quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

O Cortiço - III Eram cinco horas da manhã

O CORTIÇO


Aluísio Azevedo


III 

Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas.
Um acordar alegre e farto de quem dormiu de uma assentada sete horas de chumbo. Como que se sentiam ainda na indolência de neblina as derradeiras notas da ultima guitarra da noite antecedente, dissolvendo-se à luz loura e tenra da aurora, que nem um suspiro de saudade perdido em terra alheia. A roupa lavada, que ficara de véspera nos coradouros, umedecia o ar e punha-lhe um farto acre de sabão ordinário. As pedras do chão, esbranquiçadas no lugar da lavagem e em alguns pontos azuladas pelo anil, mostravam uma palidez grisalha e triste, feita de acumulações de espumas secas. Entretanto, das portas surgiam cabeças congestionadas de sono; ouviam-se amplos bocejos, fortes como o marulhar das ondas; pigarreava-se grosso por toda a parte; começavam as xícaras a tilintar; o cheiro quente do café aquecia, suplantando todos os outros; trocavam-se de janela para janela as primeiras palavras, os bons-dias; reatavam-se conversas interrompidas à noite; a pequenada cá fora traquinava já, e lá dentro das casas vinham choros abafados de crianças que ainda não andam. No confuso rumor que se formava, destacavam-se risos, sons de vozes que altercavam, sem se saber onde, grasnar de marrecos, cantar de galos, cacarejar de galinhas. De alguns quartos saíam mulheres que vinham pendurar cá fora, na parede, a gaiola do papagaio, e os louros, à semelhança dos donos, cumprimentavam-se ruidosamente, espanejando-se à luz nova do dia.
Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. Uns, após outros, lavavam a cara, incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da altura de uns cinco palmos. O chão inundava-se. As mulheres precisavam já prender as saias entre as coxas para não as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos braços e do pescoço, que elas despiam, suspendendo o cabelo todo para o alto do casco; os homens, esses não se preocupavam em não molhar o pelo, ao contrário metiam a cabeça bem debaixo da água e esfregavam com força as ventas e as barbas, fossando e fungando contra as palmas da mão. As portas das latrinas não descansavam, era um abrir e fechar de cada instante, um entrar e sair sem tréguas. Não se demoravam lá dentro e vinham ainda amarrando as calças ou as saias; as crianças não se davam ao trabalho de lá ir, despachavam-se ali mesmo, no capinzal dos fundos, por detrás da estalagem ou no recanto das hortas.
O rumor crescia, condensando-se; o zunzum de todos os dias acentuava-se; já se não destacavam vozes dispersas, mas um só ruído compacto que enchia todo o cortiço. Começavam a fazer compras na venda; ensarilhavam-se discussões e resingas; ouviam-se gargalhadas e pragas; já se não falava, gritava-se. Sentia-se naquela fermentação sanguínea, naquela gula viçosa de plantas rasteiras que mergulham os pés vigorosos na lama preta e nutriente da vida, o prazer animal de existir, a triunfante satisfação de respirar sobre a terra.
Da porta da venda que dava para o cortiço iam e vinham como formigas, fazendo compras.
Duas janelas do Miranda abriram-se. Apareceu numa a Isaura, que se dispunha a começar a limpeza da casa.

- Nhá Dunga! gritou ela para baixo, a sacudir um pano de mesa; se você tem cuscuz de milho hoje, bata na porta, ouviu?

A Leonor surgiu logo também, enfiando curiosa a carapinha por entre o pescoço e o ombro da mulata.
O padeiro entrou na estalagem, com a sua grande cesta à cabeça e o seu banco de pau fechado debaixo do braço, e foi estacionar em meio do pátio, à espera dos fregueses, pousando a canastra sobre o cavalete que ele armou prontamente. Em breve estava cercado por uma nuvem de gente. As crianças adulavam-no, e, à proporção que cada mulher ou cada homem recebia o pão, disparava para casa com este abraçado contra o peito. Uma vaca, seguida por um bezerro amordaçado, ia, tilintando tristemente o seu chocalho, de porta em porta, guiada por um homem carregado de vasilhame de folha.
O zunzum chegava ao seu apogeu. A fábrica de massas italianas, ali mesmo da vizinhança, começou a trabalhar, engrossando o barulho com o seu arfar monótono de máquina a vapor. As corridas até à venda reproduziam-se, transformando-se num verminar constante de formigueiro assanhado. Agora, no lugar das bicas apinhavam-se latas de todos os feitios, sobressaindo as de querosene com um braço de madeira em cima; sentia-se o trapejar da água caindo na folha. Algumas lavadeiras enchiam já as suas tinas; outras estendiam nos coradouros a roupa que ficara de molho. Principiava o trabalho. Rompiam das gargantas os fados portugueses e as modinhas brasileiras. Um carroção de lixo entrou com grande barulho de rodas na pedra, seguido de uma algazarra medonha algaraviada pelo carroceiro contra o burro.
E, durante muito tempo, fez-se um vaivém de mercadores. Apareceram os tabuleiros de carne fresca e outros de tripas e fatos de boi; só não vinham hortaliças, porque havia muitas hortas no cortiço. Vieram os ruidosos mascates, com as suas latas de quinquilharia, com as suas caixas de candeeiros e objetos de vidro e com o seu fornecimento de caçarolas e chocolateiras de folha-de-flandres. Cada vendedor tinha o seu modo especial de apregoar, destacando-se o homem das sardinhas, com as cestas do peixe dependuradas, à moda de balança, de um pau que ele trazia ao ombro. Nada mais foi preciso do que o seu primeiro guincho estridente e gutural para surgirem logo, como por encanto, uma enorme variedade de gatos, que vieram correndo acercar-se dele com grande familiaridade, roçando-se-lhe nas pernas arregaçadas e miando suplicantemente. O sardinheiro os afastava com o pé, enquanto vendia o seu peixe à porta das casinhas, mas os bichanos não desistiam e continuavam a implorar, arranhando os cestos que o homem cuidadosamente tapava mal servia ao freguês. Para ver-se livre por um instante dos importunos era necessário atirar para bem longe um punhado de sardinhas, sobre o qual se precipitava logo, aos pulos, o grupo dos pedinchões.
A primeira que se pôs a lavar foi a Leandra, por alcunha a “Machona”, portuguesa feroz, berradora, pulsos cabeludos e grossos, anca de animal do campo. Tinha duas filhas, uma casada e separada do marido, Ana das Dores, a quem só chamavam a “das Dores” e outra donzela ainda, a Nenen, e mais um filho, o Agostinho, menino levado dos diabos, que gritava tanto ou melhor que a mãe. A das Dores morava em sua casinha à parte, mas toda a família habitava no cortiço.
Ninguém ali sabia ao certo se a Machona era viúva ou desquitada; os filhos não se pareciam uns com os outros. A das Dores, sim, afirmavam que fora casada e que largara o marido para meter-se com um homem do comércio; e que este, retirando-se para a terra e não querendo soltá-la ao desamparo, deixara o sócio em seu lugar. Teria vinte e cinco anos.
Nenen dezessete. Espigada, franzina e forte, com uma proazinha de orgulho da sua virgindade, escapando como enguia por entre os dedos dos rapazes que a queriam sem ser para casar. Engomava bem e sabia fazer roupa branca de homem com muita perfeição.
Ao lado da Leandra foi colocar-se à sua tina a Augusta Carne Mole, brasileira, branca, mulher de Alexandre, um mulato de quarenta anos, soldado de policia, pernóstico, de grande bigode preto, queixo sempre escanhoado e um luxo de calças brancas engomadas e botões limpos na farda, quando estava de serviço. Também tinham filhos, mas ainda pequenos, um dos quais, a Jujú, vivia na cidade com a madrinha que se encarregava dela. Esta madrinha era uma cocote de trinta mil-réis para cima, a Léonie, com sobrado na cidade. Procedência francesa.
Alexandre, em casa, à hora de descanso, nos seus chinelos e na sua camisa desabotoada, era muito chão com os companheiros de estalagem, conversava, ria e brincava, mas envergando o uniforme, encerando o bigode e empunhando a sua chibata, com que tinha o costume de fustigar as calças de brim, ninguém mais lhe via os dentes e então a todos falava teso e por cima do ombro. A mulher, a quem ele só dava “tu” quando não estava fardado, era de uma honestidade proverbial no cortiço, honestidade sem mérito, porque vinha da indolência do seu temperamento e não do arbítrio do seu caráter.
Junto dela pôs-se a trabalhar a Leocádia, mulher de um ferreiro chamado Bruno, portuguesa pequena e socada, de carnes duras, com uma fama terrível de leviana entre as suas vizinhas. Seguia-se a Paula, uma cabocla velha, meio idiota, a quem respeitavam todos pelas virtudes de que só ela dispunha para benzer erisipelas e cortar febres por meio de rezas e feitiçarias. Era extremamente feia, grossa, triste, com olhos desvairados, dentes cortados à navalha, formando ponta, como dentes de cão, cabelos lisos, escorridos e ainda retintos apesar da idade. Chamavam-lhe “Bruxa”.
Depois seguiam-se a Marciana e mais a sua filha Florinda. A primeira, mulata antiga, muito seria e asseada em exagero: a sua casa estava sempre úmida das consecutivas lavagens. Em lhe apanhando o mau humor punha-se logo a espanar, a varrer febrilmente, e, quando a raiva era grande, corria a buscar um balde de água e descarregava-o com fúria pelo chão da sala. A filha tinha quinze anos, a pele de um moreno quente, beiços sensuais, bonitos dentes, olhos luxuriosos de macaca. Toda ela estava a pedir homem, mas sustentava ainda a sua virgindade e não cedia, nem à mão de Deus Padre, aos rogos de João Romão, que a desejava apanhar a troco de pequenas concessões na medida e no peso das compras que Florinda fazia diariamente à venda.
Depois via-se a velha Isabel, isto é, Dona Isabel, porque ali na estalagem lhe dispensavam todos certa consideração, privilegiada pelas suas maneiras graves de pessoa que já teve tratamento: uma pobre mulher comida de desgostos. Fora casada com o dono de uma casa de chapéus, que quebrou e suicidou-se, deixando-lhe uma filha muito doentinha e fraca, a quem Isabel sacrificou tudo para educar, dando-lhe mestre até de francês. Tinha uma cara macilenta de velha portuguesa devota, que já foi gorda, bochechas moles de pelancas rechupadas, que lhe pendiam dos cantos da boca como saquinhos vazios; fios negros no queixo, olhos castanhos, sempre chorosos engolidos pelas pálpebras. Puxava em bandós sobre as fontes o escasso cabelo grisalho untado de óleo de amêndoas doces. Quando saia à rua punha um eterno vestido de seda preta, achamalotada, cuja saia não fazia rugas, e um xale encarnado que lhe dava a todo o corpo um feitio piramidal. Da sua passada grandeza só lhe ficara uma caixa de rapé de ouro, na qual a inconsolável senhora pitadeava agora, suspirando a cada pitada.
A filha era a flor do cortiço. Chamavam-lhe Pombinha. Bonita, posto que enfermiça e nervosa ao último ponto; loura, muito pálida, com uns modos de menina de boa família. A mãe não lhe permitia lavar, nem engomar, mesmo porque o médico a proibira expressamente.
Tinha o seu noivo, o João da Costa, moço do comércio, estimado do patrão e dos colegas, com muito futuro, e que a adorava e conhecia desde pequenita; mas Dona Isabel não queria que o casamento se fizesse já. É que Pombinha, orçando aliás pelos dezoito anos, não tinha ainda pago à natureza o cruento tributo da puberdade, apesar do zelo da velha e dos sacrifícios que esta fazia para cumprir à risca as prescrições do médico e não faltar à filha o menor desvelo. No entanto, coitadas! daquele casamento dependia a felicidade de ambas, porque o Costa, bem empregado como se achava em casa de um tio seu, de quem mais tarde havia de ser sócio, tencionava, logo que mudasse de estado, restituí-las ao seu primitivo circulo social. A pobre velha desesperava-se com o fato e pedia a Deus, todas as noites, antes de dormir, que as protegesse e conferisse à filha uma graça tão simples que ele fazia, sem distinção de merecimento, a quantas raparigas havia pelo mundo; mas, a despeito de tamanho empenho, por coisa nenhuma desta vida consentiria que a sua pequena casasse antes de “ser mulher”, como dizia ela. E “que deixassem lá falar o doutor, entendia que não era decente, nem tinha jeito, dar homem a uma moça que ainda não fora visitada pelas regras! Não! Antes vê-la solteira toda a vida e ficarem ambas curtindo para sempre aquele inferno da estalagem!”
Lá no cortiço estavam todos a par desta história: não era segredo para ninguém. E não se passava um dia que não interrogassem duas e três vezes a velha com estas frases:

- Então? Já veio?

- Por que não tenta os banhos de mar?

- Por que não chama outro médico?

- Eu, se fosse a senhora, casava-os assim mesmo!

A velha respondia dizendo que a felicidade não se fizera para ela. E suspirava resignada.
Quando o Costa aparecia depois da sua obrigação para visitar a noiva, os moradores da estalagem cumprimentavam-no em silêncio com um respeitoso ar de lástima e piedade, empenhados tacitamente por aquele caiporismo, contra o qual não valiam nem mesmo as virtudes da Bruxa.
Pombinha era muito querida por toda aquela gente. Era quem lhe escrevia as cartas; quem em geral fazia o rol para as lavadeiras; quem tirava as contas; quem lia o jornal para os que quisessem ouvir. Prezavam-na com muito respeito e davam-lhe presentes, o que lhe permitia certo luxo relativo.
Andava sempre de botinhas ou sapatinhos com meias de cor, seu vestido de chita engomado; tinha as suas joiazinhas para sair à rua, e, aos domingos, quem a encontrasse à missa na igreja de São João Batista, não seria capaz de desconfiar que ela morava em cortiço.
Fechava a fila das primeiras lavadeiras, o Albino, um sujeito afeminado, fraco, cor de espargo cozido e com um cabelinho castanho, deslavado e pobre, que lhe caia, numa só linha, até ao pescocinho mole e fino. Era lavadeiro e vivia sempre entre as mulheres, com quem já estava tão familiarizado que elas o tratavam como a uma pessoa do mesmo sexo; em presença dele falavam de coisas que não exporiam em presença de outro homem; faziam-no até confidente dos seus amores e das suas infidelidades, com uma franqueza que o não revoltava, nem comovia. Quando um casal brigava ou duas amigas se disputavam, era sempre Albino quem tratava de reconciliá-los, exortando as mulheres à concórdia. Dantes encarregava-se de cobrar o rol das colegas, por amabilidade; mas uma vez, indo a uma república de estudantes, deram-lhe lá, ninguém sabia por que, uma dúzia de bolos, e o pobre diabo jurou então, entre lágrimas e soluços, que nunca mais se incumbiria de receber os róis.
E daí em diante, com efeito, não arredava os pezinhos do cortiço, a não ser nos dias de carnaval, em que ia, vestido de dançarina, passear à tarde pelas ruas e à noite dançar nos bailes dos teatros. Tinha verdadeira paixão por esse divertimento; ajuntava dinheiro durante o ano para gastar todo com a mascarada. E ninguém o encontrava, domingo ou dia de semana, lavando ou descansando, que não estivesse com a sua calça branca engomada, a sua camisa limpa, um lenço ao pescoço, e, amarrado à cinta, um avental que lhe caia sobre as pernas como uma saia. Não fumava, não bebia espíritos e trazia sempre as mãos geladas e úmidas.
Naquela manhã levantara-se ainda um pouco mais lânguido que do costume, porque passara mal a noite. A velha Isabel, que lhe ficava ao lado esquerdo, ouvindo-o suspirar com insistência, perguntou-lhe o que tinha.
Ah! muita moleza de corpo e uma pontada do vazio que o não deixava!
A velha receitou diversos remédios, e ficaram os dois no, meio de toda aquela vida, a falar tristemente sobre moléstias.
E, enquanto, no resto da fileira, a Machona, a Augusta, a Leocádia, a Bruxa, a Marciana e sua filha conversavam de tina a tina, berrando e quase sem se ouvirem, a voz um tanto cansada já pelo serviço, defronte delas, separado pelos jiraus, formava-se um novo renque de lavadeiras, que acudiam de fora, carregadas de trouxas, e iam ruidosamente tomando lugar ao lado umas das outras, entre uma agitação sem tréguas, onde se não distinguia o que era galhofa e o que era briga. Uma a uma ocupavam-se todas as tinas. E de todos os casulos do cortiço saiam homens para as suas obrigações. Por uma porta que havia ao fundo da estalagem desapareciam os trabalhadores da pedreira, de onde vinha agora o retinir dos alviões e das picaretas. O Miranda, de calças de brim, chapéu alto e sobrecasaca preta, passou lá fora, em caminho para o armazém, acompanhado pelo Henrique que ia para as aulas. O Alexandre, que estivera de serviço essa madrugada, entrou solene, atravessou o pátio, sem falar a ninguém, nem mesmo à mulher, e recolheu-se à casa, para dormir. Um grupo de mascates, o Delporto, o Pompeo, o Francesco e o Andréa, armado cada qual com a sua grande caixa de bugigangas, saiu para a peregrinação de todos os dias, altercando e praguejando em italiano.
Um rapazito de paletó entrou da rua e foi perguntar à Machona pela Nhá Rita.

- A Rita Baiana? Sei cá! Faz amanhã oito dias que ela arribou!

A Leocádia explicou logo que a mulata estava com certeza de pândega com o Firmo.

- Que Firmo? interrogou Augusta.

- Aquele cabravasco que se metia às vezes ali com ela. Diz que é torneiro.

- Ela mudou-se? perguntou o pequeno.

- Não, disse a Machona; o quarto está fechado, mas a mulata tem coisas lá. Você o que queria?

- Vinha buscar uma roupa que está com ela.

- Não sei, filho, pergunta na venda ao João Romão, que talvez te possa dizer alguma coisa.

- Ali?

- Sim, pequeno, naquela porta, onde a preta do tabuleiro está vendendo! Ó diabo! olha que pisas a boneca de anil! Já se viu que sorte? Parece que não vê onde pisa este raio de criança!

E, notando que o filho, o Agostinho, se aproximava para tomar o lugar do outro que já se ia: Sai daí, tu também, peste! Já principias na reinação de todos os dias? Vem para cá, que levas! Mas, é verdade, que fazes tu que não vais regar a horta do Comendador?

- Ele disse ontem que eu agora fosse à tarde, que era melhor.

- Ah! E amanhã, não te esqueças, recebe os dois mil-réis, que é fim do mês. Olha! Vai lá dentro e diz a Nenen que te entregue a roupa que veio ontem à noite.

O pequeno afastou-se de carreira, e ela lhe gritou na pista: E que não ponha o refogado no fogo sem eu ter lá ido!
Uma conversa cerrada travara-se no resto da fila de lavadeiras a respeito da Rita Baiana.

- É doida mesmo!... censurava Augusta. Meter-se na pândega sem dar conta da roupa que lhe entregaram... Assim há de ficar sem um freguês...

- Aquela não endireita mais!... Cada vez fica até mais assanhada!... Parece que tem fogo no rabo! Pode haver o serviço que houver, aparecendo pagode, vai tudo pro lado! Olha o que saiu o ano passado com a festa da Penha!...

- Então agora, com este mulato, o Firmo, é uma pouca-vergonha! Est’ro dia, pois você não viu? levaram ai numa bebedeira, a dançar e cantar à viola, que nem sei o que parecia! Deus te livre!

- Para tudo há horas e há dias!... - Para a Rita todos os dias são dias santos! A questão é aparecer quem puxe por ela!
 
- Ainda assim não e má criatura... Tirante o defeito da vadiagem...

- Bom coração tem ela, até demais, que não guarda um vintém pro dia de amanhã. Parece que o dinheiro lhe faz comichão no corpo!

- Depois é que são elas!... O João Romão já lhe não fia!

- Pois olhe que a Rita lhe tem enchido bem as mãos; quando ela tem dinheiro é porque o gasta mesmo!

E as lavadeiras não se calavam, sempre a esfregar, e a bater, e a torcer camisas e ceroulas, esfogueadas já pelo exercício. Ao passo que, em torno da sua tagarelice, o cortiço se embandeirava todo de roupa molhada, de onde o sol tirava cintilações de prata.
Estavam em dezembro e o dia era ardente. A grama dos coradouros tinha reflexos esmeraldinos; as paredes que davam frente ao Nascente, caiadinhas de novo, reverberavam iluminadas, ofuscando a vista. Em uma das janelas da sala de jantar do Miranda, Dona Estela e Zulmira, ambas vestidas de claro e ambas a limarem as unhas, conversavam em voz surda, indiferentes à agitação que ia lá embaixo, muito esquecidas na sua tranquilidade de entes felizes.
Entretanto, agora o maior movimento era na venda à entrada da estalagem. Davam nove horas e os operários das fábricas chegavam-se para o almoço. Ao balcão o Domingos e o Manuel não tinham mãos a medir com a criadagem da vizinhança; os embrulhos de papel amarelo sucediam-se, e o dinheiro pingava sem intermitência dentro da gaveta.

- Meio quilo de arroz!

- Um tostão de açúcar!

- Uma garrafa de vinagre!

- Dois martelos de vinho!

- Dois vinténs de fumo!

- Quatro de sabão!

E os gritos confundiam-se numa mistura de vozes de todos os tons.
Ouviam-se protestos entre os compradores:

- Me avie, seu Domingos! Eu deixei a comida no fogo!

- Ó peste! dá cá as batatas, que eu tenho mais o que fazer!

- Seu Manuel, não me demore, essa manteiga!

Ao lado, na casinha de pasto, a Bertoleza, de saias arrepanhadas no quadril, o cachaço grosso e negro, reluzindo de suor, ia e vinha de uma panela à outra, fazendo pratos, que João Romão levava de carreira aos trabalhadores assentados num compartimento junto. Admitira-se um novo caixeiro, só para o frege, e o rapaz, a cada comensal que ia chegando, recitava, em tom cantado e estridente, a sua interminável lista das comidas que havia. Um cheiro forte de azeite frito predominava. O parati circulava por todas as mesas, e cada caneca de café, de louça espessa, erguia um vulcão de fumo tresandando a milho queimado. Uma algazarra medonha, em que ninguém se entendia! Cruzavam-se conversas em todas as direções, discutia-se a berros, com valentes punhadas sobre as mesas. E sempre a sair, e sempre a entrar gente, e os que saiam, depois daquela comezaina grossa, iam radiantes de contentamento, com a barriga bem cheia, a arrotar.
Num banco de pau tosco, que existia do lado de fora, junto à parede e perto da venda, um homem, de calça e camisa de zuarte, chinelos de couro cru, esperava, havia já uma boa hora, para falar com o vendeiro.
Era um português de seus trinta e cinco a quarenta anos, alto, espadaúdo, barbas ásperas, cabelos pretos e maltratados caindo-lhe sobre a testa, por debaixo de um chapéu de feltro ordinário; pescoço de touro e cara de Hércules, na qual os olhos, todavia, humildes como os olhos de um boi de canga, exprimiam tranquila bondade.

- Então ainda não se pode falar ao homem? perguntou ele, indo ao balcão entender-se com o Domingos.

- O patrão está agora muito ocupado. Espere!

- Mas são quase dez horas e estou com um gole de café no estômago!

- Volte logo!

- Moro na cidade nova. É um estirão daqui! O caixeiro gritou então para a cozinha, sem interromper o que fazia:

- O homem que ai está, seu João, diz que se vai embora!

- Ele que espere um pouco, que já lhe falo! respondeu o vendeiro no meio de uma carreira. Diga-lhe que não vá!

- Mas é que ainda não almocei e estou aqui a tinir!... observou o Hércules com a sua voz grossa e sonora.

- Ó filho, almoce ai mesmo! Aqui o que não falta é de comer. Já podia estar aviado!

- Pois vá lá! resolveu o homenzarrão, saindo da venda para entrar na casa de pasto, onde os que lá se achavam o receberam com ar curioso, medindo-o da cabeça aos pés, como faziam sempre com todos os que ai se apresentavam pela primeira vez.

E assentou-se a uma das mesinhas, vindo logo o caixeiro cantar-lhe a lista dos pratos.

- Traga lá o pescado com batatas e veja um martelo de vinho.

- Quer verde ou virgem?

- Venha o verde; mas anda com isso, filho, que já não vem sem tempo!


Continua página 20...

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Leia também:

O Cortiço - III Eram cinco horas da manhã 
O Cortiço - IV Meia hora depois
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Aluísio Azevedo (Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo), caricaturista, jornalista, romancista e diplomata, nasceu em São Luís, MA, em 14 de abril de 1857, e faleceu em Buenos Aires, Argentina, em 21 de janeiro de 1913.

Era filho do vice-cônsul português David Gonçalves de Azevedo e de D. Emília Amália Pinto de Magalhães e irmão mais moço do comediógrafo Artur Azevedo. Sua mãe havia casado, aos 17 anos, com um comerciante português. O temperamento brutal do marido determinou o fim do casamento. Emília refugiou-se em casa de amigos, até conhecer o vice-cônsul de Portugal, o jovem viúvo David. Os dois passaram a viver juntos, sem contraírem segundas núpcias, o que à época foi considerado um escândalo na sociedade maranhense.

Da infância à adolescência, Aluísio estudou em São Luís e trabalhou como caixeiro e guarda-livros. Desde cedo revelou grande interesse pelo desenho e pela pintura, o que certamente o auxiliou na aquisição da técnica que empregará mais tarde ao caracterizar os personagens de seus romances. Em 1876, embarcou para o Rio de Janeiro, onde já se encontrava o irmão mais velho, Artur. Matriculou-se na Imperial Academia de Belas Artes, hoje Escola Nacional de Belas Artes. Para manter-se fazia caricaturas para os jornais da época, como O Fígaro, O Mequetrefe, Zig-Zag e A Semana Ilustrada. A partir desses “bonecos”, que conservava sobre a mesa de trabalho, escrevia cenas de romances.

A morte do pai, em 1878, obrigou-o a voltar a São Luís, para tomar conta da família. Ali começou a carreira de escritor, com a publicação, em 1879, do romance Uma lágrima de mulher, típico dramalhão romântico. Ajuda a lançar e colabora com o jornal anticlerical O Pensador, que defendia a abolição da escravatura, enquanto os padres mostravam-se contrários a ela. Em 1881, Aluísio lança O mulato, romance que causou escândalo entre a sociedade maranhense pela crua linguagem naturalista e pelo assunto tratado: o preconceito racial. O romance teve grande sucesso, foi bem recebido na Corte como exemplo de Naturalismo, e Aluísio pôde retornar para o Rio de Janeiro, embarcando em 7 de setembro de 1881, decidido a ganhar a vida como escritor.

Quase todos os jornais da época tinham folhetins, e foi num deles que Aluísio passou a publicar seus romances. A princípio, eram obras menores, escritas apenas para garantir a sua sobrevivência. Depois, surgiu nova preocupação no universo de Aluísio: a observação e análise dos agrupamentos humanos, a degradação das casas de pensão e sua exploração pelo imigrante, principalmente o português. Dessa preocupação resultariam duas de suas melhores obras: Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890). De 1882 a 1895 escreveu sem interrupção romances, contos e crônicas, além de peças de teatro em colaboração com Artur de Azevedo e Emílio Rouède.

Em 1895 ingressou na diplomacia, momento em que praticamente cessa sua atividade literária. O primeiro posto foi em Vigo, na Espanha. Depois serviu no Japão, na Argentina, na Inglaterra e na Itália. Passara a viver em companhia de D. Pastora Luquez, de nacionalidade argentina, junto com os dois filhos, Pastor e Zulema, por ele adotados. Em 1910, foi nomeado cônsul de 1ª. classe, sendo removido para Assunção. Buenos Aires foi seu último posto. Ali faleceu, aos 56 anos. Foi enterrado naquela cidade. Seis anos depois, por uma iniciativa de Coelho Neto, a urna funerária de Aluísio Azevedo chegou a São Luís, onde o escritor foi sepultado.

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