sábado, 3 de fevereiro de 2024

Marcel Proust - À Sombra das Moças em Flor (Ao Redor da Sra. Swann - g)

em busca do tempo perdido

volume II
À Sombra das Moças em Flor


Ao Redor da Sra. Swann


(g)

continuando...

   Tendo persistido minhas sufocações, não sendo possível atribuí-las à congestão pulmonar que já acabara há muito tempo, meus pais mandaram o doutor Cottard vir para dar uma consulta. A um médico chamado em casos deste gênero, não basta que seja instruído; posto que a presença de tais sintomas podem ser de três ou quatro doenças. Afinal é o seu faro e seu olhar clínico que decidem com que doença terá de defrontar-se, malgrado as aparências mais ou menos semelhantes. Esse é um dom misterioso que não implica superioridade em outros aspectos da inteligência, poder ser de grande vulgaridade, gostando da pior pintura, da pior música, não ter sequer curiosidade de espírito, pode perfeitamente possuí-lo. Em meu caso materialmente observável podia também ser causado por espasmos num começo de tuberculose, pela asma, por uma dispneia tóxico-alimentar; ou insuficiência renal, pela bronquite crônica, por um estado complexo teriam vários desses fatores. Ora, os espasmos nervosos precisavam com desprezo, a tuberculose com grandes cuidados e um gênero de alimentação que teria sido ruim para um estado artrítico como a asma e pode ser perigoso em caso de dispneia tóxico-alimentar, a qual exige um regime de compensação, seria nefasto para um tuberculoso. Mas as hesitações foram breves e suas prescrições imperiosas: ''Purgativos drásticos e leite durante vários dias, nada a não ser leite. Nada de carne, nada de álcool.'' Minha mãe, no entanto, murmurou que eu precisava me fortalecer, que já era sofrimento o meu nervoso, que aquele purgativo de cavalo e aquele regime certamente me deixaria abatido. Percebi nos olhos de Cottard, tão inquietos como se tivesse a perder o trem, que ele se indagava se não se deixara levar por sua bondade. Tratava de se lembrar se pensara em assumir a máscara de homem, procuramos um espelho para ver se não esquecemos de dar o nó na gravata. E na dúvida, e à guisa de compensação, respondeu grosseiramente: ''Não tenho o hábito de repetir duas vezes as minhas prescrições. Deem-me uma caneta. Sobretudo não esqueçam o leite. Mais tarde, quando houvermos cortado a insônia, gostaria que lhe dessem um pouco de sopa, depois purê, mas leite, leite, o que o deleitará, visto que a Espanha está na moda. (Os alunos conheciam muito bem esse trocadilho que ele fazia no hospital, as vezes que submetia um cardíaco, ou um hepático a esse regime de leite). Façam-no voltar progressivamente à vida comum. Mas, sempre que tiver a tosse e as sufocações: purgantes, lavagens intestinais, leite, leite.'' Escutou com ar glacial, sem dar resposta, as últimas objeções de minha mãe e, sem se dignar explicar os motivos desse regime, meus pais o consideravam, em relação com o meu caso, inutilmente enfraquecedor, e não me mandaram seguir tal regime. Evidentemente, procuraram ocultar do professor a sua desobediência consegui-lo com maior êxito, evitaram todas as residências onde podiam encontrar com ele. Depois, tendo-se agravado o meu estado, decidira seguir ao pé da letra as prescrições de Cottard; ao cabo de três dias mais arquejos, nem tosse, e respirava bem. Então compreendemos, sem deixar de achar-me, como disse depois, bastante asmático e "maníaco", tinha percebido que o que, naquele momento, predominava era a intoxicação, e que, lavando-me o fígado e os rins, desconfiava que os brônquios voltariam a funcionar normalmente, devolvendo-me a respiração, o sono e as forças. Aí compreendemos que aquele imbecil era um grande clínico. Enfim, pude me levantar. Mas falavam de não me enviar mais aos Champs-Élysées. Diziam que era devido ao ar insalubre; eu achava que aproveitavam o pretexto para que não pudesse mais ver a Srta. Swann. Obriguei-me a repetir todo o tempo o nome de Gilberte, como o idioma natal que habitantes de um país vencido se esforçam por manter para não esquecer a pátria que jamais voltarão a ver. Às vezes minha mãe passava a mão pelo meu rosto, dizendo:

- Então, os filhinhos não contam mais para a mamãe os seus desgostos?

   Françoise se aproximava de mim todos os dias, observando:

- O senhor está com uma cara! Não se olhou no espelho? Parece um defunto!

   É verdade que se eu tivesse uma simples gripe, Françoise teria assumido o mesmo aspecto fúnebre. Tais lamentações se originavam mais da sua "classe" do que de meu estado de saúde. Eu não distinguia, então, se esse pessimismo era, em Françoise, doloroso ou satisfeito. Provisoriamente, concluí que era social e profissional.
   Um dia, à hora do correio, minha mãe deixou uma carta na minha cama. Abri-a distraído, pois que ela não podia levar a única assinatura que me faria feliz, a de Gilberte, com quem não me relacionava fora dos Champs-Élysées. Ora, na parte de baixo do papel, timbrado com um selo de prata representando um cavaleiro armado de capacete, sob o qual se retorcia esta divisa: Per viam rectam, no fim de uma carta, escrita com letra bem grande e onde quase todas as frases pareciam sublinhadas, simplesmente porque o traço dos 'tt' eram feitos não cortando as letras, mas por cima delas, fazendo um traço debaixo da palavra correspondente da linha superior, foi justamente a assinatura de Gilberte o que vi. Mas porque sabia ser impossível numa carta endereçada a mim, o fato de vê-la sem que fosse acompanhada de fé não me causou alegria. Por um momento, ela não fez mais que ferir de irrealidade tudo o que me cercava. Com vertiginosa velocidade, tal assinatura sem verossimilhança brincava de quatro-cantos com minha cama, a lareira e a parede. Via tudo vacilar como alguém que cai do cavalo, e me perguntava se não havia uma existência totalmente diferente da que eu conhecia, em contradição com ela, é que era verdadeira e que, sendo-me mostrada de súbito, enchia-me dessa hesitação. Como os escultores, ao modelar o Juízo Final, atribuíram aos mortos ressuscitarem; que se encontram no limiar do outro mundo. "Meu caro amigo''- dizia a carta-, Soube que você tem estado muito doente e que não vem mais aos Champs-Élysées. Também já não vou muito lá porque é extremamente doentio. Mas minhas amigas vêm lanchar todas as segundas e sextas aqui em casa. Mamãe me encarregou de lhe dizer que nos daria muito prazer se viesse também logo que estiver restabelecido, e poderíamos retomar em casa as nossas boas conversas dos Champs-Élysées. Adeus, meu caro amigo, espero que seus pais lhe permitam vir muitas vezes lanchar aqui; envio-lhe toda a minha amizade. Gilberte."
   Enquanto lia estas palavras, meu sistema nervoso recebia com admirável diligência a notícia que me trazia grande felicidade. Porém minha alma, isto é, eu mesmo, e em suma o principal interessado, ainda a ignorava. A felicidade vinda de fato por meio de Gilberte, era uma coisa com que sonhara constantemente; coisa toda em pensamentos, era, como dizia Leonardo a respeito da pintura cosa mentale. Uma folha de papel coberta de caracteres, o pensamento não de imediato; porém, logo que terminei a carta, pensei nela, ela tornou-se uma fantasia, tornou-se, ela também, cosa mentale e eu já a amava tanto- que cinco minutos precisava relê-la, beijá-la. Só então conheci minha felicidade.
   A vida é semeada desses milagres que as pessoas que amam sempre esperam. É possível que este tenha sido causado artificialmente; e minha mãe vendo que desde algum tempo eu perdera todo o ânimo teria mandado pedir a Gilberte que me escrevesse, como, à época dos primeiros banhos de mar, para me dar prazer em mergulhar, coisa que detestara por me cortar a respiração, ela entregava às escondidas ao meu instrutor as maravilhosas caixas de conchinhas e ramos de coral que eu próprio julgara descobrir no fundo das águas. Aliás, com relação a todos os acontecimentos da vida e suas situações contrastantes se referem ao amor, o melhor é não tentar compreender, visto que, no que têm tanto de inexorável como de inesperado, regidos por leis antes mágicas do que racionais. Quando um multimilionário encantador, apesar de seus milhões é mandado embora pela mulher pobre e sem atrativos com a qual vivia, volta-se no seu desespero, para todas as forças do ouro e põe em jogo todas as influências da terra, sem conseguir que ela regresse, mais vale, invencível teimosia da amante, supor que o Destino deseja abatê-lo trazendo-lhe uma doença do coração, ao invés de procurar uma explicação lógica. Esses obstáculos, contra os quais os amantes têm de lutar e que sua imaginação excitada pelo sofrimento busca em vão adivinhar, residem às vezes singularidade do caráter da mulher que não conseguem trazer de volta; e sua estupidez, na influência que adquiriram sobre ela; os temores inspirados por pessoas que o amante não conhece; no gênero de prazeres, que momentaneamente pede à vida, prazeres que nem seu amante, nem a fortuna dele podem lhe oferecer. Em todo caso, o amante não está em condições de natureza dos obstáculos que a astúcia da mulher lhe oculta e que julgamento falseado pelo amor o impede de apreciar com exatidão esses tumores que o médico acaba por reduzir, mas sem lhes ter origem. Como eles, esses obstáculos permanecem misteriosos, mas não são eternos. Unicamente, em geral duram mais que o amor. E, como este amor não é paixão desinteressada, o indivíduo amoroso que já não ama não procura motivo na mulher pobre e leviana a quem amava se recusara obstinadamente durante anos, a que ele continuasse a mantê-la.
   Ora, o mesmo mistério que disfarça muita vez aos olhos as catástrofes, quando se trata do amor, envolve frequentemente repentinas soluções felizes (como a que me fora trazida pela carta de Gilberte). Soluções felizes ou que pelo menos parecem sê-lo, pois quase nenhuma o é de verdade quando se trata de um sentimento tal que toda satisfação que se lhe dê só serve para mudar de local o sofrimento. No entanto, às vezes propõe-se uma trégua e tem se a ilusão de que se está curado.
   No que diz respeito à essa carta, onde no final Françoise se recusou a reconhecer o nome de Gilberte, porque o G, muito enfeitado e apoiado num 'i' sem ponto, parecia um A, ao passo que a última sílaba era indefinidamente prolongada com o auxílio de um rabisco, serrilhando-se a gente procura uma explicação racional para a reviravolta que ela indicava e que me fazia tão contente, talvez possamos concluir que devia em parte a um incidente que, ao contrário, eu pensava ser de molde ameaçador perder para sempre no julgamento dos Swann. Pouco antes, Bloch tinha vindo me visitar, enquanto o professor Cottard consultava-me, o qual, desde que eu seguia seu regime, fora mandado buscar novamente, se encontrava no meu quarto. A consulta havia acabado e Cottard, ficando apenas como visita porque meus pais o haviam retido para jantar, deixou entrar Bloch. Como estávamos todos conversando, tendo Bloch contado que ouvira dizer que a Sra. Swann gostava muito de mim, por uma pessoa com quem jantara na véspera, a qual era muito ligada à Sra. Swann, tive a intenção de responder que ele certamente se enganava, e de estabelecer, com o mesmo escrúpulo que me fizera declarar ao Sr. de Norpois e de medo que a Sra. Swann me tomasse por mentiroso, que não a conhecia e nunca lhe falara. Mas não tive coragem de retificar o erro de Bloch, pois compreendi muito bem que era voluntário, e que, se ele inventava algo que a Sra. Swann não poderia de fato ter dito, era para fazer saber, o que ele achava elogioso e não seria verdadeiro, que ele havia jantado com uma das amigas dessa senhora. Ora, aconteceu que, ao passo que o Sr. de Norpois, sabendo que eu não conhecia e gostaria de conhecer a Sra. Swann, esquivou-se a lhe falar a meu respeito; Cottard, que era médico dela, tendo deduzido que ouvira de Bloch, que ela me conhecia e me apreciava muito, pensou que, quando a visse, dizer que eu era um bom menino com quem se relacionava, não poderia me ser útil em nada e seria elogioso para ele, dois motivos que o decidiram a falar de mim à Odette tão logo encontrou uma oportunidade.
   Foi então que conheci aquele apartamento, de onde se evolava até a escada o perfume de que se servia a Sra. Swann, mas que embalsamava bem mais ainda encanto particular e doloroso que emanava da vida de Gilberte. O implacável porteiro, mudado numa benevolente Eumênide, habituou-se, quando lhe perguntava se podia subir, a me indicar, erguendo o gorro com mão propícia, que fora ouvida minha prece. As janelas que, de fora, interpunham entre mim e os tesouros que não estavam destinados à um olhar brilhante, distante e superficial que me parecia o frio olhar dos Swann; aconteceu-me, quando no verão eu havia passado uma tarde toda conversando com Gilberte em seu quarto, abri-las eu mesmo para deixar entrar um pouco de ar e até a me debruçar a seu lado, se era dia de recepção de sua mãe ao ver chegar as visitas que muitas vezes, erguendo a cabeça ao descer me faziam um aceno com a mão, tomando-me por um sobrinho da Sra. Swann. Nesses momentos, as tranças de Gilberte roçavam meu rosto. Parecia a finura de sua grama a um tempo natural e sobrenatural; pela força de folhagens artísticas, uma obra única, para a qual teriam utilizado a própria relva. A um fragmento mesmo ínfimo delas, que celeste herbário eu não teria em moldura? Porém, não esperando obter um pedaço de verdade daquelas ao menos conseguisse uma fotografia delas, quanto mais preciosa que as florzinhas desenhadas pelo Da Vinci! Para obter uma, pratiquei, junto dos Swann e até fotógrafos, baixezas que não me alcançaram o que desejava; porém, me ligaram para sempre à pessoas muito desagradáveis.
   Os pais de Gilberte, que por tanto tempo me haviam impedido agora - quando eu entrava na sombria antecâmara onde pairava permanente mais formidável e desejada que outrora, em Versalhes, o aparecimento do rei; a possibilidade de encontrá-la onde habitualmente, depois de dar um tropeção num enorme cabide de sete braços como o Candelabro da Escritura, em cumprimentos diante de um lacaio sentado, com seu longo casaco sobre a arca de madeira e que, na escuridão, eu tomara pela Sra. Swann. Gilberte, se acaso um deles passasse no momento da minha chegada, mostrarem irritados, estendiam a mão sorrindo, e me diziam:

- Como vai você? - (Comment allez-vous, que pronunciavam 'comment' sem fazer a ligação do 't' à vogal seguinte, ligação que logo: que eu, uma vez entrado na casa, fazia um incessante e voluptuoso suprimir.) Gilberte sabe que já chegou? Então deixo-o à vontade.

   Muito mais, os próprios lanches que Gilberte oferecia à suas amigas que por tanto tempo, me haviam parecido a mais intransponível das barreiras acumuladas entre ela e mim, tornavam-se agora uma ocasião para nos reunir e me avisava por um bilhete, escrito; pois eu era uma relação ainda muito de papel de carta sempre diferente. Uma vez era enfeitado com o desenho de um cãozinho azul, em relevo, sobre uma legenda humorística escrita em inglês seguida de um ponto de exclamação; outra vez, timbrado com uma âncora; iniciais G. S., desmedidamente alongadas em um retângulo que ocupava o alto da folha, ou ainda do nome "Gilberte", ora escrito transversalmente; em caracteres dourados que imitavam a assinatura da minha amiga e um rabisco, debaixo de um guarda-chuva aberto impresso em negro, ou em um monograma em forma de chapéu chinês que continha todo nome em maiúsculas, sem que fosse possível distinguir uma só. A série de papéis para cartas que Gilberte possuía, por mais numerosa que fosse não era ilimitada, ao fim de um certo número de semanas, eu via retornar, como da primeira vez que me escrevera, a divisa: Per viam rectam, acima do cavaleiro de capacete, num distintivo de prata brunida. E cada um era escolhido num dia e não em outro, em virtude de determinados ritos, pensava eu então, porém antes, creio-o atualmente, porque ela procurava se lembrar daqueles de que se servira em outras ocasiões, de modo a nunca enviar o mesmo a um de seus correspondentes, pelo menos àqueles por quem se dignava a dar-se a esse trabalho, senão em intervalos o mais possível afastados. Como, devido à diferença das horas de suas aulas, algumas das amigas que Gilberte convidava para esses lanches eram obrigadas a ir embora quando outras acabavam de chegar, desde a escada eu ouvia escapar-se da antecâmara um murmúrio de vozes que, na emoção que me causava a cerimônia imponente à qual iria assistir, rompia bruscamente, muito antes que eu alcançasse o patamar, os laços que ainda me ligavam à vida anterior e me tirava até a lembrança de ter de despir meu cachecol, uma vez que estaria bem aquecido, e de olhar a hora para não voltar atrasado. Essa escada, aliás, toda em madeira, como se fazia então em certas casas para alugar no estilo Henrique II, que fora durante tanto tempo o ideal de Odette e do qual em breve se desligaria, e provida de um cartaz sem equivalente em nossa casa, no qual se liam estas palavras: "Proibido usar o elevador para descer", parecia-me algo de tanto prestígio que disse a meus pais que era uma escada antiga trazida de muito longe pelo Sr. Swann. Meu amor pela verdade era tão grande que não teria hesitado em lhes dar essa informação mesmo se soubesse que era falsa, pois só ela poderia lhes permitir que tivessem pela dignidade da escada dos Swann o mesmo respeito que eu tinha. É assim que, diante de um ignorante que não pode compreender em que consiste o gênio de um grande médico, acreditar-se-ia ser bom não confessar que ele não sabe curar uma gripe. Mas, como eu não tinha nenhum espírito de observação, como em geral não sabia o nome nem a espécie das coisas que se achavam sob meus olhos, e só compreendia que elas, quando estavam próximas dos Swann, deveriam ser extraordinárias, não me pareceu adequado que, advertindo meus pais acerca do valor artístico e da longínqua proveniência daquela escada, dissesse uma mentira. Aquilo não me pareceu certo; porém, deve me ter parecido provável, pois me senti ficar muito vermelho quando meu pai me interrompeu dizendo:

- Conhece essas casas; já vi uma delas, são todas iguais; Swann simplesmente ocupa vários andares, foi Berlier quem as construiu. - Acrescentou que quisera alugar uma delas, mas desistira daquilo, não as julgando cômodas e na entrada não suficientemente claras, disse-o; mas senti instintivamente que meu espírito devia fazer "prestígio'' dos Swann e à minha felicidade os sacrifícios necessários e, num rasgo de autoridade paterna, apesar do que acabara de ouvir, afastei de mim para sempre como o olho de um devoto à Vida de Jesus de Renan, a ideia dissolvente de que o apartamento deles era um apartamento qualquer que poderíamos habitar. 

   Entretanto, naquelas tardes de lanche, subindo na escada degrau a degrau já sem ideia e sem memória, não sendo mais que um brinquedo dos reflexos mais vis, chegava à região em que o perfume da Sra. Swann se fazia presente estava já vendo a majestade do bolo de chocolate, rodeado por um círculo de sequilhos e de pequenos guardanapos adamascados cinzentos, como exigidos pela etiqueta e próprios dos Swann. Mas esse conjunto imutável parecia, como o universo necessário de Kant, depender de um ato liberdade. Pois quando estávamos todos no pequeno salão de Gilberte olhando as horas, ela dizia:

- Olhem, já faz tempo que almocei, só janto às oito horas, estou com vontade de comer alguma coisa. Que dizem?

   Ela nos fazia entrar na sala de jantar, sombria como o interior de templo asiático pintado por Rembrandt, e onde um bolo arquitetônico; tão familiar quanto imponente, parecia reinar ao acaso como num dia qualquer para o caso que desse na cabeça de Gilberte despojá-lo de suas ameias de chocolate e de abater suas muralhas de rampas fulvas e rígidas, cozidas ao forno dos bastiões do palácio de Dario. Melhor ainda: para proceder à destruição de ninívea obra de pastelaria, Gilberte não consultava apenas a sua fome; informava-se também sobre a minha, enquanto extraía para mim, do monumento desmoronado, um pedaço polido e engastado de frutos escarlates, ao gosto oriental. Perguntou a hora em que meus pais jantavam, como se eu ainda o soubesse da perturbação que me dominava se deixasse persistir a sensação de inapetência de fome, a noção do jantar ou a imagem da família, na minha memória faria o estômago paralisado. Infelizmente essa paralisia era apenas momentânea. Vendo o momento em que seria necessário digerir os doces que eu comia sem ver o que estava fazendo. Mas esse momento ainda estava longe. Enquanto isso Gilberte preparava o "meu chá". Bebia indefinidamente, ainda que uma única xícara para que me impedisse de dormir durante vinte e quatro horas. Era por isso que minha mãe começava a dizer:

"É desagradável; este menino não pode ir à casa dos Swann doente."

   Mas, quando me achava na casa dos Swann, sabia eu pelo menos que era chá o que estava bebendo? Ainda que soubesse, o tomaria assim mesmo, admitindo que estivesse por um instante recobrado o discernimento, aquilo não teria me devolvido a lembrança do passado e a previsão do que estaria por vir. Minha imaginação não era capaz de ir até o tempo distante em que eu tivesse a ideia de me deitar e sentir sono.

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