Aluísio Azevedo
IX
.
continuando...
- Ó seu João Romão, se o homem não casa, mande-no-lo pra cá! Temos ainda algumas pequenas que
lhe convêm!
- Mas onde está esse ordinário?!
- Saia o canalha!
- Está fazendo a trouxa!
- Quer escapar!
- Não deixe sair!
- Chame a polícia!
- Onde está o Alexandre?
E ninguém mais se entendia. À vista daquela agitação, o vendeiro foi ter com o Domingos.
- Não saia agora, ordenou-lhe. Deixe-se ficar por enquanto. Logo mais lhe direi o que deve fazer.
E chegando a uma das portas que davam para a estalagem, gritou:
- Vá de rumor! Não quero isto aqui! É safar!
- Pois então o homem que case! responderam.
- Ou dê-nos pra cá o patife!
- Fugir é que não!
- Não foge! não deixa fugir!
- Ninguém se arrede!
E, como a Marciana lhe lançasse uma injúria mais forte, ameaçando-o com o punho fechado, o taverneiro jurou que se ela insistisse com desaforos, a mandaria jogar lá fora, junto com a filha, por um urbano.
E, como a Marciana lhe lançasse uma injúria mais forte, ameaçando-o com o punho fechado, o taverneiro jurou que se ela insistisse com desaforos, a mandaria jogar lá fora, junto com a filha, por um urbano.
- Vamos! Vamos! Volte cada uma para a sua obrigação, que eu não posso perder tempo!
- Ponha-nos então pra cá o homem! exigiu a mulata velha.
- Venha o homem! acompanhou o coro.
- É preciso dar-lhe uma lição!
- O rapaz casa! disse o vendeiro com ar sisudo. Já lhe falei... Está perfeitamente disposto! E, se não
casar, a pequena terá o seu dote! Vão descansados; respondo por ele ou pelo dinheiro!
Estas palavras apaziguaram os ânimos; o grupo das lavadeiras afrouxou; João Romão recolheu-se:
chamou de parte o Domingos e disse-lhe que não arredasse pé de casa antes de noite fechada.
- No mais... acrescentou, pode tratar de vida nova! Nada o prende aqui. Estamos quites.
- Como? se o senhor ainda não me fez as contas?!...
- Contas? Que contas? O seu saldo não chega para pagar o dote da rapariga!...
- Então eu tenho de pagar um dote?!...
- Ou casar... Ah, meu amigo, este negócio de três vinténs é assim! Custa dinheiro! Agora, se você
quiser, vá queixar-se à policia... Está no seu direito! Eu me explicarei em juízo!...
- Com que, não recebo nada?...
- E não principie com muita coisa, que lhe fecho a porta e deixo-o ficar às turras lá fora com esses
danados! Você bem viu como estão todos a seu respeito! E, se há pouco não lhe arrancaram os
fígados, agradeça-o a mim! Foi preciso prometer dinheiro e tenho de cair com ele, decerto! mas não
é justo, nem eu admito, que saia da minha algibeira porque não estou disposto a pagar os caprichos
de ninguém, e muito menos dos meus caixeiros!
- Mas...
- Basta! Se quiser, por muito favor, ficar aqui até à noite, há de ficar calado; ao contrário rua!
E afastou-se.
Marciana resolveu não ir ao subdelegado, sem saber que providências tomaria o vendeiro. Esperaria
até ao dia seguinte “para ver só!” O que nesse ela fez foi dar uma boa lavagem na casa e arrumá-la
muitas vezes, como costumava, sempre que tinha lá as suas zangas.
O escândalo não deixou de ser, durante o dia, discutido um só instante. Não se falava noutra coisa;
tanto que, quando, já à noite, Augusta e Alexandre receberam uma visita da comadre, a Léonie, era
ainda esse o principal assunto das conversas.
Léonie, com as suas roupas exageradas e barulhentas de cocote à francesa, levantava rumor quando
lá ia e punha expressões de assombro em todas as caras. O seu vestido de seda cor de aço, enfeitado
de encarnado sangue de boi, curto, petulante, mostrando uns sapatinhos à moda com um salto de
quatro dedos de altura; as suas lavas de vinte botões que lhe chegavam até aos sovacos; a sua
sombrinha vermelha, sumida numa nuvem de rendas cor-de-rosa e com grande cabo cheio de
arabescos extravagantes; o seu pantafaçudo chapéu de imensas abas forradas de velado escarlate,
com um pássaro inteiro grudado à copa; as suas joias caprichosas, cintilantes de pedras finas; os seus
lábios pintados de carmim; suas pálpebras tingidas de violeta; o seu cabelo artificialmente louro;
tudo isto contrastava tanto com as vestimentas, os costumes e as maneiras daquela pobre gente, que
de todos os lados surgiam olhos curiosos a espreitá-la pela porta da casinha de Alexandre; Augusta,
ao ver a sua pequena, a Jujú, como vinha tão embonecada e catita, ficou com os dela arrasados de
água.
Léonie trazia sempre muito bem calçada e vestida a afilhada, levando o capricho ao ponto de lhe
mandar talhar a roupa da mesma fazenda com que fazia as suas e pela mesma costureira; arranjava-lhe chapéus escandalosos como os dela e dava-lhe joias. Mas, naquele dia, a grande novidade que
Jujú apresentava era estar de cabelos louros, quando os tinha castanhos por natureza. Foi caso para
uma revolução na estalagem; a noticia correu logo de número a número, e muitos moradores se
abalaram do cômodo para ver a filhita da Augusta “com cabelos de francesa”.
Tal sucesso pôs Léonie radiante de alegria. Aquela afilhada era o seu luxo, a sua originalidade, a
coisa boa da sua vida de cansaços depravados; era o que aos seus próprios olhos a resgatava das
abjeções do oficio. Prostituta de casa aberta, prezava todavia com admiração e respeito a honestidade
vulgar da comadre; sentia-se honrada com a sua estima; cobria-a de obséquios de toda a espécie. Nos
instantes que estava ali, entre aqueles seus amigos simplórios, que a matariam de ridículo em
qualquer outro lugar, nem ela parecia a mesma, pois até os olhos lhe mudavam de expressão. E não
queria preferências: assentava-se no primeiro banco, bebia água pela caneca de folha, tomava ao colo
o pequenito da comadre e, às vezes, descalçava os sapatos para enfiar os chinelos velhos que
encontrasse debaixo da cama.
Não obstante, o acatamento que lhe votavam Alexandre e a mulher não tinha limites; pareciam
capazes dos maiores sacrifícios por ela. Adoravam-na. Achavam-na boa de coração como um anjo, e
muito linda nas suas roupas de espavento, com o seu rostinho redondo, malicioso e petulante, onde
reluziam dentes mais alvos que um marfim.
Jujú, com um embrulho de balas em cada mão, era carregada de casa em casa, passando de braço a
braço e levada de boca em boca, como um ídolo milagroso, que todos queriam beijar.
Continua página 55...
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Leia também:
O Cortiço - IX: Ó seu João Romão
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Aluísio Azevedo (Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo), caricaturista, jornalista, romancista e diplomata, nasceu em São Luís, MA, em 14 de abril de 1857, e faleceu em Buenos Aires, Argentina, em 21 de janeiro de 1913.
Era filho do vice-cônsul português David Gonçalves de Azevedo e de D. Emília Amália Pinto de Magalhães e irmão mais moço do comediógrafo Artur Azevedo. Sua mãe havia casado, aos 17 anos, com um comerciante português. O temperamento brutal do marido determinou o fim do casamento. Emília refugiou-se em casa de amigos, até conhecer o vice-cônsul de Portugal, o jovem viúvo David. Os dois passaram a viver juntos, sem contraírem segundas núpcias, o que à época foi considerado um escândalo na sociedade maranhense.
Da infância à adolescência, Aluísio estudou em São Luís e trabalhou como caixeiro e guarda-livros. Desde cedo revelou grande interesse pelo desenho e pela pintura, o que certamente o auxiliou na aquisição da técnica que empregará mais tarde ao caracterizar os personagens de seus romances. Em 1876, embarcou para o Rio de Janeiro, onde já se encontrava o irmão mais velho, Artur. Matriculou-se na Imperial Academia de Belas Artes, hoje Escola Nacional de Belas Artes. Para manter-se fazia caricaturas para os jornais da época, como O Fígaro, O Mequetrefe, Zig-Zag e A Semana Ilustrada. A partir desses “bonecos”, que conservava sobre a mesa de trabalho, escrevia cenas de romances.
A morte do pai, em 1878, obrigou-o a voltar a São Luís, para tomar conta da família. Ali começou a carreira de escritor, com a publicação, em 1879, do romance Uma lágrima de mulher, típico dramalhão romântico. Ajuda a lançar e colabora com o jornal anticlerical O Pensador, que defendia a abolição da escravatura, enquanto os padres mostravam-se contrários a ela. Em 1881, Aluísio lança O mulato, romance que causou escândalo entre a sociedade maranhense pela crua linguagem naturalista e pelo assunto tratado: o preconceito racial. O romance teve grande sucesso, foi bem recebido na Corte como exemplo de Naturalismo, e Aluísio pôde retornar para o Rio de Janeiro, embarcando em 7 de setembro de 1881, decidido a ganhar a vida como escritor.
Quase todos os jornais da época tinham folhetins, e foi num deles que Aluísio passou a publicar seus romances. A princípio, eram obras menores, escritas apenas para garantir a sua sobrevivência. Depois, surgiu nova preocupação no universo de Aluísio: a observação e análise dos agrupamentos humanos, a degradação das casas de pensão e sua exploração pelo imigrante, principalmente o português. Dessa preocupação resultariam duas de suas melhores obras: Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890). De 1882 a 1895 escreveu sem interrupção romances, contos e crônicas, além de peças de teatro em colaboração com Artur de Azevedo e Emílio Rouède.
Em 1895 ingressou na diplomacia, momento em que praticamente cessa sua atividade literária. O primeiro posto foi em Vigo, na Espanha. Depois serviu no Japão, na Argentina, na Inglaterra e na Itália. Passara a viver em companhia de D. Pastora Luquez, de nacionalidade argentina, junto com os dois filhos, Pastor e Zulema, por ele adotados. Em 1910, foi nomeado cônsul de 1ª. classe, sendo removido para Assunção. Buenos Aires foi seu último posto. Ali faleceu, aos 56 anos. Foi enterrado naquela cidade. Seis anos depois, por uma iniciativa de Coelho Neto, a urna funerária de Aluísio Azevedo chegou a São Luís, onde o escritor foi sepultado.
Aluísio Azevedo (Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo), caricaturista, jornalista, romancista e diplomata, nasceu em São Luís, MA, em 14 de abril de 1857, e faleceu em Buenos Aires, Argentina, em 21 de janeiro de 1913.
Era filho do vice-cônsul português David Gonçalves de Azevedo e de D. Emília Amália Pinto de Magalhães e irmão mais moço do comediógrafo Artur Azevedo. Sua mãe havia casado, aos 17 anos, com um comerciante português. O temperamento brutal do marido determinou o fim do casamento. Emília refugiou-se em casa de amigos, até conhecer o vice-cônsul de Portugal, o jovem viúvo David. Os dois passaram a viver juntos, sem contraírem segundas núpcias, o que à época foi considerado um escândalo na sociedade maranhense.
Da infância à adolescência, Aluísio estudou em São Luís e trabalhou como caixeiro e guarda-livros. Desde cedo revelou grande interesse pelo desenho e pela pintura, o que certamente o auxiliou na aquisição da técnica que empregará mais tarde ao caracterizar os personagens de seus romances. Em 1876, embarcou para o Rio de Janeiro, onde já se encontrava o irmão mais velho, Artur. Matriculou-se na Imperial Academia de Belas Artes, hoje Escola Nacional de Belas Artes. Para manter-se fazia caricaturas para os jornais da época, como O Fígaro, O Mequetrefe, Zig-Zag e A Semana Ilustrada. A partir desses “bonecos”, que conservava sobre a mesa de trabalho, escrevia cenas de romances.
A morte do pai, em 1878, obrigou-o a voltar a São Luís, para tomar conta da família. Ali começou a carreira de escritor, com a publicação, em 1879, do romance Uma lágrima de mulher, típico dramalhão romântico. Ajuda a lançar e colabora com o jornal anticlerical O Pensador, que defendia a abolição da escravatura, enquanto os padres mostravam-se contrários a ela. Em 1881, Aluísio lança O mulato, romance que causou escândalo entre a sociedade maranhense pela crua linguagem naturalista e pelo assunto tratado: o preconceito racial. O romance teve grande sucesso, foi bem recebido na Corte como exemplo de Naturalismo, e Aluísio pôde retornar para o Rio de Janeiro, embarcando em 7 de setembro de 1881, decidido a ganhar a vida como escritor.
Quase todos os jornais da época tinham folhetins, e foi num deles que Aluísio passou a publicar seus romances. A princípio, eram obras menores, escritas apenas para garantir a sua sobrevivência. Depois, surgiu nova preocupação no universo de Aluísio: a observação e análise dos agrupamentos humanos, a degradação das casas de pensão e sua exploração pelo imigrante, principalmente o português. Dessa preocupação resultariam duas de suas melhores obras: Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890). De 1882 a 1895 escreveu sem interrupção romances, contos e crônicas, além de peças de teatro em colaboração com Artur de Azevedo e Emílio Rouède.
Em 1895 ingressou na diplomacia, momento em que praticamente cessa sua atividade literária. O primeiro posto foi em Vigo, na Espanha. Depois serviu no Japão, na Argentina, na Inglaterra e na Itália. Passara a viver em companhia de D. Pastora Luquez, de nacionalidade argentina, junto com os dois filhos, Pastor e Zulema, por ele adotados. Em 1910, foi nomeado cônsul de 1ª. classe, sendo removido para Assunção. Buenos Aires foi seu último posto. Ali faleceu, aos 56 anos. Foi enterrado naquela cidade. Seis anos depois, por uma iniciativa de Coelho Neto, a urna funerária de Aluísio Azevedo chegou a São Luís, onde o escritor foi sepultado.
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