto por que passara, quando, a título de experiência, se sentira livre da pressão da honra e desfrutara as ilimitadas vantagens que acarreta a vergonha. Foi essa a sensação que ele tornou a encontrar no sonho, mas com uma intensidade mil vezes maior.
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Leia também:
Capítulo II
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Capítulo III
Satã faz propostas desonrosas (b)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
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