volume IV
Sodoma e Gomorra
Capítulo Primeiro
Capítulo Primeiro
Segunda Parte
continuando...
Enquanto eu conversava com a Sra. de Guermantes, antes mesmo que ela tivesse deixado o vestíbulo, ouvi uma voz que, no futuro, devia discernir sem erro possível. Era, no caso particular, a do Sr. de Vaugoubert conversando com o Sr. de Charlus. Um clínico não precisa que o doente em observação erga a camisa, nem de ouvir a sua respiração, a voz é suficiente. Quantas vezes mais tarde fiquei impressionado, num salão, pela entonação ou o riso de determinado homem, que no entanto copiava exatamente a linguagem de sua profissão ou as maneiras do seu ambiente, afetando uma distinção severa ou uma familiaridade vulgar, mas cuja voz falsa bastava para assinalar:
"é um Charlus" ao meu ouvido treinado como o diapasão de um afinador! Naquele
momento, passou todo o pessoal embaixada, saudando o Sr. de Charlus. Se bem que minha
descoberta do gênero de doença em questão datasse apenas daquele mês (quando avistara o Sr.
de Charlus e Jupien), eu não teria tido necessidade de fazer perguntas nem de auscultar para
emitir um diagnóstico.
Sr. de Vaugoubert, conversando com o Sr. de Charlus, pareceu incerto: tudo, deveria
saber do que se tratava, após as dúvidas da adolescência invertido julga-se o único de seu tipo no
universo; só mais tarde outro exagero que a única exceção é o homem normal. Porém, ansioso e
timorato, o Sr. de Vaugoubert não se entregava há muito tempo que para ele teria sido o prazer. A
carreira diplomática tivera sobre ele efeito de uma ordenação religiosa. Combinada com a
assiduidade à E. de Ciências Políticas, ela o votara desde os seus vinte anos à castidade cristã.
Assim como cada sentido perde força e vivacidade, atrofiando quando não é posto para funcionar,
o Sr. de Vaugoubert, da mesma forma que o homem civilizado já não seria capaz dos exercícios
de força em acuidade do ouvido do homem das cavernas, tinha perdido a perspicácia especial
que raramente se encontrava em falta no Sr. de Charlus; e, mesas oficiais, seja em Paris, seja no
estrangeiro, o ministro pleni-potentário não chegava sequer a reconhecer aqueles que, sob o
disfarce do uniforme, eram no fundo seus iguais. Alguns nomes pronunciados pelo Sr. de Charlus,
indignado se os citassem por seus gostos, mas sempre se divertindo em fazer conhecer os dos
outros, causaram no Sr. de Vaugoubert um espanto delicioso. Não que depois de tantos anos ele
sonhasse em desfrutar de alguma oportunidade feliz. Porém, essas revelações rápidas,
semelhantes àquelas que nas tragédias de Racine mostram a Atália e a Abrler que Jonas
pertence à raça de Davi, que Ester, sentada na púrpura, tem pais judeus, mudando o aspecto da
alegação de X... ou de determinado serviço do Ministério das Relações Exteriores, tornavam
retrospectivamente esses palácios tão misteriosos como o templo de Jerusalém ou a sala do trono
de Susa. Diante daquela embaixada, cujo pessoal jovem foi inteiro apertar a mão do Sr. de
Charlus, o Sr. de Vaugoubert assumiu o ar maravilhado de Elisa ao exclamar, em Esther:
- Céus! Que numeroso enxame de inocentes beldades se oferta a meus olhos em multidão e
sai de todos os lados! Que amável pudor em seus rostos se espelha!
Depois, desejoso de ser mais "bem informado", lançou risonho ao Sr. de Charlus um olhar
tolamente interrogativo e concupiscente:
- Mas é claro! - disse o Sr. de Charlus, com o ar douto de um erudito falando a um ignaro.
E logo o Sr. de Vaugoubert (o que muito irritou o Sr. de Charlus) não tirou mais os olhos daqueles
jovens secretários, que o embaixador de X na França, velho reincidente, não escolhera ao acaso.
O Sr. de Vaugoubert calava-se; eu via apenas os seus olhares. Mas, habituado desde a infância a
atribuir, mesmo ao que é mudo, a linguagem dos clássicos, eu fazia com que os olhos do Sr. de
Vaugoubert dissessem os versos com que Ester explica a Elisa que Mardoqueu, zeloso por sua
religião, se empenhou em colocar a serviço da rainha somente moças que professassem o
mesmo credo. Entretanto o seu amor pela nossa nação povoou este palácio de filhas de Sião,
Jovens e tenras flores pela sorte agitadas, sob um céu estrangeiro, como eu, transplantadas. Em
local isolado de testemunhas profanas, Ele (o excelente embaixador) empenha seu estudo e seus
cuidados em formá-las. Por fim o Sr. de Vaugoubert falou sem ser pelo olhar.
- Quem sabe - disse com melancolia se, no país em que vivo, não existe a mesma coisa?
- É provável - respondeu o Sr. de Charlus -, a começar pelo rei Teodósio, conquanto eu
não saiba nada de positivo a seu respeito. - Oh! Isso não! - Então não devia ser permitido que
parecesse tanto. E é todo cheio de maneiras. É o gênero "mimoso", o tipo que eu mais detesto.
Eu não teria coragem de me mostrar em sua companhia na rua. Além disso, o senhor deve muito
bem conhecê-lo pelo que é; é conhecido como o lobo branco. - O senhor se engana
completamente a seu respeito. Aliás, ele é encantador. No dia em que foi assinado o acordo com
a França, o rei me beijou. Nunca fiquei tão emocionado. - Era a ocasião para o senhor lhe dizer o
que desejava. - Oh, meu Deus, que horror! Se ele suspeitasse! Mas quanto a isso não tenho
receio. - Palavras que ouvi, pois estava pouco afastado, e que fizeram com que recitasse
mentalmente:
“Até hoje o rei ignora quem sou, E este segredo mantém presa a minha língua.”
Esse diálogo meio mudo, meio falado só durara poucos instantes e eu apenas dera alguns
passos no salão com a duquesa de Guermantes quando uma pequena senhora morena,
extremamente bonita, a deteve:
- Desejava tanto vê-la! D'Annunzio a avistou de um camarote; escreveu à princesa de T***
uma carta em que disse que jamais vira algo tão belo. Ele daria toda a sua vida por dez minutos
de conversação com a senhora. Em todo caso, mesmo que não possa ou não queira, a carta está
em meu poder. Seria preciso marcar-me um encontro. Há certas coisas que não posso dizer aqui.
Vejo que o senhor não me reconhece - acrescentou dirigindo-se a mim -; conheci-o na casa da
princesa de Parma a qual eu nunca tinha ido. O imperador da Rússia gostaria que seu pai fosse
enviado à Petersburgo. Se pudesse comparecer na terça-feira, justamente Isvolski estará lá,
falaria com o senhor. Tenho um presente para lhe dar querida - acrescentou, voltando-se para a
duquesa - e que não daria a nenhuma outra pessoa. Os manuscritos de três peças de Ibsen, que
ele mandou pelo seu velho enfermeiro. Guardarei um e lhe darei os outros.
O duque de Guermantes não estava encantado com tais ofertas. Como não tinha certeza
se Ibsen ou d'Annunzio eram vivos ou mortos; via os escritores e os dramaturgos indo visitar sua
mulher e pondo-a em suas obras. As pessoas da sociedade facilmente imaginam os livros como
sendo uma espécie de cubo, do qual uma das faces é retirada, de modo que o autor se apressa
em "fazer entrar" lá dentro as pessoas que encontra. É claro que se trata de um procedimento
desleal, e não passam de gente de pouca importância. Certo, não seria aborrecido vê-los "de
passagem", graças a eles, se lemos um livro ou um artigo, conhecemos "o reverso cartas",
podemos "levantar as máscaras". Apesar de tudo, o mais prudente é limitarmo-nos aos autores
mortos. O Sr. de Guermantes apenas achava "perfeitamente conveniente" o senhor que fazia os
necrológicos no Le Gaur; este, pelo menos, contentava-se em citar o nome do Sr. de Guermantes
no alto das pessoas relacionadas, "notadamente" nos enterros em que assinara o livro de
presença. Quando preferia que seu nome não figurasse, em vez de assinar o duque enviava uma
carta de pêsames à família do falecido, testemunhando-lhe os seus sentimentos. Que essa família
pudesse publicar no jornal:
"Entre as cartas recebidas, citemos a do duque de Guermantes, etc.", aquilo não era culpa
do noticiarista, e sim do filho, irmão ou pai da morta, que o duque qualificava de arrivistas, e com
quem daí em diante, estava decidido a não ter mais relações (o que denominavas, não
conhecendo bem o sentido das locuções, "ter contas a ajustar"). Por certo que os nomes de Ibsen
e d'Annunzio, e sua sobrevivência; fizeram franzir as sobrancelhas do duque, que ainda não
estava muito longe de nós para não ter ouvido as amabilidades diversas da Sra. Timoléon
d'Amoncourt. Era uma mulher encantadora, de um espírito, como sua beleza, tão deslumbrante,
que só um dos dois teria conseguido agradar. Mas, nascida fora do meio em que agora vivia, só
tendo aspirado a princípio a um salão literário, amiga sucessivamente de modo algum amante,
pois era de costumes muito puros e exclusivamente de cada grande escritor que lhe dava todos
os seus manuscritos e escrevia livros para ela; e, tendo-a o acaso introduzido no faubourg SaintGermain, esses privilégios literários lhe valeram naquele meio. E agora desfrutava de uma
posição que a eximia de outras graças além da sua presença espalhava. Mas, habituada outrora à
esperteza, às manobras, aos serviços, perseverava neles, embora não fossem mais necessários.
Tinha sempre um segredo de Estado para revelar, um potentado a nos dar a conhecer, a aquarela
de um mestre a nos oferecer. Em todas essas atrações inúteis havia um pouco de mentira, mas
eles faziam de sua vida uma comédia de uma complicação cintilante e era exato que ela
conseguia nomear prefeitos e generais. Sempre caminhando a meu lado, a duquesa de
Guermantes deixava a luminosidade azulada dos olhos flutuar à sua frente, porém no vago, a fim
de evitar as pessoas com quem não queria entrar em contato e das quais por vezes adivinhava,
de longe, o obstáculo ameaçador. Avançávamos entre uma dupla sebe de convidados, que,
sabendo que jamais conheceriam "Oriane", desejavam ao menos, como curiosidade, mostrá-la à
própria esposa:
- Ursule, depressa, depressa, vem ver a senhora de Guermantes, que está conversando
com esse rapaz. -
E sentia-se que não faltava muito para que trepassem nas cadeiras para ver melhor, como
na parada de 14 de julho ou no Grand Prix. Não é que a duquesa de Guermantes tivesse um
salão mais aristocrático do que sua prima. O da primeira era frequentado por pessoas que a
segunda jamais quis convidar, principalmente por causa de seu marido. Jamais teria recebido a
Sra. Alphonse de Rothschild, que, amiga íntima da Sra. de La Trémoïlle e da Sra. de Sagan, como
a própria Oriane, freqüentava muito a casa desta última. O mesmo ocorria também com o barão
Hirsch, que o príncipe de Gales levara a sua casa, mas não à casa da princesa, a quem teria
desgostado com isso, e igualmente com algumas grandes notoriedades bonapartistas ou até
republicanas, que interessavam à duquesa, mas que o príncipe, realista convicto, não teria
desejado receber. Visto que seu anti-semitismo era também de princípios, não se dobrava diante
de nenhuma elegância, por mais acreditada que fosse, e se recebia Swann, de quem era o amigo
de sempre, sendo aliás o único dos Guermantes que o chamava de Swann e não de Charles, é
que, sabendo que a avó de Swann, protestante casada com um judeu, tinha sido amante do
duque de Berri, tentava de vez em quando acreditar na lenda que fazia o pai de Swann um filho
natural do príncipe. Nessa hipótese, que todavia falsa, Swann, filho de um católico, o qual por sua
vez era filho de Bourbon e de uma católica, nada tinha que não fosse cristão.
- Como, você não conhece estes esplendores? - perguntou a duquesa, ao falar-me do
lugar em que nos achávamos. Mas, depois de celebrado o "palácio" da prima, apressou-se a
acrescentar que preferia mil vezes "seu humilde casebre". - Aqui, é admirável para uma visita.
Mas morreria de desgosto se me fosse necessário ficar dormindo em quartos onde aconteceram
tantos fatos históricos. Isso me causaria o efeito de ter ficado após o fechamento, de ter sido
esquecida, no castelo de Bloiag Fontainebleau ou até no Louvre, e de ter, como único recurso
contra a Alteza, murmurar para mim mesma que estou no quarto em que Monalde foi
assassinado. Como camomila, é insuficiente. Veja, ali está a Sra. Saint-Euverte. Jantamos há
pouco em sua casa. Como ela dá amanhã a grande recepção anual, pensava que ela teria ido
dormir. Mas ela não parece perder uma festa. Se esta tivesse lugar no campo, ela viria numa
carroça, mas não deixaria de comparecer.
Na realidade, a Sra. de Saint-Euverte viera naquela noite, menos pelo prazer de não faltar
a uma festa em casa dos outros do que para assegurar o sucesso da sua, recrutar os últimos
aderentes e, de qualquer maneira, passar in extremis a revista das tropas que, no dia seguinte,
deixariam evoluir brilhantemente no seu garden-party. Pois já não era de poucos anos que os
convidados das festas Saint-Euverte não eram mais os mesmos de antigamente. As notabilidades
femininas do meio Guermantes, tão disseminadas então, cumuladas de gentileza pela dona da
casa, tinham poucos levado suas amigas. Ao mesmo tempo, por um trabalho paralelamente
progressivo, mas em sentido inverso, a Sra. de Saint-Euverte reduzira, ano após ano, o número
das pessoas desconhecidas do mundo elegante. Deixava-se de ver uma, depois outra. Durante
algum tempo funcionou o sistema de "fornadas", que permitia, graças às festas sobre as quais se
fazia social, convidar os renegados para que se divertissem entre eles, o que pensava de convidá-los com as pessoas do primeiro nível. De que podiam queixar-se? Não tinham (panem et
circenses) bolinhos e um belo programa musical? Assim, de alguma forma em simetria com as
duas duquesas exiladas, que outrora, quando estreara o salão Saint-Euverte, tinham sustentado,
como duas cariátides, a abóbada oscilante, nos últimos anos mescladas à alta sociedade, não se
distinguiram mais que duas pessoas heterogêneas: a velha Sra. de Cambremer e a mulher de um
arquiteto linda voz, à qual era-se freqüentemente obrigado a pedir que cantasse. Não conhecendo
mais ninguém na casa da Sra. de Saint-Euverte, chorando suas companheiras perdidas, sentindo
que incomodavam, pareciam estar quase morrendo de frio como duas andorinhas que não
emigraram a tempo. Assim, no ano seguinte não foram convidadas; a Sra. de Franquetot procurou
batalhar em favor da prima que tanto apreciava a música. Mas, como não pôde obter para ela
uma resposta mais explícita que estas palavras:
"Mas sempre se pode entrar para ouvir a música que lhe agrade, não há nenhum crime nisto!", a Sra. de Cambremer não julgou o convite muito insistente, e desistiu.
"Mas sempre se pode entrar para ouvir a música que lhe agrade, não há nenhum crime nisto!", a Sra. de Cambremer não julgou o convite muito insistente, e desistiu.
Diante dessa transmutação, operada pela Sra. de Saint-Euverte, de um salão de leprosos
em um salão de grandes damas (a última forma, de aparência ultra-chique, que ele havia
assumido), podia causar espanto que a pessoa que daria no dia seguinte a festa mais brilhante da
temporada precisasse, na véspera, dirigir um supremo apelo às suas tropas. Mas é que a
preeminência do salão Saint-Euverte só existia para aqueles cuja vida mundana consiste apenas
em ler a notícia das matinês e dos saraus, no Le Gaulois ou no Fígaro, sem jamais terem ido a
nenhum deles. A esses mundanos, que só veem a sociedade no jornal, a enumeração das
embaixatrizes da Inglaterra, da Áustria, etc., das duquesas d'Uzes, de La Trémoille, etc., etc.
bastava para que imaginassem de bom grado o salão Saint-Euverte como o primeiro de Paris,
quando de fato era dos últimos. Não que as notícias fossem mentirosas. A maioria das
personalidades citadas tinham estado presentes. Mas cada uma comparecera à custa de súplicas,
finezas, serviços prestados, e tendo o sentimento de honrar infinitamente a Sra. de Saint-Euverte.
Tais salões, mais evitados que procurados, e aonde só se vai de encomenda, por assim dizer, só
iludem as leitoras da seção de "Mundanismo". Passam por alto uma festa verdadeiramente
elegante, em que uma dona de casa, podendo ter todas as duquesas, que ardem por estar "entre
os eleitos", só convida a duas ou três, e não manda pôr o nome de seus convidados no jornal.
Assim essas mulheres, desconhecendo ou desdenhando o poder que assumiu a publicidade
atualmente, são elegantes para a rainha da Espanha, mas desconhecidas da multidão, porque a
primeira sabe, e a segunda ignora quem elas são.
A Sra. de Saint-Euverte não era dessas mulheres e, como boa apanhadora, vinha colher
para o dia seguinte tudo quanto era convidado. O Sr. de Charlus não o era, havia se recusado
sempre a ir à casa dela. Porém estava rompido com tanta gente que a Sra. de Saint-Euverte podia
atribuir aquilo ao temperamento do barão.
continua na página 32...
________________
________________
Leia também:
Volume 1
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Sodoma e Gomorra (Cap I - Enquanto eu conversava)
Volume 5
A Prisioneira (Prefácio)Volume 6
Volume 7
Nenhum comentário:
Postar um comentário