Elias Canetti
MASSAS DE ACOSSAMENTO
A massa de acossamento forma-se tendo em vista uma meta que se pode atingir rapidamente. Esta é-lhe conhecida e definida com precisão; é-lhe também próxima. Seu objetivo é matar, e ela sabe quem quer matar. Munida de uma determinação sem par, a massa de acossamento lança-se sobre sua meta; é impossível enganá-la. Para que uma tal massa se constitua, basta anunciar a meta e propagar o nome daquele que deve morrer. A concentração no matar é de natureza especial, insuperável por qualquer outra em intensidade. Todos querem participar; cada um quer desferir seu golpe. A fim de poder fazê-lo, comprimem-se todos o mais próximo possível da vítima. Se alguém não logra golpeá-la, ele desejará vê-la sendo golpeada pelos demais. É como se os braços todos saíssem de uma única e mesma criatura. Mas aqueles que acertam têm maior peso e valor. A meta é tudo. A vítima é a meta, mas é também o ponto de máxima densidade: ela reúne em si as ações de todos. Meta e densidade coincidem.
Uma razão importante para o rápido crescimento da massa de
acossamento é a ausência de perigo da empreitada. Esta não oferece
perigo algum, pois a superioridade da massa é enorme. A vítima nada
lhe pode fazer. Ela foge ou é capturada. Não lhe é possível o
contragolpe; indefesa, ela é tão somente vítima. Foi, ademais,
abandonada à própria ruína, destinada a essa sorte — ninguém precisa
temer sanção alguma por sua morte. O assassinato permitido substitui
todos aqueles aos quais se tem de renunciar, aqueles que, uma vez
cometidos, ter-se-ia de temer a imputação de pesadas penas. Um tal
assassinato — permitido, recomendado, sem perigo algum e partilhado
com muitos outros — afigura-se irresistível à grande maioria da
humanidade. Há que se notar a esse respeito que a ameaça de morte a
que estão sujeitos todos os homens e que, sob os mais variados disfarces,
atua permanentemente, ainda que não se lhe perceba a todo momento,
torna necessário desviar a morte para os outros. A formação de massas
de acossamento atende a essa necessidade.
A empreitada é tão fácil e desenrola-se com tamanha rapidez que as
pessoas precisam apressar-se para chegar a tempo. A pressa, a euforia e a
segurança de uma tal massa têm algo de sinistro. Trata-se da excitação
de cegos que atingem o auge de sua cegueira quando, subitamente,
creem estar enxergando. A massa caminha rumo ao sacrifício e à
execução, e o faz com o intuito de, repentinamente e para sempre,
livrar-se da morte de todos os que a compõem. Mas o que então se passa
com ela é o contrário disso. Em razão da execução — mas somente
depois dela —, a massa sente-se mais ameaçada do que nunca pela
morte. Assim, desagrega-se e espalha-se numa espécie de fuga. Quanto
mais importante era a vítima, tanto maior é o medo da massa. Ela só
logra permanecer reunida quando se tem uma série de acontecimentos
dessa mesma natureza sucedendo-se com grande rapidez.
A massa de acossamento é muito antiga; ela remonta à mais primitiva
unidade dinâmica que a humanidade conhece: a malta de caça. Das
maltas, que são pequenas e também em outros aspectos diferem em
muito das massas, falar-se-á mais detidamente adiante. No momento,
tratar-se-á apenas de algumas ocasiões gerais que dão ensejo à formação
de massas de acossamento.
Dentre os tipos de morte a que uma horda ou um povo condena o
indivíduo podem-se distinguir duas formas principais: a primeira é a
expulsão. O indivíduo é abandonado numa situação na qual se vê exposto
sem nenhuma defesa a animais selvagens, ou na qual morrerá de fome. A
comunidade humana à qual pertencia anteriormente nada mais tem a
ver com ele; não lhe é permitido abrigá-lo ou dar-lhe algum alimento.
Qualquer contato com ele a macula, tornando ela própria culpada. A
solidão, em sua forma mais rigorosa, é aí a punição extrema; a separação
do indivíduo de seu próprio grupo constitui um tormento ao qual,
sobretudo em contextos primitivos, somente muito poucos logram
sobreviver. Uma variação desse isolamento é o abandono aos inimigos.
Em se tratando de seres humanos, e ocorrendo sem luta, essa variante é
sentida como particularmente cruel e humilhante — como uma morte
dupla.
A segunda forma é a do matar coletivamente. O condenado é
conduzido a um campo aberto e apedrejado. Todos participam do ato
de matar; atingido pelas pedras de todos eles, o culpado sucumbe. A
ninguém delegou-se a tarefa de executor; a comunidade inteira mata. As
pedras a representam: elas são a marca de sua decisão e de seu ato.
Mesmo nos lugares em que o apedrejamento caiu em desuso, essa
tendência do matar conjuntamente persiste. Pode-se compará-la à morte
pelo fogo: este age em lugar da multidão que desejava a morte do
condenado. Provindas de todos os lados, as chamas atingem a vítima;
por toda parte, poder-se-ia dizer, ela é agarrada e morta. Nas religiões
infernais, um outro elemento acresce-se a isso. À morte coletiva pelo
fogo, que é um símbolo para a massa, vincula-se a ideia da expulsão —
isto é, da expulsão para o inferno —, o abandono aos inimigos infernais.
As chamas do inferno erguem-se até a terra, agarrando e levando
consigo o herege que lhes pertence. O crivar a vítima de flechas e o fuzilamento do condenado à morte por um pelotão de soldados têm no
grupo executor os delegados da comunidade. Ao se enterrar pessoas em
formigueiros — prática que se conhece da África e de outras partes —,
deixa-se às formigas, representando uma numerosa massa, a penosa
tarefa desta última.
Todas as formas de execução pública vinculam-se à antiga prática do
matar coletivamente. O verdadeiro carrasco é a massa, que se reúne ao
redor do cadafalso. Ela aprova o espetáculo; apaixonadamente, conflui desde longe em sua direção, afim de assistir a ele do começo ao fim. Ela
quer que ele aconteça e não aceita de bom grado que a vítima lhe
escape. O relato da condenação de Cristo ilustra a essência desse
processo. O “Crucificai-o!" parte da massa. É ela o elemento
verdadeiramente ativo; em outros tempos, teria ela própria se
desincumbido da tarefa e apedrejado Cristo. O julgamento, que em
geral se dá diante de um grupo limitado de pessoas, representa a grande
multidão que, mais tarde, assiste à execução. A pena de morte, que,
pronunciada em nome do direito, soa abstrata e irreal, torna-se real ao
ser executada na presença da massa. É, afinal, para ela que a sentença é
pronunciada, e quando se diz que o direito é público, é a massa que se
tem em mente.
A Idade Média dota suas execuções de magnífica pompa, e estas se
realizam tão vagarosamente quanto possível. Ocorre, por vezes, de a
vítima advertir os espectadores com discursos edificantes. Preocupa-se
com o destino destes últimos, que não devem fazer o que ela fez. Expõe-lhes aonde é que se chega, levando-se uma vida como a sua. Os
espectadores sentem-se bastante lisonjeados com essa preocupação.
Pode-se conceder à vítima a derradeira satisfação de, ainda uma vez, figurar diante dos espectadores como um igual, como alguém
igualmente bom que, juntamente com eles, abandona e condena sua
vida pregressa. O arrependimento de malfeitores ou descrentes diante
da morte — arrependimento pelo qual, valendo-se de todos os meios
disponíveis, se empenham os sacerdotes — possui, paralelamente à
intenção declarada de salvar-lhes a alma, também o sentido de
predispor a massa de acossamento à transformação numa futura massa festiva. Todos devem sentir-se fortalecidos em sua bondade e acreditar
na recompensa que, em decorrência disso, os espera no além.
Em tempos revolucionários, aceleram-se as execuções. O verdugo
parisiense Samson orgulha-se do fato de seus auxiliares não
necessitarem de mais de “um minuto por pessoa”. Pode-se atribuir
muito da disposição febril das massas nessas épocas à rápida sucessão de
incontáveis execuções. É importante para a massa que o carrasco exiba-lhe a cabeça daquele que foi morto. Esse, e nenhum outro, é o
momento da descarga. A quem quer que tenha pertencido tal cabeça,
esse alguém foi degradado; no breve momento em que fita a massa, ela se
faz uma cabeça como todas as demais. É possível que antes figurasse sobre os ombros de um rei; ainda assim, graças ao fulminante processo
de degradação perante os olhos de todos, igualou-se às demais. A massa,
que consiste aí de cabeças a olhar fixamente, obtém o sentimento de sua
igualdade no momento em que também essa cabeça a fita. Quanto mais
poderoso tenha sido o executado, quanto maior a distância que
anteriormente o separava da massa, tanto maior será a excitação da
descarga. Se era um rei, ou um poderoso de magnitude semelhante,
então atuará aí também a satisfação provocada pela inversão. O direito
à justiça sangrenta, que tão longamente lhe coube, foi agora exercitado
contra ele. Mataram-no os que, antes, ele mandava matar. Não há como
superestimar o significado dessa inversão: há um tipo de massa que se
forma unicamente em função de uma tal inversão.
O efeito da cabeça exibida à multidão absolutamente não se esgota na
descarga. Na medida em que esta última, com tremenda violência, a
reconhece como uma das suas; na medida em que tal cabeça cai, por
assim dizer, no meio da multidão e não é mais do que ela; na medida,
pois, em que torna as pessoas umas iguais às outras, cada indivíduo vê-se
refletido nela. A cabeça cortada constitui uma ameaça. Fitaram-lhe a morte com tamanho apetite que agora não conseguem mais libertar-se
dela. Uma vez que tal cabeça pertence à massa, também a própria massa
foi atingida por sua morte: misteriosamente enferma e assustada, ela
começa a desagregar-se. Como que fugindo dessa cabeça, a massa,
então, se dispersa.
É particularmente veloz a desagregação da massa de acossamento que
já obteve sua vítima — um fato do qual têm plena consciência os
detentores do poder, quando em perigo. A fim de deter-lhe o crescimento, eles arremessam à massa uma vítima. Muitas execuções
políticas já foram ordenadas com esse único propósito. Os porta-vozes
de partidos radicais, por outro lado, em geral não percebem que, ao
atingir sua meta — a execução pública de um perigoso adversário —,
ferem mais fundo a própria carne do que a do partido inimigo. Após
uma tal execução, pode ocorrer-lhes de sua massa de adeptos dispersar-se, e de por muito tempo, ou mesmo para sempre, não conseguirem
recuperar a antiga força. Mais adiante, na abordagem das maltas e,
especialmente, das maltas de lamentação; falar-se-á ainda de outras
causas para essa reviravolta.
A repugnância ao matar coletivamente é de origem assaz moderna.
Não se deve superestimá-la. Ainda hoje, pelos jornais, todos participam
das execuções públicas. Como tudo, também isso fez-se apenas mais
confortável. Sentado tranquilamente em casa, o homem pode, dentre
centenas de detalhes, deter-se naqueles que mais o excitam. A aclamação
só se dá depois de tudo terminado; nem o mais leve vestígio de culpa
turva o prazer. Não se é responsável por coisa alguma: nem pela
sentença, nem pelo jornalista que testemunhou-lhe a execução, nem por
seu relato, nem mesmo pelo jornal que publicou tal relato. Mas sabe-se
mais a respeito do ocorrido do que em tempos passados, quando se
tinha de caminhar e permanecer de pé durante horas para, por fim, ver apenas muito pouco. No público formado pelos leitores de jornal
conservou-se viva uma massa de acossamento abrandada, mas, em
função de sua distância dos acontecimentos, ainda menos responsável;
conservou-se aí, é-se tentado a dizê-lo, a sua forma ao mesmo tempo
mais desprezível e estável. Como sequer precise reunir-se, ela evita
também sua desagregação; a repetição cotidiana do jornal a provê de
variedade.continua página 78...
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Leia também:
Massa e Poder - A Massa (Massa Aberta e Massa Fechada)
Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht
Massa e Poder - A Massa (Massas de Acossamento)
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994.
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) e O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de Marrakech, Festa sob as bombas e Sobre a morte.
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Título original Masse und Macht
"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."
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