quarta-feira, 31 de maio de 2017

histórias de avoinha: hômi tigre

mulheres descalças


hômi tigre
Ensaio 103B – 2ª edição 1ª reimpressão


baitasar



Agarra! Agarra! Pela puta que os pariu, agarra o neguinho!

Onde? Onde está esse filho-da-puta?

a villa conhece a villa: num tinha hora boa pra nehum pretu corrê; se correu era culpado, as purugunta era feita depois dos pretu sê controlado ou abatido; se era culpado pruqui correu num podia tá com soltura pra vai e vem

tem veiz qui num precisa corrê, tem veiz qui só a cara preta é a denúncia, aponta o dedo e grita qui é culpado, Ladrão!

Alguém viu o fujão?

Eu vi.

Tem certeza?

Eu vi um negrinho correndo e com uma cara assustada... meu Deus, que negrinho feio. A cara cheia de marcas, aquela cicatriz na testa... e muito fedido... esse negro que procuram tem os dentes?

Na frente não tem nenhum, perdeu por desobediência.

Então... é ele.

E qual o rumo do bandidinho?

Desceu, foi na direção do rio.

o aglomerado dos curioso só fazia aumentá os murmúrio e as conversa. a pele qui veste as entranha dus pretu num torna os pretu mais suportável prus óio da villa injusta, um lugá qui num mede a dô qui aplica nus pretu com a mesma régua qui mede a dô qui pune os branco

Quem é esse?

Anda fugindo fazem dois ou três dias...

E tem nome?

num ajuntamento de esfomeado amontoado sempre se destaca um ou dois curioso qui tem mais coisa pra contá qui a maioria. coisa qui num precisa prová nem comprová, a villa gosta da omissão da verdade, só é preciso sabê contá e num sê pretu nem índio

Fortunato...

tê nome é um bão começo pra caçada tê sucesso, tê nome qui faz tê medo dá mais garantia do desfecho com brilhatura. quanto mais medo o nome do fugido espáia na villa mais cagado de medo se junta na caçada: fortunato, o fascínora; fortunato, o degoladô; fortunato, o desalmado

... não tem 20 anos.

trêis amigo qui descia prus rio parô no aglomerado e resolveu qui aquela correria num ia dá em nada, eles já tava cansado de esperá pelo desfecho e perdia mais moeda qui ganhava com o comércio fechado

Preciso abrir a botica dos remédios.

Vosmecê está com medo, Juca? É preciso expulsar ou prender o demônio desse negro.

Eu não tenho medo de criolo, Maneco Coxa. Mas quem vai abrir a botica? E quem vai tocar a carreta se vosmecê está aqui?

Calma, vivente... primeiro, o meu leite com pera. Os bois, a carreta e os negócios vêm depois.

Então, o amigo está atrasado.

E quem não está atrasado? Essa movimentação toda não é boa para ninguém nem serve para os criolos. Ficar quieto na boiada pode ser melhor que fingir que não é boi.

Bobagem, Maneco. Os criolos precisam saber quem manda e que precisam obedecer. É simples, não precisa complicar, se escutou seu nome ser chamado pelo dono... para e atende o chamado... correndo.

O dom de servir para viver.

E os negros que não usam o dom de servir é porque ainda não servem para o dom de viver.

Até os animais gostam de servir e serem cuidados. O que vosmecê acha, Joca?

O que eu acho? Eu acho que também preciso voltar e abrir a loja. Ninguém irá comprar lampião com as portas da loja fechadas. Só se colhe o que se planta. E quem pode dizer como é feliz com o que colhe?

A senzala nova para dar lugar de dormida e descanso aos negros da obra Santa faz parte da sua semeadura?

É um luxo de senzala, Juca. Estou plantando junto com o sinhô padre um lugar no Paraíso.

Cada um carrega o seu Paraíso.

Ou o seu inferno.

os trêis qui descia... agora, subia. a conversa aparecia e desaparecia

Há um lampião dentro de mim.

Há muito remédio dentro de mim.

Chega. Os dois não vão me convencer que cada um carrega por dentro o que faz. Então, por que não tenho dentro de mim mesmo um boi? E castrado?

os trêis qui subia, parô e se agachô de risada

Falando sério... como vosmecês sabem tanto sobre o criolo fujão?

Juca, é só ter ouvidos.

Nem tudo que se escuta é para ser escutado ou pode ser entendido.

É preciso ter paciência e boa vontade com os villeiros.

os trêis voltô subí

É isso. Ele tem falta dos dentes na frente, pouca ou nenhuma barba, baixo, magricela e picado de bexigas que teve há poucos anos, é muito pachola, mal encarado. Coisa ruim de ver e encarar sozinho.

Puxa, vosmecê sabe tudo isso do criolo de ouvir dizer?

Claro que não, Juca. Eu li.

Leu?

E eu sei ler?

Foi vosmecê que disse que leu...

Subir na carreta e viajar pra lá e cá não ensina ninguém sobre as finuras da leitura.

Mas se vosmecê não sabe ler...

Isso, Maneco... se vosmecê não sabe ler como foi que leu os reclames da fuga do tal Fortunato, o fascínora?

Lembrei que estou precisando tomar um chimarrão.

Vou servir um chimarrão quando chegarmos na loja. E vosmecê leu ou não leu?

os trêis deixava um rastro viscoso de caramujo e lesma

Prestei atenção na leitura dos amigos que sabem ler. Para viver não é preciso ler.

Hum...

Aham...

E de mais a mais, os criolos são todos iguais: preto, sem dente, feio, cicatrizes pelo corpo e cabelo ruim. Não sabem falar. Não sabem ler nem escrever. Ignorantes.

Bem isso, Juca. O Maneco Coxa tem razão: se vosmecê viu um... já viu todos.

Vosmecê acha mesmo?

Juca, eu não vi o criolo que provocou essa correria toda, mas escutei que é um criolo que fala apressado e olhando o chão. Já mentiu ser forro e desfilou na Villa calçado.

É um negrinho atrevido.

Não sei, não. Aposto que sabe cozinhar e entende de plantações de roça.

os trêis amigo fez silêncio, eles parecia medí o tamanho das palavra qui devia sê dita. a mudez revigora os pensamento, mais é preciso acordá o qui cada um carrega dentro dele mesmo. o perigo é num tá carregando coisa boa. o maneco foi o primêro qui saiu daquela medição

O que faz um negro fugir da segurança que o seu sinhô pode e deve lhe oferecer para provocar essa correria? Essa confusão só pode terminar em castigo! Por que fugir? É muita estupidez!

o juca foi o próximo qui mandô prus quinto dos inferno a escôia mais boa das palavra dita, no dizê dele, num é as palavra qui provoca confusão, é a confusão qui causa as palavra ruim, Vagabundagem!

os trêis amigo parô os passo qui ia sendo dado no rumo das rua à esmo da subida, pra qualqué lugá nehum. eles num reparô qui a parada forçada foi junto dum otro ajuntamento de gente sendo feito na carona dos vento parado

Vagabundagem, Juca?

Sim... va – ga – bun – da – gem!

Será, Juca?

foi a veiz do joca quebrá o silêncio dos pensamento. num tava indignado, parecia só tá curioso

Meu Deus! Como os meus amigos e vizinhos de comércio são ingênuos. A negrada prefere perambular esmolando nas ruas do que trabalhar com empenho, esforço, fervor e zelo pelo seu sinhô. É só ter olhos para ver!

Concordo...

os trêis virô as vista pru rumo da palavra qui se enfiô na conversa sem tê convocação

Desculpem minha intromissão, continuô o intrometido, todo enfiado em rôpa com uso pra missa dominguêra, cheguei fazem alguns minutos do Rio do Janeiro. Meu nome é Domingos Jorge, o Novo.

Hum... se tem o novo é porque já teve o velho.

Sim... vovô de papai. Pelo menos, é o que se conta na família.

Então...

Desembarquei hoje, como já me referi, e cruzei no caminho com esse negro em fuga. Devo dizer que é muito jovem. Primeiro, pareceu-me ser mais um negro assustado em fuga, mas eu diria em um julgamento apressado que o fujão é apenas mais um tigre.

Tigre, foi u qui us trêis du comércio da villa falô cum espantu nu mesmo tempo, nehum esperava sabê qui u fujão era tão feroz pra sê chamado de tigre. eles se oiô aliviado de num tê seguido na perseguição. tem veiz qui u bão senso dá mais alívio qui a curiosidade, e sempre vai dá mais desafogo qui u ódio

Sim... só mais um tigre, o forastêro parecia se divertí cum a confusão, temos muitos tigres no Rio de Janeiro. E pelo visto, a Villa de vosmecês também faz uso dos cabungueiros.

Cabungueiros?

us trêis pareceu sentí qui a villa tava no fim du mundo. era preciso mandá us fiu das pessoa du bem tê instrução longe da villa, assim eles podia sabê das novidade

Sim... olhem ali, lá vai um cabunguerio... a Villa de vosmecês também faz uso dos cabungueiros. Olhem lá, mais dois cabungueiros.

de novo, lá e cá e pra lá, us trêis caminhava com as vista pra onde u misterioso estranho apontava, oiá eles oiava, mais lá nu lugá qui eles oiava num conseguia achá a resposta

Onde?

eles oiava, mais num sabia vê u qui aquele forastêro tava vendo, era muntu pretu subindo e descendo, munta preta aparecendo e sumindo, muntu muriquinhu gritando, muntu alarido das muriquinha magricela, muntu vira-lata acuando, mijando, muntu excremento nas rua

Ali... vosmecês são cegos? Sem querer ofender... os dois negros descendo com os cabungos nas costas, rumo ao rio...

Ah!

foi a resposta tercina

Os pretos cubeiros!

u dono da botica farmacêutica explicô meió o serviço dos cubêro

Sim, temos cubeiros. A Villa não pode abrir mão dos nossos cubeiros. Carregam os baldes cheios dos dejetos humanos e jogam tudo no rio.

Sem eles a Villa iria feder pior que a carniça mais imunda e pestilenta.

o maneco complementô, Então, o negrinho fujão é cubeiro...

Cubeiro?

foi a veiz do forastêro mostrá qui num sabe tudo, ninguém sabe tudo

Sim. Na Villa usamos um pequeno barril cônico de madeira com aproximadamente cinquenta centímetros de altura, uma boca de mais ou menos vinte e cinco centímetros, chegando sua base ter trinta e cinco centímentros. Os cubos são substituídos semanalmente, ou de acordo com as urgências, para o asséio público. Deixam no lugar outro cubo limpinho, embebido em alcatrão ou outro óleo bem escuro.

Trinta e cinco centímetros do quê?

a purugunta du forastêro deixô us trêis sem tê resposta, Como assim?

Diâmetro ou circunferência?

os tercina da villa se oiô sem tê a resposta, o maneco adiantô-se

E qual a diferença? Dentro do balde só tem merda, mijo e tudo que é porcaria que sai por cima ou por baixo do vivente!

Concordo... tem bobagem que é só bobagem. Serve para tirar a atenção do que interessa. E saber bobagem só ajuda esquecer as coisas mais importantes.

Isso mesmo. Esse fujão não pode escapar.

Um pequeno exemplo e vamos ter nas mãos uma revolta de cubeiros.

Vai sobrar merda para todo mundo!

o joca num se aguentô de curiosidade, E por que no Rio de Janeiro esses negros são chamados de tigres?

o forastêro deu uma sonora risada qui silenciô as gritaria das rua, parecia se divertí muntu com as lembraça qui alegrava sua manhã

Esses coitados são chamados de tigres porque as porcarias humanas que carregam nos ombros escorrem dos recipientes e deixam seus corpos famélicos com listras de fezes, o que levou a serem comparados a tigres.

espritus ou qualqué um qui pode ou qué respondê: como pode esses hôme escravizá us pretu, fazê carregá seu côcô, mijo e vômito, e ainda se apoderá dus pretu inté depois da morte, rindo e se fazendo de cego, surdo e mudo...


uma villa feita cum as entranha dus mais pobre,  dus escravizado... e a hipocrisia e o cinismo dos abençoados



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Leia também:


histórias de avoinha: a parte ruim da vida: a herança do ódio
Ensaio 102B – 2ª edição 1ª reimpressão


histórias de avoinha: a cabeça dum moringue
Ensaio 104B – 2ª edição 1ª reimpressão

terça-feira, 30 de maio de 2017

Querelas do Brasil

ELIS REGINA




O Brazil não merece o Brasil
O Brazil ta matando o Brasil









Querelas do Brasil



O Brazil não conhece o Brasil
O Brasil nunca foi ao Brazil
Tapir, jabuti, liana, alamandra, alialaúde
Piau, ururau, aqui, ataúde
Piá, carioca, porecramecrã
Jobim akarore Jobim-açu
Oh, oh, oh

Pererê, câmara, tororó, olererê
Piriri, ratatá, karatê, olará

O Brazil não merece o Brasil
O Brazil ta matando o Brasil
Jereba, saci, caandrades
Cunhãs, ariranha, aranha
Sertões, Guimarães, bachianas, águas
E Marionaíma, ariraribóia,
Na aura das mãos de Jobim-açu
Oh, oh, oh

Jererê, sarará, cururu, olerê
Blablablá, bafafá, sururu, olará

Do Brasil, SoS ao Brasil
Do Brasil, SoS ao Brasil
Do Brasil, SoS ao Brasil

Tinhorão, urutu, sucuri
O Jobim, sabiá, bem-te-vi
Cabuçu, Cordovil, Cachambi, olerê
Madureira, Olaria e Bangu, Olará
Cascadura, Água Santa, Acari, Olerê
Ipanema e Nova Iguaçu, Olará
Do Brasil, SoS ao Brasil
Do Brasil, SoS ao Brasil



Composição: Aldir Blanc



Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos II

Cruz e Sousa

Obra Completa
Volume 1
POESIA



O Livro Derradeiro
Primeiros Escritos

Cambiantes
Outros Sonetos Campesinas
Dispersas
Julieta dos Santos




OUTROS SONETOS








[DOIS ZOILOS] “DIATRIBE”


Dois zoilos mui completos deste mundo, 
Dois zoilos há terríveis e zelosos, 
Que estando sem fazer, mui ociosos 
Só tratam dum falar nauseabundo.

Eu sei mui bem seus nomes – não confundo 
Com esses bem sensatos, talentosos, 
Com esses lidadores mui briosos 
Que têm estudo imenso e bem profundo!

Mas ah! pra que tempo hei-de gastar 
Com quem só vive imerso na caligem 
D’inveja torpe e vil a esbravejar!

Isto, meus amigos, é impigem 
Que quanto se procura mais coçar 
Tanto e tanto mais só dá prurigem!





[MINH’ALMA ESTÁ] 
Por ocasião dos festejos em homenagem ao sexagésimo primeiro aniversário natalício do eloquentíssimo tribuno sagrado, Joaquim Gomes d’Oliveira Paiva.


Há vultos tamanhos que não 
Cabendo no globo, vão quedos 
Mas solenes, refugiar-se na campa. 
Daí embuçam-se num manto infinito De glórias?...

Minh’alma está agora penetrando 
Lá na etérea plaga, cristalina! 
Que música, meu Deus, febril, divina 
Nos páramos azuis vai retumbando!

Além, d’áureo dossel se está rasgando 
Custosa, de primor, esmeraldina 
Diáfana, sutil, longa cortina 
Enquanto céus se vão duplando!

Em grande pedestal marmorizado 
De Paiva se divisa o busto enorme 
Soberbo como o sol, de luz c’roado

De um lado o porvir – Anteu disforme 
Dos lábios faz soltar pujante brado 
Hosanas! não morreu! apenas dorme.





[ROMPEU-SE O DENSO VÉU] 
Por ocasião da comemoração do sexagésimo primeiro aniversário natalício do ilustre pregador catarinense Joaquim Gomes d’Oliveira Paiva.


Rompeu-se o denso véu do atroz marasmo 
E como por fatal, negro hebetismo 
De antro sepulcral, de fundo abismo 
O povo ressurgiu com entusiasmo!

O Zoilo mazorral se queda pasmo 
Supõe quimera ser, ser cataclismo 
Roga, já por dobrez, por ceticismo 
De néscio, vil truão solta o sarcasmo.

Perdão, Filho da Luz, minh’alma exora 
Porém, a pátria diz, somente agora 
Os grilhões biparti de atroz moleza!

E ele, o nosso herói já redivivo 
De pé, sem se curvar, sereno, altivo 
Co’as raias do porvir mede a grandeza!







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Sousa, Cruz e, 1861-1898 Obra completa : poesia / João da Cruz e Sousa ; organização e estudo por Lauro Junkes. – Jaraguá do Sul : Avenida ; 2008. v. 1 (612 p.)

Edição comemorativa dos 110 anos de falecimento e do traslado dos restos mortais de Cruz e Sousa para Santa Catarina.


O diferencial mais arrojado desta organização reside na opção por buscar maior aproximação ao evoluir poético do instaurador do Simbolismo no Brasil. Seus poemas inéditos, na absoluta maioria anteriores à sua fase simbolista, foram aos poucos sendo recolhidos e publicados sob o título O Livro Derradeiro, que muitas vezes tem provocado interpretações errôneas. Se o livro foi o derradeiro na sua organização, os poemas não pertencem à última fase do poeta e não representam a madureza do pensamento e da arte poética do autor. Optamos, então, por colocar esse livro em primeiro lugar, antes da sua trilogia de livros simbolistas, que, estes sim, representam a arte madura do poeta.


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Leia também:

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Cambiantes I
Cruz e Sousa - Poesias Completas: Cambiantes II
Cruz e Sousa - Poesias Completas: Cambiantes III
Cruz e Sousa - Poesias Completas: Cambiantes IV
Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos I
Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos II
Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos III

segunda-feira, 29 de maio de 2017

Dom Casmurro: Abane a Cabeça, Leitor

Machado de Assis

Dom Casmurro





CAPÍTULO XLV
ABANE A CABEÇA, LEITOR



Abane a cabeça leitor; faça todos os gestos de incredulidade. Chegue a deitar fora este livro, se o tédio já o não obrigou a isso antes; tudo é possível. Mas, se o não fez antes e só agora, fio que torne a pegar do livro e que o abra na mesma página, sem crer por isso na veracidade do autor. Todavia, não há nada mais exato. Foi assim mesmo que Capitu falou, com tais palavras e maneiras. Falou do primeiro filho, como se fosse a primeira boneca.

Quanto ao meu espanto, se também foi grande, veio de mistura com uma sensação esquisita. Percorreu-me um fluido. Aquela ameaça de um primeiro filho, o primeiro filho de Capitu, o casamento dela com outro, portanto, a separação absoluta, a perda, a aniquilação, tudo isso produzia um tal efeito, que não achei palavra nem gesto; fiquei estúpido. Capitu sorria; eu via o primeiro filho brincando no chão...



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Texto de referência:

Obras Completas de Machado de Assis, vol. I,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.

Publicado originalmente pela Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1899.

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Dom Casmurro: Capítulo XLVI / As Pazes


Dom Casmurro: Capítulo Primeiro DO TÍTULO




sexta-feira, 26 de maio de 2017

Memórias Póstumas de Brás Cubas: Que Escapou a Aristóteles

Machado de Assis


Memórias Póstumas de Brás Cubas








CAPÍTULO XLII / QUE ESCAPOU A ARISTÓTELES





Outra coisa que também me parece metafísica é isto: — Dá-se movimento a uma bola, por exemplo; rola esta, encontra outra bola, transmite-lhe o impulso, e eis a segunda boa a rolar como a primeira rolou. Suponhamos que a primeira bola se chama... Marcela, — é uma simples suposição; a segunda, Brás Cubas; a terceira, Virgília. Temos que Marcela, recebendo um piparote do passado rolou até tocar em Brás Cubas, — o qual, cedendo à força impulsiva, entrou a rolar também até esbarrar em Virgília, que não tinha nada com a primeira bola; e eis aí como, pela simples transmissão de uma força, se tocam os extremos sociais, e se estabelece uma coisa que poderemos chamar — solidariedade do aborrecimento humano. Como é que este capítulo escapou a Aristóteles?




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Texto-fonte: 
Obra Completa, Machado de Assis, 
Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994. 


Publicado originalmente em folhetins, a partir de março de 1880, na Revista Brasileira.


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Memórias Póstumas de Brás Cubas: Prólogo e AO LEITOR


quinta-feira, 25 de maio de 2017

Série Ballet - Semionova

Polina Semionova


Ballet - H. Grönemeyer - instrumental





porque dançar é isso...
flutuar desenhos coloridos com o próprio corpo
ah, o corpo...
                                  quanto pecado para hipócritas 
e quanta graça humana para o ballet...
                                   prefiro o ballet aos hipócritas










1º festival de curta-metragem

La Luna










Eu quis ser professor...

e aprendi que seria com todo meu coração ou não seria 

Crônica anunciada de cinema na quinta




não quis a vida de um tolo,
mas é difícil
ditadores arrogantes matam nossos sonhos
os jornalões vendem suas manchetes
os carrões sem tempo para o trânsito 
preferem voar
parece tudo à venda, e o seu coração?
vendido ao ditador eleito ou golpista?
por que ser médico
professor?
por que sair às ruas?
e ser soldado tem algum propósito
além de garantir a lei e a ordem corrupta...











quarta-feira, 24 de maio de 2017

O Velho Francisco

Maria Bethânia



Vida veio e me levou

Hoje é dia de visita
Vem aí meu grande amor
Ela vem toda de brinco









O Velho Francisco


Já gozei de boa vida
Tinha até meu bangalô
Cobertor, comida
Roupa lavada
Vida veio e me levou

Fui eu mesmo alforriado
Pela mão do Imperador
Tive terra, arado
Cavalo e brida
Vida veio e me levou

Hoje é dia de visita
Vem aí meu grande amor
Ela vem toda de brinco
Vem todo domingo
Tem cheiro de flor

Quem me vê, vê nem bagaço
Do que viu quem me enfrentou
Campeão do mundo
Em queda de braço
Vida veio e me levou

Li jornal, bula e prefácio
Que aprendi sem professor
Frequentei palácio
Sem fazer feio
Vida veio e me levou

Hoje é dia de visita
Vem aí meu grande amor
Ela vem toda de brinco
Vem todo domingo
Tem cheiro de flor

Eu gerei dezoito filhas
Me tornei navegador
Vice-rei das ilhas
Da Caraíba
Vida veio e me levou

Fechei negócio da China
Desbravei o interior
Possuí mina
De prata, jazida
Vida veio e me levou

Hoje é dia de visita
Vem aí meu grande amor
Hoje não deram almoço, né
Acho que o moço até
Nem me lavou

Acho que fui deputado
Acho que tudo acabou
Quase que
Já não me lembro de nada
Vida veio e me levou



Composição: Chico Buarque





Mônica Salmaso




DVD, ao vivo, gravado em março de 2008 no teatro Fecap em São Paulo, registra o show homônimo, que já passou pelas principais capitais do país. Ao lado do quinteto Pau Brasil, formado por Nelson Ayres (piano), Paulo Bellinati (violão e cavaquinho), Teco Cardoso (sax e flautas), Ricardo Mosca (bateria) e Rodolfo Stroeter (baixo), Mônica Salmaso contempla diversas fases do autor Chico Buarque.



terça-feira, 23 de maio de 2017

13.O Estrangeiro: Trabalhei muito, durante toda a semana - Albert Camus

Albert Camus


Capítulo 4


13. Trabalhei muito, durante toda a semana




TRABALHEI muito, durante toda a semana. Raimundo veio visitar-me, dizendo que mandara a carta. Fui duas vezes ao cinema com o Manuel, que nem sempre compreende lá muito bem o que se passa na tela. Preciso de lhe ir explicando o filme. Ontem foi sábado e, como ficara combinado, a Maria veio a minha casa. Desejei-a intensamente, porque trazia um vestido às riscas brancas e encarnadas e sandálias de couro. Adivinhavam-se-lhe os seios duros e o queimado do sol dava-lhe uma cara de flor. 

Tomamos um autocarro e fomos para uma praia cercada de rochedos e com canteiros de rosas do lado da terra, a alguns quilômetros de Argel. O sol às quatro horas não estava quente demais, mas a água estava morna, com pequenas ondas longas e preguiçosas. Maria ensinou-me um jogo. Era preciso, nadando, beber à cresta das ondas, acumular toda a espuma na boca e, pondo-nos em seguida de costas, projetá-la para o céu. Isto fazia uma espécie de renda espumosa que desaparecia no ar ou, como uma chuva quente, nos caía na cara. Mas ao fim de algum tempo, tinha a boca a arder devido ao sal. Maria veio então ter comigo e colou-se a mim, na água. Beijamo-nos. A língua dela refrescava-me os beiços e rolamos durante alguns momentos nas vagas. 


Quando nos vestimos na praia, Maria olhava-me com olhos brilhantes. Voltei a beijá-la. A partir daí, não falamos mais. Apertei-a contra mim e só queríamos apanhar depressa um autocarro, ir para minha casa e deitarmo-nos na minha cama. Deixei a janela aberta, e era bom, sentir aquela noite de verão escorregar ao longo dos nossos corpos morenos. 

Esta manhã, Maria ficou comigo e combinamos almoçar juntos. Desci à rua para ir comprar carne. Ao voltar, ouvi uma voz de mulher no quarto de Raimundo. Pouco depois, o velho Salamano ralhou com o cão, ouvimos um barulho de botas e de patas nos degraus de madeira da escada e depois: "Bandido, cão nojento", saíram para a rua. Contei-lhe a história do velho e ela riu-se. Vestira um dos meus pijamas e estava de mangas arregaçadas. Quando se riu, voltei a sentir desejo por ela. Instantes depois, perguntou-me se eu a amava. Respondi-Lhe que não queria dizer nada, mas que me parecia que não: Ficou com um ar triste. Mas, ao preparar o almoço, e sem que viesse a propósito, voltou a rir-se de tal forma, que a beijei outra vez. Foi neste momento que rebentou a discussão em casa do Raimundo. 

Ouviu-se primeiro uma voz estridente de mulher e depois a de Raimundo, dizendo: "Enganaste-me, enganaste-me. Agora é que eu te vou ensinar..." 

Uns ruídos surdos e a mulher pôs-se a berrar, mas de uma maneira tão horrível, que o átrio se encheu de gente. A mulher continuava a gritar e Raimundo continuava a bater-lhe. Maria disse-me que era terrível e eu não respondi.

Pediu-me para ir chamar um polícia, mas eu respondi-lhe que não gostava dos polícias. Mas o meu vizinho do segundo andar, que é canalizador, encarregou-se de ir buscar um. Este bateu à porta de Raimundo e não se ouviu mais nada. Bateu com mais força e, ao fim de alguns instantes, a mulher chorou e Raimundo abriu. Tinha um cigarro na boca e um ar melífluo. A mulher precipitou-se para a porta e declarou ao polícia que Raimundo lhe tinha batido. "O teu nome", disse o polícia. Raimundo respondeu-lhe. "Tira o cigarro da boca enquanto me estás a falar", disse o polícia. Raimundo hesitou, olhou para mim e ficou com o cigarro na boca. Neste momento, o polícia deu-lhe uma bofetada com toda a força, em plena cara. O cigarro foi cair alguns metros mais adiante. Raimundo mudou de expressão, mas não disse nada, até que perguntou com uma voz humilde se podia ir apanhar o cigarro. O agente declarou que sim e acrescentou: "Mas ficas a saber que um polícia, não é nenhum fantoche". Entretanto a rapariga chorava, repetindo: "Ele bateu-me, é um malandro". "Sr. Guarda, perguntou, Raimundo então, é da lei, chamar malandro a um homem?" 

Mas o polícia mandou-lhe que "calasse o bico". 

Raimundo voltou-se para a mulher e disse: "Não perdes pela demora, pequena, está descansada." O polícia disse-lhe que se calasse, que a mulher tinha que se ir embora e que ele ficasse no quarto até receber convocação do comissariado. Acrescentou que Raimundo devia ter vergonha de estar bêbedo ao ponto de todo ele tremer. Raimundo explicou: "Não estou bêbedo, sr. guarda. Mas diante de si, não posso deixar de tremer". Fechou a porta e todos se foram embora. Maria e eu acabamos de preparar o nosso almoço. Como ela não estava com fome, comi quase tudo. Saiu à uma hora e ainda dormi um bocado. 

Pelas três horas bateram à porta e Raimundo entrou. Deixei-me ficar deitado. Sentou-se na borda da cama. Ficou uns instantes sem falar e eu perguntei-lhe como é que o caso se tinha passado. Contou-me que fizera o que fora planeado, mas que ela lhe dera uma bofetada e que então começara a bater-lhe. Quanto ao resto, eu tinha-o visto com os meus próprios olhos. Disse-lhe que me parecia que, agora que ela estava castigada, já podia estar contente.

Era também a opinião dele, e observou ainda que, por mais que a polícia fizesse, já ninguém lhe tirava a pancada que recebera. Acrescentou que conhecia os polícias e sabia perfeitamente como se deve lidar com eles. Perguntou-me então se eu julgara que ele ia responder à bofetada do polícia. Respondi-lhe que não julgara absolutamente nada e que, aliás, não gostava dos polícias. Raimundo pareceu ficar muito contente. Perguntou-me se queria sair com ele. Levantei-me e comecei-me a pentear. Disse que era preciso que eu servisse de testemunha. A mim, tanto se me dava, mas não sabia o que havia de dizer. Na opinião de Raimundo, bastava declarar que a mulher o enganara. Aceitei ser testemunha. 

Saímos e Raimundo ofereceu-me um copo de aguardente. Depois quis jogar uma partida de bilhar e ganhou-me por pouco. A seguir, queria ir a um bordel, mas eu disse que não, porque não tinha vontade. Então voltamos lentamente para casa e ele voltou a dizer até que ponto se sentia contente por ter conseguido castigar a amante. Achei-o muito simpático comigo e pensei que era um momento bem agradável. 

Distingui ao longe, na soleira da porta, o velho Salamano com um ar agitado. Quando nos aproximamos, reparei que não estava com o cão. Olhava para todos os lados, dava voltas sobre si mesmo, tentava penetrar com os olhos na escuridão do corredor, resmungava palavras sem nexo e recomeçava a observar a rua com os seus pequenos olhos avermelhados. Quando Raimundo lhe perguntou o que se passava, não respondeu logo a seguir. Ouvi-o vagamente murmurar: "Bandido, cão nojento", e continuou a agitar-se. Perguntei-lhe onde estava o cão. Respondeu-me bruscamente que se fora embora. E depois, de repente, pôs-se a falar muito: "Levei-o como de costume ao Campo das Manobras. Em volta das barracas da feira, havia muita gente. Parei um bocado para olhar «o Rei da Evasão». E quando me quis ir embora, não o vi. Há muito tempo que lhe queria comprar uma coleira mais pequena. Mas nunca pensei que esse cão nojento fugisse desta maneira". 

Raimundo explicou-lhe então que o cão possivelmente se perdera e que havia de voltar. Citou-lhe vários exemplos de cães que tinham percorrido dezenas de quilômetros para encontrar os donos. Apesar disso, o velho estava cada vez mais agitado.

"Vão apanhá-lo, com certeza. Ainda, se alguém o recolhesse... Mas não! Com aquelas feridas, enoja toda a gente. A carroça leva-o, tenho a certeza". Eu disse-lhe então que se dirigisse à Câmara e que lho devolviam, caso pagasse o imposto. Perguntou-me se este imposto era muito caro: Eu não sabia. Neste momento, encolerizou-se: "Dar dinheiro por aquele cão nojento?! Ele que rebente para aí!" E pôs-se a insultá-lo. Raimundo riu e entrou em casa. Segui-o, e despedimo-nos à porta dos nossos quartos. Pouco depois ouvi os passos do velho e bateram à porta. Fui abrir e ele ficou uns instantes a olhar para mim. Disse: 

- "Desculpe, desculpe". Convidei-o a entrar, mas ele não quis. Olhava para as pontas dos pés e tremiam-lhe as mãos. Olhando para o lado, perguntou: "Não o vão apanhar, pois não, sr. Meursault? Vão-mo dar outra vez, não vão? O que vai ser de mim?! O que vai ser de mim?!" Disse-lhe que os cães ficavam durante três dias na câmara à disposição dos donos e que, depois disso, lhes davam o destino que melhor lhes parecia. Olhou para mim sem dizer uma palavra. Depois, disse: "Boas noites". Fechou a porta e ouvi-o andar de um lado para o outro. A cama dele rangeu. E, pelo estranho barulho que me chegava através da parede, compreendi que estava a chorar. Não sei porquê, pensei na minha mãe. Mas no dia seguinte, precisava de me levantar cedo. Não tinha fome e deitei-me sem jantar.


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A Constatação do Absurdo

Nascido e criado entre contrastes fundamentais, Albert Camus desde cedo aprendeu que a miséria engendra uma solidão que lhe é típica, uma austeridade toda sua, uma desconfiança da vida - mas a paisagem desperta uma rica sensualidade, uma eufórica sensação de onipotência, um orgulho desmedido de possuir a beleza inteiramente gratuita. Este aprendizado, feito a meio caminho entre a miséria e o sol, levou-o à consciência do que existe de mais trágico na condição humana: o absurdo, essa irremediável incompatibilidade entre as aspirações e a realidade.


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Camus, Albert, 1913-1960.
              O Estrangeiro
Título Original L'Étranger
Tradução de António Quadros
Edição Livros do Brasil
Lisboa
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Leia também:

12.O Estrangeiro: De resto, antes de me perguntar - Albert Camus


1.O Estrangeiro: Hoje, minha mãe morreu - Albert Camus


domingo, 21 de maio de 2017

histórias de avoinha: a parte ruim da vida: a herança do ódio

mulheres descalças


a parte ruim da vida: a herança do ódio
Ensaio 102B – 2ª edição 1ª reimpressão


baitasar



tê vida na villa qui os branco grita e avisa e jura qui é dos branco – é eles qui manda e desmanda, e acusa, e aponta, e prende, e solta, e perdoa – num é lugá prus fraco. é um vazio de vida prus pretu qui é obrigado vivê docilmente silenciado, como se as corrente, os açoite, os grito, as ameaça e o uso do corpo dos pretu como ferramenta fosse coisa boa e justa de sê

é preciso resistí à tristeza de vivê sem vida pra escoiê, num tê a própria vida

na villa, os qui se credita dono de tudo num qué vê os pretu e os índio como gente da villa, então, num deixa ninguém vê nem mudá a vida desconjuntada sem vida deles. num é um lugá qui protege os fraco, é um lugá qui usa os fraco dum jeito violento, afiado, indecente e jura qui é pru bem deles, num é pru mau; os dono de tudo jura qui os pretu num sabe sê gente como os branco sabe sê

sê pretu e durá na vida num dava alívio, dá muntu calafrio de atormentamento e amargura vivê pra vê os pretu novo morrê de véio sem tá véio, desembocando no rastro do desaparecimento sem tá doente, tê fome e escutá qui é vagabundo, chorá e sê acusado de fingido. num é depois de morrê qui a virtude vai acordá, num é depois de morrê qui os fiu vai nascê

depois de morrê os espritu pode dançá, cantá, subí e descê, mais o morto tá desembocado da vida: sem trilha pra caminhá, sem rochedo pra subí, sem ilusão pra vivê, sem prosperidade pra abocanhá, sem rio qui leva pra vasteza das água funda, sem gritaria, sem sol, sem sê vento, sem sê as estrela. os morto depois de morrê tá morto

os branco vivo gosta do qui gosta: a regalia de tê os pretu pra dominação e uso no próprio gosto, eles tá muntu atarefado com eles mesmo pra sê diferente dos vaidoso qui qué a vida só prus branco vivo; eles num sente vergonha nem alívio pras maldade feita

eles oferece prus pretu a paciência dócil do silêncio ou a morte

num dá pra dizê qui num era assim, num dá pra dizê qui num é assim

Reza junto, mãinha!

o abicu insistia nos pedido pra cavalaria, Peço ajuda à preciosa Cruz do Senhor São Bento, enquanto ele pedia reforço de salvamento um nevoêro desceu na villa, o clarão amarelão chegô pra cima do dia acinzentado anunciando qui o dia podia ficá mais bão qui tava, mais era preciso esperá docilmente, era só tê paciência pra aguardá a natureza agí

as palavra dita pelo abicu quando dita sozinha tem um podê menó de ajudá. muntu mais forte qui um pedindo é dois pedindo. ele parô as vista em mãinha, lhe procurô com o pedido de socorro nas vista, ele sabia qui precisá ajuda num é o mesmo qui pedí ajuda, Reza junto... mãinha... por favor...

Continua, abicu! É bão pedí pra vida acordá desembaraçada dos soluço frustrado, prus espritu bão combatê sem vingança pela justeza da justiça, mais é bão num esquecê qui o entendimento justo num pode sê só aparência!

tem veiz qui é só pedí, Eu sou o moleque Fumaça, os soldados da Cavalaria sabem que não nasci, nem longe nem perto daqui, mas peço para ver do fogo o ferro, do ar o feitiço, da peste o bicho peçonhento, pois tenho para minha defesa Jesus Cristo e o Senhor São Bento, ele tava todo espichado inté na ponta dos pé na cabeça da pedra, os braço e os óio pra cima, continuô, na Arca de Noé me meto, com a chave de São Pedro me fecho, e com os três me acompanho: Pai, Filho e Espírito Santo. Amém.

Muntu bem dito, muriquinhu...

a louvação pra reza feita sai da mais véia pru abicu, o muriquinhu qui num tá nascido

mais tem veiz, munta veiz, quase toda veiz, qui cada um tem tanta justeza na justiça tanto quanto vale a sua energia, força e resistência pra cansá o siô dono de tudo. rezá é bão pruqui chama a cavalaria pra luta, mais fazê o dono de tudo vê qui tumbém vai perdê pode sê meió qui só rezá. num é tarefa fácil e dócil, precisa sê quase invencível

Vamu, muriquinhu... falta rezá o Pai Nosso e mais a Ave Maria...

ali, na ponta dos pé, no topo da pedra da infâmia, o muriquinhu furô no meio o nevoêro com o esquicho dum clarão da mijadêra, parecia um arco de chuva colorida e brilhante, fez toda volta da pedra inté fechá a cercadura da infâmia, Eu juro que todo homem ou mulher que se deliciar com o uso desta pedra não vai ter descanso! É preciso marcar a maldade e lutar, tratá os pretu como apetrecho de utilidade faz-tudo, como a parte ruim da vida pra sê abandonada depois de estragada, é vivê solto nas asa da ruindade

a mais véia oiô com ôio de corretivo pru muriquinhu qui num nasceu, Fumaça! U muriquinhu abicu num pode esquecê qui tâmo nesse trabáio pra desbaratá as coisa ruim. É muntu preciso derramá o amô qui tem muntu no tabulêro. É preciso fazê abundá esse amô nas pessoa.

o abicu cismado parô o esguicho da demarcação, queria mostrá respeito com a mais véia, mais num segurô as palavra qui nascia dos pensamento mais fundo qui conseguia soltá na garganta depois de passá pelo curação. o peito tava esparramado, tava inchado com tanta dô escondida, impedida de saí e flutuá com a vontade de sê igual. num queria sê mais meió nem mais pió, queria sê tratado sem ódio como parte boa da vida, mais as palavra qui soltô com vontade balançô as rua da villa, O amor? Olha na sua volta, mãinha. Essa correria não é para entrar no baile nem para admirar as delícias do sol brilhando nas águas do rio. O amor que transborda no tabuleiro foi pisoteado, caiu no chão e foi humilhado, espezinhado, machucado, pela correria desta gente egoísta. A curiosidade indiferente embrustece e asfixia esse amor. Não dá gosto viver na Villa sendo apontado como a parte ruim da vida!

Cruiz e credo, muriquinhu abicu! As coisa dita pela boca do muriquinhu faz parecê mais penoso e triste vivê na Villa. Faz doê e sê mais doído qui já é...

a voz da mais véia tremeu, num queria deixá aquela dô lhe entrá como uma maldição, num queria ficá presa na amargura qui num mexe os pé pra mudá do lugá qui tá

... a ruindade existe em tudo qui é parte. Num é bão cansá a alegria com o gosto vingativo nem acostumá com o prato frio e arruinado. Num tê é bão se pra tê é preciso fazê os otro perdê o gosto da vida.



o abicu sentô no topo da pedra, os óio oiando as mão acomodada nas perna. a voz qui ele soltô num parecia tá zangada, mais continuava dura e provocativa

E não é torturante e desesperador para qualquer homem ou mulher ser aprisionado e escravizado? Não é injusto os dono de tudo usarem a igreja, os padre e as reza para não permitirem que o preto escolha a vida que quer... ou não quer? Não é um desalento manter o preto sem instrução para continuar desolado e isolado das coisas boas? Ainda vai ter muito mais tempo que esse vivido, muita conversa, e quase nada feito, para mudar essa afobação e correria.

Eu sei... essa preta sabe... dói sabê.

a dô dos dois ficô misturada

as ideia do passado num morre no passado, elas muda o jeito de se mostrá, mais num morre, passa dos pai prus fiu: a herança do ódio. o gosto de escravizá num vai morrê enquanto existí gente qui credita – e se admira e se saboreia – no sofrimento dos pretu e no acabamento defunto dos índio

A Villa foi arruinada pela desumanidade e vai continuar assim até virar pelo avesso. A ânsia pela felicidade ligada ao egoísmo enche corações longamente ocupados com o desamor, deitô-se com as costa no topo da pedra, gosta de colocá os óio no mundo qui parece num existí, depois de meió acomodado, continuô, a Villa está acostumada com o desapego e o desprezo com os desletrados, o que acontece hoje acontecerá amanhã.

liberata desviô os passo do tabulêro e foi no rumo qui precisô pra ficá no lugá qui podia vê o abicu, e repará na correria, lá pra perto do rio

Eu vô continuá tentando.

o abicu saltô da pedra com as asa qui só os anjo usa, ficô de frente com a liberata

É inútil falar de amor para animais. A mãinha pode continuar tentando, mas essa correria é o momento de maior significado na Villa, vem das formas puras do ódio acumulado por dias, anos e tempos, como uma tanga que cobre as vistas e se esconde das vergonhas de saber da tristeza do escravizado que se mata comendo terra ou se enforca, ou se envenena, ou se entrega aos abusos da aguardente, da maconha, da mão subindo e descendo no mastro duro e solitário, da preta violentada, do muriquinho que precisa crescer sem ninguém na sua volta.

a mais véia quase se dobrô de dô, mais em veiz disso, deu dois passo e avisô o muriquinhu qui ele precisava voltá pra pedra e dizê o qui tava acontecendo, Agora, Fumaça, seu lugá nesta correria é oiá do mais alto lugá.

Eu volto.

liberata oiava prus lado, tudo qui era lado, É preciso desaprendê odiá, muriquinhu...

Falar é mais fácil que ensinar.

ergueu a cabeça com as força qui lhe restava, Hoje, ocê tá impossível, parô as palavra qui tava saindo, respirô duas veiz, bem fundo, antes de continuá, a maldade num é uma maldição qui nasce com as pessoa.

A maldade nasce das pessoas, mãinha.

a baronesa qui oiava prus lado da correria e num sabia escutá as conversa do abicu abriu nova conversa, Liberata, esse nevoeiro desceu na hora certa para atrapalhar as vistas e ajudar o fujão. Ele precisa de toda ajuda. Vou tratar disto.

a mais nova levô as mão junta no peito qui só ficava mais apertado, voltô as vista pru barão e pediu ajuda

Não posso ajudar nenhum negro em fuga, foi a resposta qui teve

o abicu oiô firme pra mais véia, a resposta do barão podia sê otra pra agradá a baronesa, mais pensô nas resposta qui ia precisá tê pru superiô dele. quem manda sempre vai tê otro qui manda mais. é o balanço com gosto amargo dos menó qui sempre tem alguém mandão pra sê obedecido

ninguém chega na posição qui ele tá na villa – e num qué perdê – ajudando os pretu fujão. ninguém chega lá, tão perto de tudo, e acima do todo, sem sê desumano, demasiado desumano, desfeito de sê gente. e se chegá sem esquecê de sê gente, logo vão lhe fazê esquecê. ninguém vai tão mais longe sem fazê as pessoa ficá apalermada pra acreditá qui a vida precisa tê mais sofrimento qui vida, qui vida sem sofrimento num é vida. quem nunca escutô qui o paraíso é prus puro do curação... sofrimento nesta vida pra tê a vida de morto eterna? escuta, repete... inté qui o apalermado creditá qui as coisa qui ele pensa é ele qui pensa

as pessoa corria pra tê tempo de oiá os resto do pretu sê agarrado e jogado no buraco da terra, elas soltava as conversa mais animada das coisa qui num viu, só ouviu, e pode tê coisa mais apalermada qui repetí as mentira? o apalermado é tão bem ensinado qui num sabe qui é apalermado, num sabe qui num pensa. o palermado jura qui os pretu num é gente pruqui se fosse gente num tava na vida qui tá

a correria apressada era pra num perdê nada

Esse negro fujão vai se esconder na mata?

Mas que mato? Por ali? Ali só tem água...

Aposto que escapa.

Na água? E negro sabe nadar?

Não conheço um que não afunda! Hahahaha!

Bem isso, são bons para fazerem uma faca, um machado, mas pescar... e se não fossem vagabundos e preguiçosos poderiam ser melhores na produção dos alimentos.

Eu gosto das danças... ah, as negras... bem limpinhas... ah...

Ouvi dizer que gostam de decapitar os donos e beber o sangue... Não sei se eles gostam, mas é o que dizem.

Quanta bobagem, se for preciso fazer eles fazem uma bebedeira – que aliás adoram – e muita depravação. São depravados... e só.

E a feitiçaria?

os três siô distinto num corria, mais caminhava na direção do rio. eles tinha a pose de quem parecia sabê tudo de nada dos pretu, como se sabê de ouví dizê fosse bão pra conhecê tudo qui é pretu

a conversa e os grito qui descia a rampa da rua, tumbém subia. num tem lei qui vai resolvê tanto desprezo, num tem conversa qui resolve tanta vontade de sê superiô, acima de tudo e do todo, sê pra sempre dum otro jeito é mudá os muriquinhu. ensiná o amô precisa sê a nossa herança

a inquietação num pode sê uma vontade vazia e sem ação






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Leia também:


histórias de avoinha: Vamô chamá Cavalaria! Viva São Bento Pequeno, protetô nazareno!
Ensaio 101B – 2ª edição 1ª reimpressão


histórias de avoinha: hômi tigre
Ensaio 103B – 2ª edição 1ª reimpressão


ah... teu cheiro em meu lençol

Alceu Valença





o que seria desse rico país sulista preconceituoso se não fossem os nordestinos...




La Belle de Jour / Girassol




La Belle De Jour


Ah hei! Ah hei! Ah hei!
Ah! La Belle de Jour!
Ah hei! Ah hei! Ah hei!

Eu lembro da moça bonita
Da praia de Boa Viagem
E a moça no meio da tarde
De um domingo azul
Azul era Belle de Jour
Era a bela da tarde
Seus olhos azuis como a tarde
Na tarde de um domingo azul
La Belle de Jour!

Eu lembro da moça bonita
Da praia de Boa Viagem
E a moça no meio da tarde
De um domingo azul
Azul era Belle de Jour
Era a bela da tarde
Seus olhos azuis como a tarde
Na tarde de um domingo azul
La Belle de Jour!

Belle de Jour!
Oh! Oh!
Belle de Jour!
La Belle de Jour
Era a moça mais linda
De toda a cidade
E foi justamente pra ela
Que eu escrevi o meu primeiro blues

Mas Belle de Jour
No azul viajava
Seus olhos azuis como a tarde
Na tarde de um domingo azul

La Belle de Jour!
La Belle de Jour!

Eu lembro da moça bonita
Da praia de Boa Viagem
E a moça no meio da tarde
De um domingo azul
Azul era a Belle de Jour
Era a bela da tarde
Seus olhos azuis como a tarde
Na tarde de um domingo azul
La Belle de Jour!

Eu lembro da moça bonita
Da praia de Boa Viagem
E a moça no meio da tarde
De um domingo azul
Azul era a Belle de Jour
Era a bela da tarde
Seus olhos azuis como a tarde
Na tarde de um domingo azul
La Belle de Jour!.

Belle de Jour!
Oh! Oh!
Belle de Jour!

La Belle de Jour
Era a moça mais linda
De toda a cidade
E foi justamente pra ela
Que eu escrevi o meu primeiro blues

Mas Belle de Jour
No azul viajava
Seus olhos azuis como a tarde
Na tarde de um domingo azul
La Belle de Jour!
Ah hei! Ah hei! Ah hei!
Ah hei! Ah hei! Ah hei!



Composição: Alçeu Valença




Morena Tropicana







Alceu Valença canta com músicos de rua no Rio de Janeiro







sábado, 20 de maio de 2017

O Segundo Sexo - 9. Fatos e Mitos: um dos traços mais notáveis

Simone de Beauvoir



9. Fatos e Mitos


Primeira Parte
Destino

CAPITULO I
OS DADOS DA BIOLOGIA




 : um dos traços mais notáveis




UM DOS TRAÇOS MAIS NOTÁVEIS, quando percorremos os diversos graus da escala animal, é o fato de que de baixo para cima a vida se individualiza; embaixo, ela emprega-se unicamente na manutenção da espécie, em cima ela gasta-se através de indivíduos singulares. Nas espécies rudimentares, o organismo como que se deixa reduzir ao aparelho reprodutor; nesse caso, há primazia do óvulo, e portanto da fêmea, posto que o óvulo está principalmente votado à pura repetição da vida; mas ela não passa de um abdome e sua existência é por inteira devorada pelo trabalho de uma monstruosa ovulação. Atinge, em relação ao macho, dimensões gigantescas; muitas vezes seus membros são apenas cotos, seu corpo um saco informe, todos os órgãos degeneram em proveito dos ovos. Em verdade, embora constituindo dois organismos distintos, machos e fêmeas mal podem então ser encarados como indivíduos, formam um só todo com elementos indissoluvelmente ligados: são casos intermediários entre o hermafroditismo e o gonocorismo. Assim, entre os entoniscíneos que vivem como parasitas no caranguejo, a fêmea é uma espécie de chouriço esbranquiçado, envolvido em lâminas incubadoras que encerram milhares de ovos; no meio destes encontram-se minúsculos machos e larvas destinadas a fornecer machos de substituição. A escravização do macho não é ainda mais total entre os edriolidíneos: acha-se ele fixado sob o opérculo da fêmea, não possui tubo digestivo pessoal e seu papel é unicamente reprodutor. Mas em todos esses casos não é a fêmea menos escravizada do que ele; ela está escravizada à espécie. Se o macho encontra-se preso à fêmea, esta também se encontra presa ou a um organismo vivo de que se nutre como parasita ou a um substrato mineral; consome-se na produção dos ovos que o minúsculo macho fecunda. Quando a vida assume formas mais complexas, esboça-se uma autonomia individual e o laço que une sexos se afrouxa. Mas entre os insetos os dois sexos permanecem estreitamente subordinados aos ovos. Amiúde, como entre os efemerópteros, macho e fêmea morrem imediatamente depois do coito e da postura; por vezes, como entre os rotíferos e os mosquitos, o macho, desprovido de aparelho digestivo, sucumbe após a fecundação, enquanto a fêmea, que pode alimentar-se, sobrevive; é que a formação dos ovos e a postura exigem algum tempo. A mãe expira logo que o destino da geração seguinte acha-se assegurado. O privilégio da fêmea, entre grande número de insetos, provém de ser a fecundação um processo geralmente muito rápido, ao passo que a ovulação e a incubação dos ovos exigem um trabalho demorado. Entre as térmitas, a enorme rainha — empanturrada de papa, que põe um ovo por segundo até que, afinal estéril, é exterminada impiedosamente — não é menos escrava do que o macho anão, grudado ao abdome dela e que fecunda os ovos à proporção que vão sendo expelidos. Nos matriarcados dos formigueiros e das colmeias, os machos são uns importunos exterminados em cada estação: no momento do voo nupcial, todos os machos saem do formigueiro e alçam voo em busca das fêmeas; se as atingem e fecundam, morrem logo após, esgotados; se retornam, as operárias impedem-nos de entrar, matam-nos ou deixam-nos morrer de fome. Mas a fêmea fecundada tem um triste destino: afunda solitariamente no solo e não raro perece de esgotamento, pondo os primeiros ovos. Se consegue reconstituir um formigueiro aí passa doze anos fechada, desovando incessantemente; as operárias, fêmeas cuja sexualidade foi atrofiada, vivem quatro anos, mas uma vida inteiramente consagrada ao cuidado das larvas. O mesmo ocorre entre as abelhas: o zângão que se une à rainha no voo nupcial cai ao chão mutilado; os outros zângãos são recolhidos à colmeia onde levam uma existência ociosa e embaraçante. No início do inverno, executam-nos. Mas as fêmeas abortadas, as operárias, pagam seu direito à vida com um trabalho incessante; a rainha é, de fato, a escrava da colmeia: desova incessantemente. E, quando da morte da velha rainha, várias larvas são alimentadas de maneira a poderem disputar a sucessão; a que nasce primeiro assassina imediatamente as outras. A fêmea da aranha gigante carrega os ovos numa bolsa até a maturidade; é bem maior e mais robusta que o macho, e devora-o após o coito. Observam-se os mesmos costumes na fêmea do louva-a-deus, em torno da qual se cristalizou o mito da feminilidade devorante. O óvulo castra o espermatozoide, a fêmea do louva-a-deus assassina o parceiro: tais fatos prefigurariam um sonho feminino de castração. Mas na realidade, é principalmente em cativeiro que a fêmea do louva-a-deus manifesta tanta crueldade; em liberdade, com alimentação suficiente, é muito raro que devore o macho. Se o faz, é como a formiga solitária que não raro come alguns de seus ovos, a fim de ter forças para desovar e perpetuar a espécie. Ver nesses fatos uma prefiguração "da luta dos sexos" que opõe os indivíduos como tais, é divagar. Nem entre as formigas, as abelhas e as térmitas, nem no caso da aranha ou do louva-a-deus, pode-se dizer que a fêmea escraviza e devora o macho: é a espécie que, por vias diferentes, devora a ambos. A fêmea vive mais tempo e parece mais importante, mas não tem qualquer autonomia; a desova, a incubação, o cuidado com as larvas constituem o seu destino, sendo suas demais funções total ou parcialmente atrofiadas. No macho, ao contrário, esboça-se uma existência individual. Muitas vezes, manifesta na fecundação mais iniciativa do que a fêmea; ele é que vai à procura dela, ataca-a, apalpa-a, segura-a e impõe-lhe o coito. Por vezes tem que disputá-la com outros machos. Correlativamente, os órgãos da locomoção, do tato, da preensão, são nele mais evoluídos; muitas borboletas fêmeas são ápteras enquanto os machos possuem asas; estes têm cores, élitros, patas, pinças mais desenvolvidos, e não raro essa riqueza é acompanhada de um verdadeiro luxo de cores brilhantes. Fora do coito fugaz, a vida do macho é inútil, gratuita. Ao lado da diligência das operárias, a ociosidade dos zângãos é um privilégio notável. Mas esse privilégio é um escândalo; amiúde o macho paga com a vida uma futilidade em que se esboça a independência. A espécie que mantém as fêmeas escravizadas pune o macho que pretende escapar à escravidão: suprime-o brutalmente.

Nas formas mais elaboradas da vida, a reprodução torna-se produção de organismos diferençados: assume dupla face. Mantendo a espécie, cria também novos indivíduos. .Esse aspecto inovador afirma-se à proporção que a singularidade dos indivíduos se confirma. O que impressiona então é que os dois momentos da perpetuação e da criação se dividem; essa cisão já indicada no momento da fecundação do ovo reencontra-se no conjunto do fenômeno gerador. Não é a própria estrutura do óvulo que exige essa divisão; a fêmea possui, como o macho, certa autonomia e sua ligação com o óvulo afrouxa-se; o peixe, o batráquio e o pássaro fêmeos não são apenas um abdome; quanto menos estreita é a ligação da mãe com o ovo, menos o trabalho do parto é absorvente, maior é a indeterminação na relação dos pais com a prole. Pode acontecer que o pai se encarregue de alimentar as vidas recém-formadas; isso é coisa frequente entre os peixes. A água é um elemento suscetível de levar os óvulos e o esperma a assegurarem sua união; a fecundação no meio aquático é quase sempre externa. Os peixes não se juntam, quando muito alguns se esfregam um contra o outro, para se estimular. A mãe expulsa os óvulos; o pai expele o sêmen; idêntico é o papel de ambos. Não há razão para que a mãe, mais do que o pai, reconheça os ovos como seus. Em certas espécies, estes são abandonados pelos pais e desenvolvem-se sem ajuda; por vezes, a mãe lhes prepara um ninho; por vezes, ainda, ela vela sobre eles após a fecundação; mas, amiúde, é o pai que os toma a seu cargo: logo depois de os ter fecundado, expulsa a fêmea que os tenta devorar, e os defende ferozmente contra qualquer presença. Citam-se alguns que constituem uma espécie de ninho protetor emitindo bolhas de ar envolvidas numa substância isolante: outros incubam os ovos na boca ou, como o hipocampo, nas pregas do ventre. Observam-se fenômenos análogos entre os batráquios: não conhecem um verdadeiro coito. O macho abraça a fêmea e assim estimula a desova, deixando escapar o sêmen na medida em que os ovos saem da cloaca. Amiúde — particularmente no sapo conhecido pelo nome de sapo-parteiro — é o pai que, enrolando rosários de ovos em volta das patas, os carrega consigo e assegura-lhes o desabrochar. Entre os pássaros, a formação do ovo dentro da fêmea opera-se assaz lentamente, sendo o ovo, relativamente grande, expelido com dificuldade; esse ovo tem com a mãe relações muito mais estreitas do que com o pai que o fecundou durante um coito rápido. É, em geral, a fêmea que o choca e vela pelos filhotes. Mas, muito frequentemente, o pai participa da construção do ninho, da proteção e da alimentação da prole. Há casos, muito raros — como entre os pardais — em que o pai é quem choca e cria. Os pombos, machos e fêmeas, secretam no papo uma espécie de leite com que alimentam os borrachos. O que é notável, em todos esses casos em que o pai desempenha um papel nutriente, é que, durante o período em que se consagra à prole, a espermatogênese interrompe-se: ocupado em manter a vida, não sente mais o impulso de suscitar novas formas de vida.


É entre os mamíferos que a vida assume as formas mais complexas e individualiza-se mais concretamente. Então a cisão dos dois momentos vitais, manter e criar, realiza-se de maneira definitiva na separação dos sexos. É nessa divisão — considerando unicamente os vertebrados — que a mãe estabelece com sua progênie as relações mais estreitas e que o pai mais se desinteressa dela. Todo o organismo da fêmea adapta-se à servidão da maternidade e por esta é comandado, ao passo que a iniciativa sexual é apanágio do macho. A fêmea é a presa da espécie; durante uma ou duas estações, segundo os casos, toda sua vida é regulada por um ciclo sexual, o ciclo do estro, cuja duração e ritmo de sucessão variam de uma espécie a outra. Esse ciclo decompõe-se em duas fases: durante a primeira, há maturação dos óvulos (em número variável segundo as espécies) e um processo de nidificação no útero; durante a segunda fase, produz-se uma necrose graxosa que conduz à eliminação do edifício assim elaborado sob a forma de um corrimento esbranquiçado. O estro corresponde ao período do cio; mas o cio tem na fêmea caráter passivo; ela está preparada para receber o macho: aguarda-o. Acontece mesmo, entre os mamíferos — como também entre certos pássaros — que ela o solicite, mas restringe-se a dirigir-lhe um apelo por meio de gritos, atitudes, exibições; não lhe poderia impor o coito. No fim, a ele é que cabe decidir.


Viu-se que, mesmo entre os insetos, entre os quais, pelo sacrifício total que consente em prol da espécie, a fêmea assegura-se a si mesma tão grandes privilégios, é o macho geralmente que provoca a fecundação; muitas vezes, entre os peixes, ele incita a fêmea à desova com sua presença ou com seus contatos; entre os batráquios age como estimulador. Mas é principalmente entre os pássaros e os mamíferos que o macho se impõe à fêmea; frequentemente ela o aceita com indiferença e mesmo lhe resiste. Por provocante ou tolerante que seja, é o macho, de qualquer modo, quem possui: ela é possuída; ele pega, ela é pegada e a palavra tem, por vezes, um sentido muito preciso: ou porque tem órgãos adaptados, ou porque é o mais forte, o macho segura-a, imobiliza-a; efetua ativamente os movimentos do coito. Entre muitos insetos, entre os pássaros e os mamíferos, ele a penetra. Em virtude disso, a fêmea apresenta-se com uma interioridade violentada. Não é a espécie que o macho violenta, porquanto esta só se perpetua renovando-se; pereceria se os óvulos e os espermatozoides não se encontrassem; só que a fêmea, encarregada de proteger o ovo, encerra-o dentro de si própria e seu corpo, que constitui para o óvulo um abrigo, subtrai-o também à ação fecundante do macho. Trata-se, portanto, de uma resistência que cumpre quebrar e, em o penetrando, o macho realiza-se como atividade. Seu domínio exprime-se pela posição do coito: entre quase todos os animais o macho coloca-se sobre a fêmea. Sem dúvida, o órgão de que ele se serve é também material, mas êle mostra-se sob seu aspecto animado: é um instrumento; ao passo que, nessa operação, o órgão feminino não passa de um receptáculo inerte. O macho nele deposita o sêmen; a fêmea recebe-o. Assim, embora desempenhando na procriação um papel fundamentalmente ativo, ela sofre o coito que a aliena de si mesma pela penetração e pela fecundação interna; embora ela sinta a necessidade sexual como uma necessidade individual, posto que no cio acontece-lhe procurar o macho, a aventura sexual é entretanto vivida por ela, no imediato, como uma história interior e não como uma relação com o mundo e com outrem.

Mas a diferença fundamental entre o macho e a fêmea dos mamíferos está em que, no mesmo rápido instante, o espermatozoide, pelo qual a vida do macho transcende-se em um outro, desgarra-se de seu corpo e se torna estranho a ele; assim o macho, no momento em que supera sua individualidade, nela se encerra novamente. Ao contrário, o óvulo começa a separar-se da fêmea quando, maduro, desprende-se do folículo para cair no oviduto; mas, penetrado por um gameta estranho, instala-se no útero. Inicialmente violentada, é a fêmea alienada em seguida; ela carrega o feto em seu ventre até um estado de maturação variável segundo as espécies: a cobaia nasce quase adulta, o cão muito perto do estado fetal. Habitada por um outro que se nutre de sua substância, a fêmea é, durante todo o tempo da gestação, concomitantemente ela mesma e outra; após o parto, ela alimenta o recém-nascido com o leite de suas tetas. A tal ponto que não se sabe quando ele. pode considerar-se autônomo: no momento da fecundação, do nascimento ou da desmama? Ê digno de nota o fato de que, quanto mais a fêmea se afigura um indivíduo separado, mais imperiosamente a continuidade viva afirma-se para além da separação. O peixe, o pássaro que expulsam o óvulo virgem ou o ovo fecundado são menos presos à progenitura do que a fêmea do mamífero. Esta encontra uma autonomia após o nascimento dos filhos: estabelece-se então entre ela e eles uma distância e é a partir de uma separação que ela se devota a eles; ocupa-se deles com iniciativa e invenção, luta para defendê-los contra os outros animais e torna-se até agressiva. Mas normalmente ela não procura afirmar sua individualidade; não se opõe aos machos nem às outras fêmeas; quase não tem espírito combativo(1), A despeito das asserções de Darwin, hoje refutadas, ela aceita sem maior escolha o macho que se apresenta. Não que ela não possua qualidades individuais; ao contrário, nos períodos em que escapa à servidão da maternidade, pode, por vezes, igualar-se ao macho: a égua é tão rápida quanto o garanhão, a cadela de caça tem tanto faro quanto o cão, as macacas demonstram, quando submetidas a testes, tanta inteligência quanto os macacos. Só que essa individualidade não é reivindicada: a fêmea abdica em prol da espécie que reclama essa abdicação.

O destino do macho é muito diferente; acabamos de ver que na sua própria superação ele se separa e se confirma em si mesmo. É um traço constante, do inseto aos animais superiores. Mesmo os peixes



(1) Certas galinhas disputam entre si os melhores lugares do galinheiro e estabelecem uma hierarquia a bicadas. Na ausência dos machos há também vacas que assumem pela força, o comando do rebanho.

e os cetáceos que vivem em cardumes, molemente confundidos no seio da coletividade, dela se afastam no momento do cio. Isolam-se e tornam-se agressivos em relação aos outros machos. Imediata na fêmea, a sexualidade é mediatizada no macho; há uma distância que êle preenche ativamente entre o desejo e sua satisfação; mexe-se, procura, apalpa a fêmea, acaricia-a, imobiliza-a antes de penetrá-la; os órgãos que servem às funções de relação, locomoção e preensão são, muitas vezes, mais desenvolvidos nele. E digno de nota o fato de que o impulso vivo que produz nele a multiplicação dos espermatozoides traduza-se também pelo aparecimento de uma plumagem brilhante, de escamas, cornos, juba, cantos e exuberâncias. Não se imagina mais que o "traje de núpcias" que veste no momento do cio, nem que suas atitudes sedutoras tenham uma finalidade seletiva; exprimem a força da vida que com um luxo gratuito e magnífico então nele desabrocha. Essa generosidade vital, a atividade ostentada em vista do coito, e no próprio coito, a afirmação dominadora de seu poder sobre a fêmea, tudo contribui para afirmar o indivíduo como tal no momento de sua superação viva. É nisso que Hegel tem razão em ver no macho o elemento subjetivo, ao passo que a fêmea permanece envolvida na espécie. Subjetividade e separação significam, desde logo, conflito. A agressividade é uma das características do macho no cio; ela não se explica pela competição, porquanto o número de machos é mais ou menos o mesmo que o de fêmeas; é antes a competição que se explica por essa vontade combativa. Dir-se-ia que, antes de procriar, o macho reivindicando, como propriamente seu, o ato que perpetua a espécie, confirma na sua luta contra seus congêneres a verdade de sua individualidade. A espécie habita a fêmea e consome boa parte de sua vida individual; o macho ao contrário integra as forças vivas específicas em sua vida individual. Sem duvida, ele sujeita-se também a leis que o superam, há nele espermatogênese, e um cio periódico, mas esses processos interessam, muito menos do que o ciclo do estro, o conjunto do organismo; a produção dos espermatozoides não constitui uma fadiga, como não a constitui a orogênese em si: o desenvolvimento do ovo em animal é que é para a fêmea, um trabalho absorvente. O coito é uma operação rápida e que não diminui a vitalidade do macho. Ele não manifesta quase nenhum instinto paternal. Amiúde abandona a fêmea depois do coito. Quando permanece ao lado dela como chefe de um grupo familiar (família monogâmica, harém ou rebanho) é em relação ao conjunto da comunidade que desempenha um papel de protetor e de alimentador; é raro que se interesse diretamente pelos filhos.





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O SEGUND O SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR

Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.

Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.

Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.


4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES
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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.

No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.


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Leia também:

O Segundo Sexo - 8. Fatos e Mitos: na grande maioria das espécies


O Segundo Sexo - 1 Fatos e Mitos: que é uma mulher?


quinta-feira, 18 de maio de 2017

O Brasil nação - v1: § 36 – A glória da insinceridade e da mentira - Manoel Bomfim

Manoel Bomfim



O Brasil nação volume 1





PRIMEIRA PARTE
SEQUÊNCIAS HISTÓRICAS



capítulo 4
o definitivo império do brasil







§ 36 – A glória da insinceridade e da mentira




Com os instrumentos que teve em mão, não foi difícil a Pedro II sistematizar a política em que se glorificou o seu reinado – frouxo verniz furta-cor, sobre mistificações e pulhices. Os homens para essa obra foram os marqueses herdados do primeiro Império, todos os futuros marqueses e mais trânsfugas de 1831, e o que ainda vem, para a vasta procissão de conselheiros. Melo Morais, que viveu com eles em três gerações, e bem lhes conhecia a qualidade da obra, testemunha: “... no Brasil não há partidos políticos, por não terem princípios definidos e claros, e sim interesses individuais ou egoísticos...; nem existe o sistema representativo, porque o poder executivo o tem abastardado, ou absorvido. A esse abastardamento chamam os velhacos de política...”

Guardemos a definição, para juntar àquela de Tavares Bastos, completando-a com estes conceitos, do mesmo Melo Morais: “... a falsa política, dirigida pelo governo de mentira, que funda todo o seu prestígio no engano dos homens, anarquizando o país com a corrupção e o esbanjamento da fortuna pública”.149  No forte da sua oposição a Paranhos, Alencar, sem nenhum intuito de desaire, e sem que o contradissessem, afirmou, do destacado conservador-liberal: “... serve ao país com os seus grandes gestos e com o ceticismo a que tem devido a sua grande carreira política; porque neste país as convicções profundas são barras de chumbo que levam ao fundo.” Antes, já Landulfo Medrado, havia notado: “Adultera-se tudo, as revoluções, que são origem incontestável de todo o nosso direito político (1822 e 31), têm um medíocre interesse para tais espíritos...”

A vida do segundo Império se fez nas vicissitudes dos dois célebres partidos políticos, mas, em verdade, tudo não passava


149 Melo Morais, op. cit., págs. 20 e 49.


de embuste, pois que os dois eram da mesma vasa, num pântano comunicante, com a diferença única – de borbulharem em nomes diferentes. Por isso, mais de uma vez, misturaram-se ostensivamente, e, mais de um nome se transfundiu de um para o outro: Paranhos, que começa liberal, e vem a ser chefe conservador, para fazer reformas liberais; Franco de Sá, que é conservador, passa a chefe do partido liberal; Zacharias, que se pronuncia legítimo conservador, e vem a ser, também, chefe dos liberais. A fermentada mistura data dos dias em que o radical Bernardo de Vasconcelos muda a arma de ombro, para criar o partido conservador, e confirma-se na hora sinistra em que Vilela Barbosa encosta-se aos liberais – para ser governo da maioridade. O povo, que não via relação efetiva entre a denominação oficial dos partidos e o resultado da respectiva ação, deu-lhes nomes ao sabor de incidentes mínimos: Saquaremas, Luzias, Cabahus... eram os bandos de Zacharias, ou de Itaboraí... Quando alguns, sinceros, ou despeitados, atingiam a verdade, tinham de manifestar-se contra os dois partidos. Todos esses transcritos são citados, justamente, porque deixaram julgamentos que, sendo para todos, são imparciais. Tudo provinha de que os programas diziam uma coisa, e a realidade lhes dava outra coisa. O despeito levou José de Alencar a dar ao imperador a exclusiva responsabilidade da degradação política, mas, em si mesma, essa degradação existe, é uma realidade: “A segunda era da monarquia brasileira é dominada por um sistema perseverante: o descrédito dos partidos, a solapa das convicções, a eliminação da luta, são dogmas daquela política eversiva. Em princípio, manifestou-se ela com o nome de camarilha (Aureliano)... que se transportava de um a outro partido segundo as suas conveniências... notáveis estadistas tiveram que retirar-se da lide, evitando o estigma de intolerantes. Afinal, vem a política do rateio. Considerando o país falido de opiniões e princípios, organizaram uma administração... para distribuir pingues empregos, posições oficiais, títulos e honras...
150 

Sousa Carvalho, tantas vezes transcrito, por tão nítido em conceito, foi político liberal de grande atividade – deputado presidente de província importante. Pois bem, é o que constata: “Os denominados liberais, nestes últimos 26 anos, têm governado e senhoreado o país, mas a política liberal nunca governou, nunca esteve no poder... Lastimo o papel infeliz que tem cabido ao partido liberal no nosso país...” A explicação corrente, dessa anomalia, era que o imperador não queria que os liberais se afirmassem à nação como efetivos realizadores das liberdades constantes do respectivo programa... Talvez não fosse bem assim; talvez – que não havia neles convicções. E aí está o caso da abolição da escravidão. Ao longo de todo o segundo Império, afora – Dantas, Nabuco, Rui Barbosa, e alguns menores ou hesitantes, todos os chefes liberais foram tão escravocratas como os conservadores. Contemple-se o desenvolver dos fatos, daquele momento em que a questão veio a ter a primeira solução. Zacarias, o grande chefe, porque o imperador o mandou, em vistas da sugestão de franceses, inseriu em duas das falas do trono a insinuação – de tratar-se do caso; mas, foi despedido, e tão despeitado ficou que teve arremedos de dignidade em face do trono; surge a questão no parlamento, com a responsabilidade do conservador Paranhos; os conservadores da junta do coice vêm para a oposição; liberais, como Franco de Sá, apoiam o projeto, ao passo que, no Senado, Zacarias, o liberal que primeiro incluíra o assunto em programa de governo, combate intransigentemente a medida, que, apesar de tudo, era liberal. Na sucessão dos tempos Sinimbu, Ouro Preto, Silveira Martins, Martinho de Campos... reproduzem a política de Zacarias. E como tudo é confusão no embuste, veremos, ainda, Cotegipe, o genuíno


150 Op. cit., 157.


freio conservador, terminar o projeto Saraiva, meia satisfação das ideias liberais de Dantas, e veremos, finalmente, João Alfredo, o que chamou de pirataria a ação humana dos abolicionistas, completado pela fina flor da escravocracia, fazer-se autor da lei de libertação absoluta.

Apreciada na conduta individual, não é menos sensível a miséria. Nem será preciso ir às matrizes – Ledo, Araújo Lima,151  Paranaguá, Hermeto... Cada fortuna política é um caso de condescendência inconfessável, de servilismo, de abjuração. Um Alves Branco, radical que, em 1831, com Ferreira França, apresentou projeto de liberdade de consciência, de federação, que foi contra o tráfico, com a honra de ter sido liberal ao lado de Feijó, que o amparou enquanto teve prestígio: quase se envergonha dessa glória; não aceita o lugar de ministro – para receber a regência em 1837, e explicava que, antes, só o fora por gratidão; veio a ser, finalmente, o Caravelas conservador – dos conservadores maleáveis de Paranhos. Torres Homem, o temível radical do libelo do povo, inexorável contra toda a bragantada; o indefesso advogado dos liberais revoltados em 1842 e em 48: também acaba conservador, na casca de Inhomirim, o que levou o conservador, D. Manuel Mascarenhas, a lançar ao trono a apóstrofe de Seneca – “Morreram os costumes, o direito, a honra, a piedade, a fé, e aquilo que nunca volta, quando perdido – o pudor.” Em compensação, Mascarenhas veio a ser chefe liberal, o que, se não prova contra o seu caráter, prova contra a consciência e a sinceridade dos partidos. Nestas condições, não há que estranhar um biografista, muito a sério, a modo de elogio, vem dizer de Ângelo Maria do Amaral: “... desenganado, ou convencido da confusão dos partidos, votou, ora, por um, ora, por outro...” Note-se, tão confessadas mutações não chegaram a desacreditar o deputado Amaral.


151 Araújo Lima, que chocou o parlamentarismo. O cons. Franco de Sá renegou-o, no entanto. (Tito 75-77).


Apesar de ser aspecto negativo, a universal insinceridade impõe-se à critica dos que procuram as causas da miséria moral. Como asfixiado, Tavares Bastos exclamava: “De franqueza carece o Brasil. Temos em abundância a mentira oficial, a mentira ministerial, a mentira parlamentar, a mentira pública, a mentira particular. Verdade nua e crua: eis a primeira necessidade do país”.152  O longo episódio da questão religiosa, passado ainda nos dias daquela geração, patenteia bem a generalizada pulhice, mais sensível aí porque o caso inclui um motivo íntimo de absoluta sinceridade – a crença religiosa: politiqueiros que teimam em ser, ao mesmo tempo, e publicamente, pedreiros-livres e católicos praticantes; o governo de uma nação constitucionalmente católica, e que castiga bispos por aplicarem aos maçons-praticantes o direito canônico; um chefe de governo, grão-mestre da Maçonaria, e que, na contenda, põe a sua função de governo ao serviço do seu grão-mestrado; um grão-mestre que pleiteia da Santa Sé ter, no seu lar, uma capela privada. Para completar a farsa, há a nunciatura, que está com o grão-mestre, quando Roma parece estar com os prelados. A pena suavemente inflexível de D. Macedo Costa mostra-nos o núncio apostólico a levar, pressuroso, ao grão-mestre, a capela pedida, enquanto deixava sem conforto moral os bispos presos e condenados a trabalhos forçados... de mentira, como tudo que, no regime, devia ser sério. O Supremo Tribunal, que condenara os prelados, fizera justiça nas mesmas condições da que condenara Ratcliffe e Loureiro (§ 2). D. Macedo Costa, como quem não teme contradita, deixa os vulnerantes conceitos: “Que clarão projeta tudo isto sobre o estado moral deste país! Desgraçadamente, a verdade é esta:... condescendências miseráveis, frouxas transações, pactos ignóbeis...”153


152 Cartas, 321.


153 Cotejado o livro de D. Macedo Costa com o opúsculo do Barão de Penedo, verifica-se que o governo imperial mentiu aqui, e mentiu em Roma.





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"Morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."

Cecília Costa Junqueira



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O Brasil nação: vol. I / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 332 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 35).


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http://www.fundar.org.br/bbb/index.php/project/o-brasil-nacao-vol-i-manoel-bonfim/


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O Brasil nação - v1: Prefácio - Manoel Bomfim