segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Marcel Proust - O Tempo Recuperado (As coisas eram de tal modo as mesmas)

em busca do tempo perdido

volume VII
O Tempo Recuperado



continuando...

   As coisas eram de tal modo as mesmas que retomavam muito naturalmente as palavras de outrora: "bem pensantes, mal pensantes". E, como pareciam diferentes, como os antigos partidários da Comuna tinham sido anti-revisionistas, os maiores dreyfusistas queriam mandar fuzilar todo mundo, contando com o apoio dos generais, como estes, no tempo do Caso Dreyfus, tinham sido contra Galliffet.
   A essas reuniões a Sra. Verdurin convidava algumas senhoras um tanto recentes, conhecidas pelas joias, e que nas primeiras vezes compareciam com vestidos berrantes e grandes colares de pérolas, que Odette, possuidora de um colar igualmente admirável, de cuja exibição ela própria havia abusado, olhava com severidade, agora que andava de "uniforme de guerra", à imitação das damas do Faubourg. Mas as mulheres sabem adaptar-se. Depois de três ou quatro vezes, elas se davam conta de que os vestidos que haviam considerado elegantes eram precisamente proscritos pelas pessoas que o eram, punham de lado os vestidos resplandecentes e se resignavam à simplicidade.
   Uma das estrelas do salão era o "Em-apuros", que, apesar dos gostos esportivos, conseguira ser considerado inapto. Tornara-se, para mim, de tal modo o autor de uma obra admirável, sobre a qual eu estava sempre meditando, que somente por acaso, quando estabelecia uma corrente transversal entre duas séries de recordações, é que me lembrava que ele fora o causador da saída de Albertine de minha casa. E mesmo assim, essa corrente transversal ia dar, no que diz respeito aos restos das reminiscências de Albertine, num caminho inteiramente abandonado a vários anos de distância. Pois eu nunca pensava nela. Era um caminho de recordações, um rumo que jamais seguia. Ao passo que as obras de "Em-apuros" eram mais recentes e esse rumo de lembranças permanentemente frequentado e utilizado pelo meu espírito.
   Devo dizer que as relações com o marido de Andrée não eram agradáveis, e que a amizade que lhe devotasse sofria muitas decepções; naquela ocasião já estava muito doente e procurava evitar as fadigas de que esperasse extrair nenhum prazer. E só incluía nestas os encontros com quem ainda não conhecia, e que sua ardente imaginação sem dúvida lhe reatava como tendo uma possibilidade de serem diferentes dos outros. Quanto aos conhecidos, sabia muito bem como eram, e não lhe pareciam valer a pena um cansaço perigoso, talvez mortal. Em suma, era um amigo muito ruim. Restava seu gosto pelas novas pessoas se pudesse encontrar algo da sua audácia frequente de outrora, em Balbec, nos esportes, no jogo, em todos os excessos.
   Quanto à Sra. Verdurin, a todo instante queria apresentar-me à Andrée sem poder admitir que eu já a conhecesse. Aliás, Andrée raramente comparecia com o marido. Era, para mim, uma amiga adorável e sincera; fiel à estética; fiel ao marido, em reação contra os balés russos, dizia do marquês de Polignac:

- Sua cama é decorada por Bakst. Como é que se pode dormir lá dentro? Eu preferiria Dub'' -

   De resto, os Verdurin, devido ao progresso fatal do esteticismo que acatava a comer a própria cauda, afirmavam não suportar o modem style (além do mais, era muniquense) nem os apartamentos brancos, e só apreciavam os velhos móveis franceses em ambiente sombrio.
   Vi muitas vezes Andrée por esse tempo. Não sabíamos o que dizer um ao outro, e uma vez pensei naquele nome de Juliette que subira do fundo da recordação de Albertine como uma flor misteriosa. Misteriosa naquela época, mas que hoje não evocava mais nada. Apesar de falar sobre tantos assuntos indiferentes, calei-me a tal respeito; não que fosse menos indiferente que os outros, mas porque existe uma espécie de supersaturação das coisas em que pensamos demais. Talvez fosse verdadeiro o período em que eu via naquilo tantos mistérios. Mas, esses períodos não hão de durar para sempre, não devemos sacrificar a saúde, a fortuna, na descoberta de mistérios que um dia deixarão de nos interessar.
   Por esse tempo, causou grande espanto, visto que a Sra. Verdurin ter em casa quem quisesse, vê-la fazer indiretamente gentilezas a alguém que perdera inteiramente de vista, Odette. Achavam que esta nada acrescentaria ao brilhante meio em que se transformara o pequeno clã dos Verdurin. Mas a separação prolongada, ao mesmo tempo que acalma os rancores, desfaz às vezes a amizade. E, além disso, o fenômeno que leva não só os agoniza pronunciarem somente nomes que lhes foram familiares outrora, mas os faz se comprazerem nas recordações da infância, esse fenômeno tem o seu equivalente social. Para ter êxito na empreitada de fazer Odette retornar à sua casa, a Sra. Verdurin não se utilizou, é claro, dos "ultras", mas dos frequentadores menos que tinham conservado um pé num e noutro salão. Dizia-lhes:

- Não sei porque não a vemos aqui. Talvez esteja zangada, eu não. Afinal, que foi que lhe fiz? Foi na casa da rainha que ela conheceu seus dois maridos. Se quiser voltar, saiba que as portas lhe estão abertas.-

   Tais palavras, que deveriam ter magoado o orgulho da patroa caso não fossem ditadas por sua imaginação, foram repetidas, mas sem sucesso. A Sra. Verdurin esperou Odette, sem vê-la regressar, até que certos acontecimentos, que veremos mais adiante, conseguiram, por outros motivos, o que não obtivera a embaixada, todavia zelosa, dos inconstantes. Tanto são poucas as conquistas fáceis quanto as derrotas definitivas.
   A Sra. Verdurin dizia:

- É desolador, vou telefonar à Bontemps a fim de que tome providências para amanhã. Já "empastelaram" de novo o final do artigo de Norpois e apenas porque ele insinuou que tinham posto empecilho "no desvio". -

   Pois a estupidez da moda fazia com que as pessoas julgassem ponto de honra empregar expressões correntes, e ela julgava mostrar-se "da moda", assim como uma burguesa ao dizer, a propósito do Sr. de Bréauté, do Sr. de Agrigento ou do Sr. de Charlus:

- Quem? Babal de Bréauté, Grigri, Mémé de Charlus? -

   Aliás, as duquesas faziam o mesmo, tendo igual prazer em falar "no desvio", pois, se o seu nome fala à imaginação dos plebeus um tanto poetas, elas se exprimem de acordo com a categoria intelectual, bastante burguesa, a que pertencem. As classes intelectuais nada têm a ver com o nascimento.
   Todos esses telefonemas da Sra. Verdurin, aliás, tinham os seus inconvenientes. 
   Embora tenhamos esquecido de dizê-lo, o "salão" Verdurin, se permanecia em espírito e em verdade, transportara-se momentaneamente a um dos maiores hotéis de Paris, pois a falta de carvão e de luz tornara mais difíceis as recepções dos Verdurin na antiga residência, muito úmida, dos embaixadores de Veneza. O novo salão, entretanto, não era desagradável. Como em Veneza o espaço, diminuto por causa da água, determina a forma dos palácios, como um palmo de jardim em Paris encanta mais que um parque na província, a exígua sala de jantar da Sra. Verdurin no hotel formava uma espécie de losango de paredes de alvura brilhante, onde se projetavam, como numa tela, todas as quartas-feiras, e quase todos os dias, todas as pessoas mais variadas e mais interessantes, as mulheres mais elegantes de Paris, encantadas por poderem usufruir do luxo dos Verdurin, que, com sua fortuna, iam gastando, numa época em que os mais ricos reduziam as despesas para não tocar nos seus rendimentos. A forma dada às recepções se modificara, sem que deixassem de encantar Brichot, que, à medida que as relações dos Verdurin se estendiam, mais prazeres novos, acumulados como surpresas num sapatinho de Natal, encontrava em sua companhia. Por fim, em certos dias, sendo os convivas tão numerosos que a sala de jantar do apartamento se tornava pequena demais, servia-se o jantar na enorme sala do térreo, onde os fiéis, fingindo hipocritamente lastimar a intimidade do andar superior - como outrora a necessidade de convidar os Cambremer fazia com que a Sra. Verdurin dissesse que se aborreceriam - entulhavam no fundo, fazendo um grupo à parte, como antigamente no trenzinho, por serem objeto de contemplação e inveja dos ocupantes das mesas. Sem dúvida, nos tempos normais de paz, uma nota mundana, sub-reptícia enviada ao Fígaro ou ao Gaulois, teria comunicado a mais pessoas do que poderia conter a sala de jantar do Majestic, que Brichot jantara com a duquesa Duras. Mas desde a guerra, tendo os cronistas mundanos suprimido esse de informações (eles se desforravam nos enterros, nas citações e nos franco-americanos), a publicidade só podia existir por meio desse expediente hostil e restrito, digno das eras primitivas e anterior à descoberta de Gutenberg visto à mesa da Sra. Verdurin. Depois do jantar, subia-se para os salões e então os telefonemas começavam. Mas, naquela época, muitos dos grandes que estavam cheios de espiões que anotavam as notícias transmitidas por com uma indiscrição, felizmente corrigida apenas pela inexatidão dos seus nomes, sempre desmentidos pelos acontecimentos. 
   Antes da hora em que terminavam os chás, ao cair da tarde, no céu claro, viam-se ao longe pequenas manchas escuras que, no crepúsculo poderiam tomar por mosquitos ou passarinhos. Assim, quando se via uma andorinha muito ao longe, era possível confundi-la com uma nuvem. Mas e imaginar que essa nuvem é sólida, imensa e resistente. Assim, estava eu como por aquela mancha escura no céu estival, que não era nem mosquito nem passarinho, mas um aeroplano tripulado por homens que velavam sobre Paris. (A ação dos aeroplanos que tinha visto com Albertine no nosso último passeio de Versalhes, não entrava em nada nessa emoção, pois a lembrança desse passeio se me tornara indiferente.)
   À hora do jantar, os restaurantes estavam cheios; e, se, passando nestes eu via um pobre soldado de licença, livre por seis dias do risco permanente da morte, e prestes a voltar para as trincheiras, deter seus olhos, por um instante, nas vidraças iluminadas, sofria como no hotel de Balbec, quando os pescadores observavam-me a comer, porém sofria ainda mais por saber que a miséria do soldado era maior que a dos pobres, pois abrangia todas as misérias, sendo mais ainda por ser mais resignada, mais nobre, e conhecia o sacudir filosófico de cara sem ódio, com o qual, pronto para retornar à guerra, ele murmurava, aos embusqués ao se acotovelarem para conservar em suas mesas: "Nem se diria que guerra por aqui."

*[Embusqués: gíria militar francesa, que designava o soldado que, tendo um emprego civil, era dispensado do serviço de caserna e do alistamento militar. (N. do T)]* 

   Depois, às nove e meia, quando ninguém tivera tempo de terminar o jantar, apagavam-se bruscamente todas as luzes, em obediência às ordens da polícia, e a nova arremetida dos embusqués, arrancando os soberanos aos lacaios do restaurante, onde eu havia jantado com Saint-Loup numa noite na qual a licença ocorrera às nove e trinta e cinco minutos, numa misteriosa penumbra de quarto onde se projeta a lanterna mágica, de sala de espetáculos que serve para exibir os filmes de um desses cinemas para os quais iam precipitar-se os que jantavam, homens e mulheres. Mas, depois dessa hora, para aqueles que, como eu, na noite da qual estou falando, jantavam em casa e saíam para ver os amigos. Paris era, ao menos em certos bairros, ainda mais escura que a Combray da minha infância; as visitas que se faziam, assumiam um ar de visitas de vizinhos no campo.

O Tempo Recuperado (As coisas eram de tal modo as mesmas)

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