sábado, 26 de maio de 2018

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XIV

Cruz e Sousa

Obra Completa
Volume 1
POESIA



O Livro Derradeiro
Primeiros Escritos

Cambiantes
Outros Sonetos Campesinas
Dispersas
Julieta dos Santos




OUTROS SONETOS 








A ERMIDA
          
  
Lá onde a calma e a placidez existe,
Sobre as colinas que o vergel encobre,
Aquela ermida como está tão pobre,
Aquela ermida como está tão triste.

A minha musa, sem falar, assiste,
Do meio-dia ante o aspecto nobre,
O vago, estranho e murmurante dobre
Daquela ermida que aos trovões resiste


E às gargalhadas funéreas, sombrias
Dos crus invernos e das ventanias,
Do temporal desolador e forte.


Daquela triste esbranquiçada ermida,
Que me recorda, me parece a vida
Jogada às mágoas e ilusões da sorte.




ÁGUA-FORTE


Do firmamento azul e curvilíneo
Cai, fecundando as trêmulas raízes
Dos laranjais, dos pâmpanos, das lises,
A luz do sol procriador, sanguíneo.


Pelo caminho agreste e retilíneo,
Da tarde aos brandos, triunfais matizes,
A criançada, a chusma dos felizes,
Esse de auroras perfumado escrínio,


Volta da escola, rindo muito, aos saltos,
Trepando, em bulha, aos arvoredos altos
Enquanto o sol desce os outeiros longos...


Vai dentre alados madrigais risonhos,
Do abecedário juvenil dos sonhos,
A soletrar os principais ditongos.



ALMA QUE CHORA
                  A João Saldanha

Em vão do Cristo os olhos dulçurosos
Onde há o sol do bem e da verdade,
Cheios da luz eterna de saudade,
Como dois mansos corações piedosos,


Em vão do Cristo os olhos lacrimosos
E aquela doce e pura suavidade
Do seu semblante, casto, de bondade,
Cor de luar dos sonhos venturosos,


Servem de exemplo à dor escruciante
Que te apunhala e fere a cada instante,
A punhaladas ríspidas, austeras!


Viste partir a tua irmã, ai, viste,
Como num céu enevoado e triste
O bando azul das fúlgidas quimeras...




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De fato, a inteligência, criatividade e ousadia de Cruz e Sousa eram tão vigorosos que, mesmo vítima do preconceito racial e da sempiterna dificuldade em aceitar o novo, ainda assim o desterrense, filho de escravos alforriados, João da Cruz e Sousa, “Cisne Negro” para uns, “Dante Negro” para outros, soube superar todos os obstáculos que o destino lhe reservou, tornando-se o maior poeta simbolista brasileiro, um dos três grandes do mundo, no mesmo pódio onde figuram Stephan Mallarmé e Stefan George. A sociedade recém-liberta da escravidão não conseguia assimilar um negro erudito, multilíngue e, se não bastasse, com manias de dândi. Nem mesmo a chamada intelligentzia estava preparada para sua modernidade e desapego aos cânones da época. Sua postura independente e corajosa era vista como orgulhosa e arrogante. Por ser negro e por ser poeta foi um maldito entre malditos, um Baudelaire ao quadrado. Depois de morrer como indigente, num lugarejo chamado Estação do Sítio, em Barbacena (para onde fora, às pressas, tentar curar-se de tuberculose), seu
corpo foi levado para o Rio de Janeiro graças à intervenção do abolicionista José do Patrocínio, que cuidou para que tivesse um enterro cristão, no cemitério São João Batista.



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