quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Memórias do Cárcere - Viagens 16

Memórias do Cárcere

Graciliano Ramos


Volume I 
 Editora Record 
PRIMEIRA PARTE 

VIAGENS 

16


       CAPITÃO Mata consultou o jornal, estudou o movimento do porto e decidiu que viajaríamos para o sul. Insensatez. Tinham-nos jogado para o norte; de repente, sem razão concebível, atiravam-nos em sentido contrário. Corridas de automóvel, doze horas a rolar num trem, quinze dias de repouso forçado para ouvir as ameaças de um general. E meia-volta: andar para o sul, depois de ter andado para o norte. Ausência de interrogatório, nenhum vestígio de processos. Porque se comportavam daquele jeito? Pareciam querer apenas demonstrar-nos que podiam deixar-nos em repouso, em seguida enviar-nos para um lado ou para outro. Exatamente como se estacássemos no exercício militar, depois volvêssemos à direita ou à esquerda, em obediência à voz do instrutor. Porque a direita? Porque à esquerda? O sargento não sabe: indicou uma direção por ser preciso variar: fazia dois minutos que marchávamos em linha reta e não devíamos continuar assim, indefinidamente.
   Haverá proceder mais estúpido? Estúpido, na verdade. Mas não tencionam apenas revelar-nos a própria estupidez: querem possivelmente forçar-nos a entender que nos podem tornar estúpidos, executar ações inúteis, divagar como loucos, ir andando certo e sem mais nem mais torcer caminho, mergulhar os pés num atoleiro. Um, dois, um, dois. Se as nossas cabeças funcionavam, é bom que deixem de funcionar e nos transformemos em autômatos: um, dois, um, dois. Dentro em pouco o sargento exigirá meia-volta e tornaremos – um, dois, um, dois – a meter os sapatos na lama. Ou reclamará marcha acelerada. Não perceberemos o sentido dela, naturalmente, mas teremos de executá-la, pois isto é a nossa obrigação. Claro. Não estamos aqui para discutir. Temos superiores, eles pensarão por nós. Talvez não pensem, mas é como se pensassem: as estrelas, a voz grossa, de papo, bobagens ditas a repórteres em doidas entrevistas, emprestam-lhes autoridade.
   Afinal íamos ser transferidos para o sul. Que lugar nos destinavam? Rio de Janeiro, Bahia, São Paulo? Ou qualquer cidadezinha do interior? Quando lhes desse na veneta, mandar-nos-iam fazer meia-volta, desembarcar-nos-iam no Amazonas, obrigar-nos-iam à convivência dos jacarés. Nenhuma lógica nessas reviravoltas, nenhum senso. Arranha-céus ou seringueiras e tartarugas. Estúpido. Nada nos chamava ali ou acolá. Os nossos interesses se fixavam no nordeste, o sangue e as observações – os filhos, a terra plana, poeirenta e infecunda. Tudo pobre. Não seria mais conveniente obrigarem-nos a cavar açudes ou ensinar bê-a-bá aos meninos empalamados? Os nossos músculos renderiam pouco, os nossos cérebros entorpecidos eram como limões secos; com esforço espremeríamos da carne e dos nervos alguma coisa – e enfim teríamos a certeza de não sermos uns miseráveis parasitas imóveis. Onde estava a nossa utilidade? Para que servíamos? Saltar da cama pela manhã, escovar os dentes, pentear os cabelos, ouvir dois minutos, em pé, o interrogatório do comandante, dar as respostas adequadas; em seguida papaguear meia hora com o excelente capitão Lobo, contrariá-lo. Que proveito achavam nisso? Lá fora tínhamos funções, representávamos de qualquer modo certo valor. Pelo menos julgávamos representar. Agora nos faltava o mínimo préstimo, e o pior é que sabíamos isto. Arrastávamos as pernas ociosas; uma vez por dia deixávamos a gaiola, – um, dois, um, dois – alcançávamos o banheiro, o limite do mundo; regressávamos à sonolência e à imobilidade. Conversas repetidas, graças e anedotas repetidas, o abandono de hábitos sociais indispensáveis. Permaneceremos civilizados vestindo pijama, calçando chinelos, deixando a barba crescer, palitando os dentes com fósforo? Pouco a pouco vamos caindo no relaxamento. Erguemos a voz, embrutecemos, involuntariamente expomos a rudeza natural. Ignoramos que isto acontece, suprimem-nos meios de comparação – e quando voltarmos estaremos transformados. Afinal a transferência não era ruim: quebrava a monotonia.
   Uma viagem ao sul por conta do governo. Quando me soltassem, aguentar-me-ia na cidade grande, readaptar-me-ia, mudaria de ofício no fim da vida. Afirmava isto a mim mesmo sem muita convicção, tentando inocular-me gotas de confiança. Um governador de Alagoas me dissera anos atrás: –“Você. escrevendo literatura de ficção, morre de fome. Os romances lhe renderão duzentos mil-réis por mês. Faça artigos sobre economia e ganhará contos.” É verdade que esse amigo se dedicara à mamona, ao algodão, às galinhas, enchera com estatística diversas resmas – e isto lhe trouxera escassa vantagem. Não me capacitava de que as letras dele fossem bem pagas, na livraria ou no jornal, mas as minhas deviam ser mais baratas. Duzentos mil-réis por mês, bela perspectiva. Dois romances quase desconhecidos, o terceiro inédito, um conto, vários produtos inferiores – de fato isso me daria duzentos mil-réis mensais. E não me sentia capaz de progresso; talvez nem chegasse a fazer coisa igual. Esforçava-me por julgar que a mudança me desentorpeceria, me sacudiria. Ao cabo de vinte e quatro horas achar-me-ia alojado na segunda classe. Haviam-nos tratado bem até aquele momento: o vagão-restaurante da Great Western, automóveis, uma prisão de oficiais, gestos e palavras corteses. Era como se fôssemos sujeitos importantes. Mas certamente havia equívoco na classificação: perceberiam que não estávamos no lugar próprio e mandar-nos-iam descer um degrau. Pensava assim e resistia em convencer-me de qualquer rebaixamento: nenhum motivo para não nos darem um camarote de primeira classe.
   As minhas reflexões sobre esse ponto foram interrompidas por uma bola de papel que, arremessada por cima do tabique, veio cair no meio do quarto. Apanhamo-la, abrimo-la, desamarrotamo-la: uma carta enviada pelo oficial preso na saleta vizinha. Poderíamos dar resposta? Vieram-me escrúpulos: tínhamos combinado, logo ao amanhecer da vida nova, não falar ao homem detido além da parede baixa, certamente cumprindo pena disciplinar. Nenhuma relação haveria entre nós, claro: a promessa nada me custava. Ignorava o nome dele, a figura, o sentimento e o pensamento. Porque infringiria o convênio? Tínhamos ficado em silêncio duas semanas, indiferentes ao que sucedia ali perto, a alguns passos. Súbito nos chegava um apelo: alguém sentia o peso da solidão e, pressentindo a nossa partida, esvaziava o espírito numa folha de papel, desordenadamente. Numerosos lugares-comuns a respeito da liberdade. A que liberdade aludia Xavier? Era tenente do exército e chamava-se Xavier. Referir-se-ia à liberdade, em geral, ou pensaria na dele próprio, encolhida em alguns metros de soalho, olhos vigiando portas e janelas? A comunicação era bastante vaga. Relendo-a, julguei perceber que estávamos embrulhados pelas mesmas razões. Desumanidade e grosseria deixar de enviar algumas linhas ao rapaz. Refletindo, lembrei-me de que não nos tínhamos obrigado. Capitão Lobo apenas afirmara que nos comprometíamos. Uma ordem, somente. Se decidíssemos transgredi-la? De qualquer modo havia acordo tácito – e aí notei pela primeira vez um dos horrores sutis em que é fértil a cadeia: pretendem forçar-nos, sob palavra, a ser covardes. A princípio não distinguimos a cilada. –“Está ali um sujeito com “quem o senhor não se pode entender.”–“Perfeitamente.„ Aceitamos a imposição sem divisar nenhuma inconveniência. Mais tarde um infeliz nos abre a alma e hesitamos em solidarizar-nos com ele. Haverá maior covardia? Obedeceremos à frase a que não demos a necessária atenção ou escutaremos a voz interior? Naquele caso, para ser franco, não existiu em mim voz interior. E, além da primeira interdição, duas outras me vieram impossibilitar a correspondência com Xavier. Que espécie de resposta lhe daria? A literatura dele, confusa, estendia-se em conceitos banais, polvilhados de patriotismo. Naturalmente essa verbiagem não achava ressonância cá dentro, pois tenho horror aos patriotas, aos hinos e aos toques de corneta. Sem dúvida essas coisas são indispensáveis, por enquanto, mas isto não me levava a gostar delas. Horríveis. Enorme preguiça me endurecia a munheca; a burrice persistia; desânimo, longos bocejos; a leitura emperrava, entre cochilos; as observações das notas chochas pingavam a custo, pareciam mijadinhas blenorrágicas. Ora, nesse estado, não me seria fácil garatujar chavões em bilhetes. O derradeiro impedimento se ligava à prudência. Quem seria Xavier? Segundo o escrito, um indivíduo atrapalhado por ideais semelhantes aos meus. Mas esses ideais não se especificavam e talvez nem existissem nele.
   Existiriam em mim? Não sou de ideais, aborreço empolas. O que eu desejava era a morte do capitalismo, o fim da exploração. Ideal? De forma nenhuma. Coisa inevitável e presente: o caruncho roia esteios e vigas da propriedade, de pouco serviam os meus livros e as divagações de Xavier. De qualquer maneira rebentaria uma revolução de todos os demônios, seríamos engolidos por ela. Haveria, porém, a certeza de que o vizinho pensava nisso, esperava o cataclismo? Não havia: tratava-se de um patriota, e essa gente me inspira desconfiança. Se o tenente estivesse ali para fiscalizar-me, apanhar-me em falta? Se lhe houvessem ditado a carta e aguardassem o nosso comportamento, além do tabique? Por esses motivos ou por outros ignorados, achava-me indisposto a confabular.
   Em capitão Mata não havia os mesmos receios, as mesmas inibições. Pessoa de caserna, devia saber que a ordem se contenta com as aparências. Se ele fosse apanhado em flagrante, certo não conseguiria eximir-se da culpa; operando à socapa, com mão de gato, era como se a culpa não existisse. As obrigações não passavam de formalidades: tolice exagerá-las, transformá-las em casos de consciência. Além disso capitão Mata escrevia com rapidez notável, admitia sem aversão a prosa de Xavier e, usando linguagem mais ou menos correta, disfarçava perfeitamente a vacuidade dos períodos sonoros. Afinal conhecia o rapaz, se não me engano, e o temor de perfídia se eliminava. O certo é que abriu a mala, apanhou o bloco de papel e forjou uma regular mensagem, com boa dose de entusiasmo e civismo. Direitinho um orador de comício.
   Introduziu a lengalenga por baixo da porta. Minutos depois recebemos uma réplica sem pé nem cabeça. E assim decorreu o dia: bilhetes de um lado para o outro. A sentinela se distraía observando a inofensiva brincadeira. Se um intruso surgisse no alpendre, ela daria aviso. Evidentemente a proibição só se fizera para ser violada.

continua página 74....
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Graciliano Ramos de Oliveira (Quebrangulo, 27 de outubro de 1892 – Rio de Janeiro, 20 de março de 1953) foi um romancista, cronista, contista, jornalista, político e memorialista brasileiro do século XX, mais conhecido por sua obra Vidas Secas (1938).
Em setembro de 1915, motivado pela morte dos irmãos Otacília, Leonor e Clodoaldo e do sobrinho Heleno, vitimados pela epidemia de peste bubônica, volta para o Nordeste, fixando-se junto ao pai, que era comerciante em Palmeira dos Índios, Alagoas. Neste mesmo ano casou-se com Maria Augusta de Barros, que morreu em 1920, deixando-lhe quatro filhos.
Foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios em 1927, tomando posse no ano seguinte. Apoiado pelo governador do estado e impulsionado por ser um nome de fora da política, foi eleito em um pleito de uma candidatura só. Ficou no cargo por dois anos, renunciando a 10 de abril de 1930. Segundo uma das autodescrições, "Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas." Os relatórios da prefeitura que escreveu nesse período chamaram a atenção de Augusto Frederico Schmidt, editor carioca que o animou a publicar Caetés (1933).
Entre 1930 e 1936. viveu em Maceió, trabalhando como diretor da Imprensa Oficial, professor e diretor da Instrução Pública do estado. Em 1934, havia publicado São Bernardo, e quando se preparava para publicar o próximo livro, foi preso após a Intentona Comunista de 1935. Foi levado para o Rio de Janeiro e ficou preso por onze meses, sendo liberado sem ter sido acusado de nada ou julgado. Em Memórias do Cárcere recorda a prisão que sofrera seis anos antes.


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