segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Marcel Proust - A Fugitiva (Mágoa e Esquecimento - i)

em busca do tempo perdido

volume VI
A Fugitiva

Capítulo I
Mágoa e Esquecimento


continuando...

   Gostaria de ver Albertine imediatamente. Ao notar sua mentira, ao ciúme pelo desconhecido, acrescentava-se a dor de que tivesse deixado se presentear daquela maneira. Mais presentes lhe dava eu; mas uma mulher a quem sustentamos não nos parece uma mulher sustentada enquanto não sabemos que o é pelos outros. E, todavia, já que gastara continuamente tanto dinheiro com ela, eu a aceitara apesar dessa baixeza moral; baixeza eu mantivera nela, que aumentara talvez, ou talvez criara. Depois, como tem dom de inventar histórias para embalar a nossa dor, como chegamos, quase a morrer de fome, a nos convencer que um desconhecido vai nos deixar uma fortuna de cem milhões. Imaginei Albertine em meus braços, explicando-me uma palavra que era por causa da semelhança de fabricação que ela havia comprado o outro anel, e que fora ela mesma quem mandara gravar seu monograma nele. Mas tal explicação ainda era frágil, ainda não tivera tempo de penetrar profundamente em meu espírito suas raízes benfazejas; minha dor, assim, não podia ser acalmada tão depressa. E imaginava que tantos homens, que contam aos outros que sua amante é muito dedicada, sofrem de torturas semelhantes. É desse modo que mentem aos outros e a si mesmos. Não mentem de todo, aliás; desfrutam com essas mulheres de momentos verdadeiramente doces; mas pensemos em tudo o que essa gentileza que elas têm para com eles diante dos amigos, e que os leva a se vangloriarem, e em tudo o que essa gentileza que têm quando estão sozinhas com seus amantes desconhecidos, e que permite a estes abençoá-las, recobre de horas ignoradas em que o amante sofreu, duvidou, fez em toda parte buscas inúteis para conhecer a verdade! É a tais sofrimentos que se liga a doçura de amar, de se encantar com as frases mais insignificantes de uma mulher, frases que sabemos ser insignificantes, mas que perfumamos com o seu cheiro. Naquele momento, eu já não podia deleitar-me em respirar, pela recordação, o de Albertine. Aterrado, com os dois anéis na mão, olhava aquela águia impiedosa, cujo bico me atormentava o coração, cujas asas de plumas em relevo tinham arrebatado a confiança que eu conservava em minha amiga, e sob cujas garras o meu espírito dilacerado não podia escapar um só instante às perguntas feitas sem cessar em relação àquele desconhecido, de quem a águia sem dúvida simbolizava o nome, sem todavia torná-lo legível, desconhecido que ela certamente amara outrora e que sem dúvida havia reencontrado há pouco tempo; pois fora no dia tão suave, tão familiar, do passeio que fizemos juntos no Bois, que eu tinha visto pela primeira vez o segundo anel, aquele em que a águia parecia mergulhar o bico na toalha de sangue claro do rubi.
   De resto se, da manhã à noite, eu não cessava de sofrer pela partida de Albertine, isto não significava que só pensasse nela. Por um lado, como o seu encanto, tendo desde muito tempo atingido aos poucos até os objetos mais afastados dela, e que não eram menos eletrizados pela mesma emoção que ela me causava, se algo me fazia pensar em Incarville, ou nos Verdurin, ou em um novo papel de Léa, um fluxo de sofrimento vinha me ferir. Por outro lado, o que eu mesmo chamava pensar em Albertine era pensar nos meios de fazê-la voltar, de juntar-me a ela, de saber o que andava fazendo. De modo que, se, durante essas horas de martírio incessante, um gráfico pudesse representar as imagens que acompanhavam o meu sofrimento, nele se veriam a estação de Orsay, as cédulas oferecidas à Sra. Bontemps, Saint-Loup debruçado à escrivaninha inclinada de uma agência de telégrafo, onde preenchia um formulário de telegrama para mim, e nunca a imagem de Albertine. Da mesma forma que, no decurso de toda a nossa vida, o nosso egoísmo vê o tempo inteiro à sua frente os objetivos preciosos para o nosso eu; mas, jamais encara esse mesmo eu que não deixa de considerá-los, assim também o desejo, que dirige nossos atos, desce até eles; mas não remonta a si ou porque, excessivamente utilitário, se precipita na ação e desdenha o momento, ou porque procuramos o futuro para corrigir as decepções do presente; finalmente porque a preguiça do espírito o impele a deslizar pela vertente imaginação em vez de fazê-lo subir a rampa abrupta da introspecção. Nessas horas de crise em que jogaríamos toda a nossa vida, à medida que a de quem ela depende revela melhora imensidade do lugar que ocupa para deixando nada no mundo que não seja transtornado por ela, proporcional imagem dessa criatura diminui a ponto de se tornar imperceptível. Em todas as coisas encontramos o efeito de sua presença devido à emoção que senti; a própria causa, não a encontramos em parte alguma. Durante aqueles dias incapaz de imaginar Albertine que quase poderia crer que a não amasse, e como minha mãe, nos momentos de desespero em que nunca lhe foi imaginar minha avó (salvo uma vez, no encontro fortuito de um sonho, cuja visão desprezou de tal modo, mesmo dormindo, que se esforçou, com o que lhe desse ânimo no sono, para prolongá-lo), teria podido acusar-se, e de fato se acusa de não sentir a perda de sua mãe, cuja morte no entanto a matava, mas cujas imagens lhe fugiam da lembrança. 
   Por que teria eu de acreditar que Albertine não gostava das mulheres? Porque dissera não gostar delas, principalmente nos últimos tempos; mas repousava a nossa vida numa perpétua mentira? Ela nunca me indagara sequer: "Por que não posso sair livremente? Por que pergunta aos outros o que ando fazendo?" Mas era de fato uma vida bastante singular para que ela me perguntasse essas coisas, caso não lhes tivesse compreendido o motivo. Meu silêncio acerca dos motivos de sua clausura, não era compreensível que correspondesse de sua parte um mesmo e constante silêncio acerca de seus perpétuos desejos, suas numerosas recordações, seus inumeráveis anseios e esperanças? Françoise dava a impressão de saber que eu mentia quando me referi próximo o regresso de Albertine. E sua crença parecia basear-se sobre um mais do que aquela verdade que de costume guiava a nossa criada: que os Patrões não gostam de ser humilhados em face dos serviçais e só lhes dão a conhecer a realidade apenas o que não se afaste muito de uma ficção lisonjeira, própria de manter o respeito. Desta vez, a crença de Françoise se baseara em outra como se ela própria já houvesse despertado e mantido a desconfiança no espírito de Albertine, sobre-excitado a sua cólera, em suma, a tivesse levado ao ponto que poderia prever como inevitável a sua partida. Se isso fosse verdade, a minha versão de uma partida temporária, conhecida e aprovada por mim, só poderia contrariar a incredulidade por parte de Françoise. Mas a ideia que ela fazia do interesse de Albertine, o exagero com que, no seu ódio, aumentava o "lucro"; Albertine presumivelmente tirava de mim, podiam em certa medida falsear a certeza. Assim, quando diante dela eu aludia ao próximo regresso de Albertine como sendo uma coisa muito natural; Françoise me encarava, para ver se não estava inventando, do mesmo modo que, quando o mordomo, para aborrecê-la, trocando as palavras, lia a respeito de uma nova política em que ela custava a acreditar, como, por exemplo, o fechamento das igrejas e a deportação dos padres, lá do fundo da cozinha e sem poder ler, Françoise fixava instintiva e avidamente o jornal, como se pudesse ver se aquilo estava escrito de verdade. 
   Mas, quando ela viu que, após ter escrito uma longa carta, eu punha no envelope o endereço da Sra. Bontemps, esse terror, até então bem vago, de que Albertine regressasse, aumentou em Françoise. Expandiu-se em verdadeira consternação quando, certa manhã, teve de me entregar, no meio da correspondência, uma carta em cujo envelope havia reconhecido a caligrafia de Albertine. Indagava a si mesma se a partida de Albertine não fora uma simples comédia, suposição que duplamente a consternava, por assegurar definitivamente para o futuro a vida de Albertine em nossa casa, e por constituir para mim, isto é, para ela mesma, na medida em que eu era o patrão de Françoise, a humilhação de ter sido enganado por Albertine. Apesar da impaciência que eu tinha em ler a carta, não pude evitar contemplar por um instante o olhar de Françoise, de onde todas as esperanças haviam fugido, deduzindo desse presságio a iminência do retorno de Albertine, como um amador de esportes de inverno conclui alegremente que o tempo frio está próximo ao observar a partida das andorinhas. Por fim Françoise saiu, e, quando me assegurei de que ela havia fechado a porta, abri sem rumor, para não mostrar que estava ansioso, a carta seguinte:
   Meu amigo, obrigada por todas as boas coisas que me diz, estou às suas ordens para cancelar a encomenda do Rolls-Royce, se acha que poderei lhe ser útil nisso, como creio. Basta que você me escreva o nome de seu intermediário. Você se deixaria lograr por essa gente que só procura uma coisa: vender, e que faria você com um carro, você que nunca sai? Estou muito comovida pelo fato de você haver conservado uma boa recordação do nosso último passeio. Creia que, de minha parte, não esquecerei esse passeio duas vezes crepuscular (pois a noite caía e nós temos de nos abandonar) e que ele só se apagará do meu espírito com a noite fechada.
   Senti perfeitamente que a última frase não passava de uma frase e que Albertine não poderia conservar até a morte uma lembrança tão doce desse passeio em que certamente não sentira nenhum prazer, visto que estava impaciente por me deixar. Mas admirei também como era bem dotada a ciclista, a golfista de Balbec. Que antes de me conhecer só havia lido Esther, e como tivera eu razão em achar que ela, na minha casa, enriquecera-se de qualidades novas que a tornavam diferente e mais completa. E assim, a frase que lhe tinha dito em Balbec: "Creio que a minha amizade lhe será preciosa, que sou justamente a pessoa que poderia dar aquilo que lhe falta" – escrevera-a como dedicatória numa fotografia: Como a de ser providencial -, essa frase que dizia sem nela acreditar e unicamente por fazer achar benéfico o estar comigo e reprimir o tédio que pudesse achar em sua companhia, essa frase também poderia ser verdadeira; da mesma forma, quando eu lhe dissera que não queria vê-la, de medo de amá-la. Havia dito porque, ao contrário, sabia que no convívio constante o meu amor até a separação só faria exaltá-lo; mas, na realidade, o convívio constante nascera de uma necessidade dela, infinitamente mais forte que o amor dos primeiros tempos em Balbec.
   Mas, afinal, a carta de Albertine não adiantava em nada as coisas, me falava para escrever ao intermediário. Era preciso sair dessa situação. Tive a seguinte idéia: mandei levar imediatamente uma carta na qual lhe dizia que Albertine estava na casa da tia, que me sentia muito só; que ela me daria prazer imenso se viesse instalar-se em minha casa por algum tempo e que, como eu não queria fazer segredinhos, pedia-lhe que desse conta de Albertine. E, ao mesmo tempo, escrevi a Albertine como se ainda não tivesse recebido a sua carta:
   Minha amiga, perdoe-me o que você compreende muito bem, de tanto os segredinhos que desejei que você fosse avisada por ela e por mim. Por ter tido você tão docemente em minha casa, adquiri o mau hábito de não ficar sozinho. Já que decidimos que você não voltaria, pensei que a pessoa que melhor poderia substituir, por ser a que me mudaria menos, a que mais me lembraria você, é Andrée, e lhe pedi que viesse. Para que tudo isto não pareça muito brusco, só falei em alguns dias; mas, aqui entre nós, penso que desta vez será para sempre. Não acha que tenho razão? Você sabe que o seu pequeno grupo de moças em Balbec sempre foi a célula social que teve para mim o maior prestígio, e ao qual senti extremamente feliz de ser agregado um dia. Sem dúvida, esse prestígio ainda hoje se faz sentir. Já que a fatalidade de nossos temperamentos e a má vida não quiseram que a minha pequena Albertine fosse minha mulher, importa que ainda assim terei uma mulher menos encantadora que ela, mas a quem maiores afinidades de temperamento permitirão talvez ser mais feliz comigo - Andrée.

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