Para o sr. Lee e Alice, em retribuição ao amor e afeto
Os advogados, suponho, um dia foram crianças.
CHARLES LAMB
PRIMEIRA PARTE
10
continuando...
Num sábado, Jem e eu resolvemos sair com nossas espingardas para ver se achávamos um coelho ou um esquilo. Uns
quinhentos metros depois da casa dos Radley, notei que Jem estava olhando para algo na rua. Ele tinha inclinado a cabeça de
lado e estava olhando com o canto do olho esquerdo.
— O que você está olhando?
— Aquele cachorro velho lá embaixo — ele respondeu.
— É o velho Tim Johnson, não é?
— É.
Tim Johnson era o cachorro do sr. Harry Johnson, o motorista do ônibus de Mobile que morava no sul da cidade. Tim era
um cachorro castanho, ótimo passarinheiro, e estimado por todos em Maycomb.
— O que ele está fazendo?
— Não sei, Scout. É melhor irmos para casa.
— Ah, Jem, estamos em fevereiro, não é mês de cachorro louco.
— Não interessa, vou chamar a Cal.
Corremos para casa e fomos para a cozinha.
— Cal, pode ir com a gente ali na calçada um instante? — perguntou Jem.
— Para quê? Não posso ir até a calçada toda hora.
— Tem algo errado com um cachorro velho lá longe.
Calpúrnia deu um suspiro.
— Não posso fazer curativo em pata de cachorro agora. Tem gaze no banheiro, pega lá e faz você.
Jem balançou a cabeça.
— Ele está doente, Cal. Tem algo errado com ele.
— O que ele está fazendo? Tentando morder o rabo?
— Não, ele está fazendo assim.
Jem abriu e fechou a boca como um peixe de aquário, encolheu os ombros e contorceu-se:
— Ele está se mexendo assim, mas parece que não quer fazer isso.
— Você está inventando história, Jem Finch? — Calpúrnia endureceu a voz.
— Não, Cal, juro que não.
— Ele está correndo?
— Não, está andando devagar, bem devagar. Vem vindo para cá.
Calpúrnia lavou as mãos e foi para o jardim atrás de Jem.
— Não estou vendo nenhum cachorro — ela disse.
Ela nos seguiu até depois da casa dos Radley e olhou para onde Jem apontava. Tim Johnson era pouco mais do que uma
mancha ao longe, mas estava se aproximando. Ele andava meio desequilibrado, como se as patas da direita fossem menores do
que as da esquerda. Parecia um carro atolado num banco de areia.
— Ele está andando torto — disse Jem
Calpúrnia olhou bem, depois nos agarrou pelos ombros e nos puxou para casa. Fechou a porta, pegou o telefone e pediu à
telefonista, bem alto:
— Preciso falar com o escritório do sr. Finch!
— Sr. Finch, aqui é a Cal — disse, quando ele atendeu. — Juro por Deus que tem um cachorro louco na rua… está vindo
para cá, sim, senhor… Sr. Finch, tenho certeza… É o velho Tim Johnson, sim, senhor… sim... sim.
Ela desligou o telefone e balançou a cabeça quando perguntamos o que Atticus tinha dito. Depois, bateu no gancho do
telefone e pediu:
— Srta. Eula May, já falei com o sr. Finch, não precisa ligar de novo; será que pode ligar para a srta. Rachel e para a srta.
Stephanie e para todo mundo que tem telefone nessa rua e avisar que um cachorro louco vem andando para cá? Por favor!
Calpúrnia ficou ouvindo a telefonista e retrucou:
— Eu sei que estamos em fevereiro, srta. Eula May. Mas reconheço um cachorro louco quando vejo um. Por favor, rápido!
Calpúrnia perguntou a Jem:
— Os Radley têm telefone?
Jem procurou na agenda e respondeu que não.
— De todo jeito, eles não saem de casa, Cal.
— Não importa, vou avisar.
Ela correu para a varanda, e Jem e eu fomos atrás:
— Vocês fiquem em casa! — ela gritou.
A vizinhança tinha recebido o recado de Calpúrnia. Todas as portas de madeira estavam fechadas. E nem sinal de Tim
Johnson. Calpúrnia correu até a casa dos Radley, segurando a saia e o avental acima dos joelhos. Subiu a escada da frente e
bateu na porta. Ninguém atendeu, então ela gritou:
— Sr. Nathan, sr. Arthur, tem um cachorro louco vindo para cá! Um cachorro louco está vindo!
— Ela devia ir para os fundos da casa — sugeri.
Jem balançou a cabeça.
— Agora, não faz diferença.
Calpúrnia bateu na porta, em vão. Dava a impressão de que ninguém tinha ouvido o aviso dela.
Quando ela saiu correndo para a varanda dos fundos, um Ford preto chegou na nossa entrada de garagem. Atticus e o sr.
Heck Tate saltaram dele.
O sr. Heck Tate era o xerife de Maycomb. Era alto como Atticus, porém mais magro. Tinha o nariz comprido, usava botas
com reluzentes ilhoses de metal, calças de montaria e jaqueta xadrez. Tinha balas de revólver no cinturão. E carregava um
rifle pesado. Quando os dois chegaram na varanda, Jem abriu a porta de casa.
— Fique dentro de casa, filho. Onde ele está, Cal? — perguntou Atticus.
— Já devia ter chegado — Calpúrnia respondeu, apontando para a rua.
— O cachorro está vindo devagar, não é? — perguntou o sr. Tate.
— Sim, senhor, está naquela fase que fica se contorcendo, sr. Heck.
— Vamos atrás dele, Heck? — perguntou Atticus.
— É melhor esperarmos, sr. Finch. Cachorro louco costuma andar em linha reta, mas nunca se sabe. Espero que ele siga a
curva da rua, senão vai dar direto no quintal dos Radley. Vamos aguardar um pouco.
— Acho que ele não vai entrar no quintal dos Radley, não vai conseguir passar pela cerca. Ele provavelmente vai seguir
pela rua… — disse Atticus.
Eu pensava que cachorros loucos babavam, corriam, pulavam e mordiam o pescoço das pessoas e que só apareciam em
agosto. Ficaria mais calma se Tim Johnson tivesse agido dessa forma.
Nada é tão assustador quanto uma rua deserta, à espera. As árvores não se mexiam, os pássaros não cantavam, os
carpinteiros da casa da srta. Maudie tinham sumido. Ouvi o sr. Tate fungar e assoar o nariz. Depois, apoiou o rifle no braço.
Vi o rosto da srta. Stephanie Crawford emoldurado na janela da frente. A srta. Maudie apareceu ao lado dela. Atticus apoiou o
pé na trave de uma cadeira e passou a mão lentamente pela coxa.
— Lá vem ele — avisou baixinho.
continua página 072...
___________________
Leia também:
O Sol é para todos: 1ª Parte (10b)
__________________
Copyright © 1960 by Harper Lee, renovado em 1988
Copyright da tradução © José Olympio
Título do original em inglês
TO KILL A MOCKINGBIRD
__________________
Um dos romances mais adorados de todos os tempos, O sol é para todos conta a história de duas crianças no árido terreno sulista norte-americano da Grande Depressão no início dos anos 1930.
Nenhum comentário:
Postar um comentário