A Hora da Estrela
continuando...
Enquanto isso o namoro com Macabéa entrara em rotina morna, se é que alguma vez haviam experimentado o quente. Muitas
vezes ele não aparecia no ponto do ônibus. Mas pelo menos era um
namorado. E Macabéa só pensava no dia em que ele quisesse ficar
noivo. E casar.
Posteriormente de pesquisa em pesquisa, ele soube, que Glória
tinha mãe, pai é comida quente em hora certa. Isso tornava-a de
primeira qualidade Olímpico caiu em êxtase quando soube que o pai
dela trabalhava num açougue.
Pelos quadris adivinhava-se que seria boa parideira. Enquanto
Macabéa lhe pareceu ter em si mesma o seu próprio fim.
Esqueci de dizer que era realmente de se espantar que para
corpo quase murcho de Macabéa tão vasto fosse o seu sopro de vida
quase ilimitado e tão rico como o de uma donzela grávida,
engravidada por si mesma, por partenogênese: tinha sonhos
esquizoides nos quais apareciam gigantescos animais antediluvianos
como se ela tivesse vivido em épocas as mais remotas desta terra
sangrenta.
Foi então (explosão) que se desmanchou de repente o namoro
entre Olímpico e Macabéa. Namoro talvez esquisito mas pelo menos
parente de algum amor pálido. Ele avisou-lhe que encontrara outra
moça é que esta era Glória. (Explosão) Macabéa bem viu o que
aconteceu com Olímpico e Glória: os olhos de ambos se haviam
beijado.
Diante da cara um pouco inexpressiva demais de Macabéa, ele
até que quis lhe dizer alguma gentileza suavizante na hora do adeus
para sempre. E ao se despedir lhe disse:
– Você, Macabéa, é um cabelo na sopa. Não dá vontade de
comer. Me desculpe se eu lhe ofendi, mas sou sincero. Você está
ofendida?
– Não, não, não! Ah por favor quero ir embora! Por favor me
diga logo adeus!
É melhor eu não falar em felicidade ou infelicidade — provoca
aquela saudade desmaiada e lilás, aquele perfume de violeta, as
águas geladas da maré mansa em espumas pela areia. Eu não quero
provocar porque dói.
Macabéa, esqueci de dizer tinha uma infelicidade: era sensual.
Como é que num corpo cariado como o dela cabia tanta lascívia, sem
que ela soubesse que tinha? Mistério. Havia, no começo do namoro,
pedido a Olímpico um retratinho tamanho 3x4 onde ele saiu rindo
para mostrar o canino de ouro e ela ficava tão excitada que rezava
três pai-nossos e duas ave-marias para se acalmar.
Na hora em que Olímpico lhe dera o fora, a reação dela
(explosão) veio de repente inesperada: pôs-se sem mais nem menos a
rir. Ria por não ter se lembrado de chorar. Surpreendido. Olímpico,
sem entender, deu gargalhadas.
Ficaram rindo os dois. Aí ele teve uma intuição que finalmente
era uma delicadeza: perguntou-lhe se ela estava rindo de nervoso.
Ela parou de rir e disse muito, muito cansada:
– Não sei não...
Macabéa entendeu uma coisa: Glória era um estardalhaço de
existir. E tudo devia ser porque Glória era gorda. A gordura sempre
fora o ideal secreto de Macabéa, pois em Maceió ouvira um rapaz
dizer para uma gorda que passava na rua: “a tua gordura é
formosura!” A partir de então ambicionara ter carnes e foi quando fez
o único pedido de sua vida. Pediu que a tia lhe comprasse óleo de
fígado de bacalhau. (Já então tinha tendência para anúncios.) A tia
perguntara-lhe: você pensa lá que é filha de família querendo luxo?
Depois que Olímpico a despediu, já que ela não era uma pessoa
triste, procurou continuar como se nada tivesse perdido. (Ela não
sentiu desespero, etc. etc.) Também que é que ela podia fazer? Pois
ela era crônica. E mesmo tristeza também era coisa de rico, era para
quem podia, para quem não tinha o que fazer. Tristeza era luxo.
continua pág 65...
"Clarice Lispector deixou vários depoimentos sobre a sua produção literária. Em alguns, parecia se defender do estranhamento que causava em leitores e críticos.
Ela tinha consciência de sua diferença. Desde pequena, ao ver recusadas as histórias que mandava para um jornal de Recife, pressentia que era porque nenhuma “contava os fatos necessários a uma história”, nenhuma relatava um acontecimento. Sabia também, já adulta, que poderia tornar mais “atraente” o seu texto se usasse, “por exemplo, algumas das coisas que emolduram uma vida ou uma coisa ou romance ou um personagem”.
Entretanto, mesmo arriscando-se ao rótulo de escritora difícil, mesmo admitindo ter um público mais reduzido, ela não conseguiria abrir mão de seu traçado: “Tem gente que cose para fora, eu coso para dentro”. Ela se afastou dos “escritores que por opção e engajamento defendem valores morais, políticos e sociais, outros cuja literatura é dirigida ou planificada a fim de exaltar valores, geralmente impostos por poderes políticos, religiosos etc., muitas vezes alheios ao escritor”, em nome de uma outra forma de questionar a realidade e nela intervir, através da literatura."
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"Clarice Lispector deixou vários depoimentos sobre a sua produção literária. Em alguns, parecia se defender do estranhamento que causava em leitores e críticos.
Ela tinha consciência de sua diferença. Desde pequena, ao ver recusadas as histórias que mandava para um jornal de Recife, pressentia que era porque nenhuma “contava os fatos necessários a uma história”, nenhuma relatava um acontecimento. Sabia também, já adulta, que poderia tornar mais “atraente” o seu texto se usasse, “por exemplo, algumas das coisas que emolduram uma vida ou uma coisa ou romance ou um personagem”.
Entretanto, mesmo arriscando-se ao rótulo de escritora difícil, mesmo admitindo ter um público mais reduzido, ela não conseguiria abrir mão de seu traçado: “Tem gente que cose para fora, eu coso para dentro”. Ela se afastou dos “escritores que por opção e engajamento defendem valores morais, políticos e sociais, outros cuja literatura é dirigida ou planificada a fim de exaltar valores, geralmente impostos por poderes políticos, religiosos etc., muitas vezes alheios ao escritor”, em nome de uma outra forma de questionar a realidade e nela intervir, através da literatura."
Clarisse Fukelman, Professora de Literatura Brasileira da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
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Leia também:
A Hora da Estrela - Glória possuía no sangue
A Hora da Estrela - Esqueci de dizer
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