segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XVII

Cruz e Sousa

Obra Completa
Volume 1
POESIA



O Livro Derradeiro
Primeiros Escritos

Cambiantes
Outros Sonetos Campesinas
Dispersas
Julieta dos Santos




OUTROS SONETOS 








ÊXTASE DE MÁRMORE 
                          À grande atriz Apolônia


O mármore profundo e cinzelado 
De uma estátua viril, deliciosa; 
Essa pedra que geme, anseia e goza 
Num misticismo altíssimo e calado;

Essa pedra imortal – campo rasgado 
À comoção mais íntima e nervosa 
Da alma do artista, de um frescor de rosa, 
Feita do azul de um céu muito azulado;

Se te visse o clarão que pelos ombros 
Teus rola, cai, nos múltiplos assombros 
Da Arte sonora, plena de harmonia;

O mármore feliz que é muito artista 
Também – como tu és – à tua vista 
De humildade e ciúme, coraria!





INVERNO


Amanheceu – no topo da colina 
Um céu de madrepérola se arqueia 
Limpo, lavado, reluzindo – ondeia 
O perfume da selva esmeraldina.

Uma luz virginal e cristalina, 
Como de um rio a transbordante cheia, 
Alaga as terras culturais e arreia 
De pingos d’ouro os verdes da campina.

Um sol pagão, de um louro gema d’ovo, 
Já tão antigo e quase sempre novo, 
Surge na frígida estação do inverno.

– Chilreiam muito em árvores frondosas 
Pássaros – fulge o orvalho pelas rosas 
Como o vigor no espírito moderno.





FALANDO AO CÉU


Falas ao Céu, Amor! Em vão tu falas! 
Mas o céu, esse é velho, esse é velhinho, 
Todo ele é branco, faz lembrar o linho 
Dos leitos alvos onde tu te embalas.

A alma do céu é como velhas salas 
Sem ar, sem luz, como lares sem vinho, 
Sem água e pão, sem fogo e sem carinho, 
Sem as mais toscas, as mais simples galas.

Sempre surdo, hoje o céu é mudo, é cego... 
Jamais o coração ao céu entrego, 
Eu que tão cego vou por entre abrolhos.

Mas se o queres tornar jovem e louro 
Dá-lhe o bordão do teu amor um pouco, 
Fala e vista, com a vida dos teus olhos...




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De fato, a inteligência, criatividade e ousadia de Cruz e Sousa eram tão vigorosos que, mesmo vítima do preconceito racial e da sempiterna dificuldade em aceitar o novo, ainda assim o desterrense, filho de escravos alforriados, João da Cruz e Sousa, “Cisne Negro” para uns, “Dante Negro” para outros, soube superar todos os obstáculos que o destino lhe reservou, tornando-se o maior poeta simbolista brasileiro, um dos três grandes do mundo, no mesmo pódio onde figuram Stephan Mallarmé e Stefan George. A sociedade recém-liberta da escravidão não conseguia assimilar um negro erudito, multilíngue e, se não bastasse, com manias de dândi. Nem mesmo a chamada intelligentzia estava preparada para sua modernidade e desapego aos cânones da época. Sua postura independente e corajosa era vista como orgulhosa e arrogante. Por ser negro e por ser poeta foi um maldito entre malditos, um Baudelaire ao quadrado. Depois de morrer como indigente, num lugarejo chamado Estação do Sítio, em Barbacena (para onde fora, às pressas, tentar curar-se de tuberculose), seu
corpo foi levado para o Rio de Janeiro graças à intervenção do abolicionista José do Patrocínio, que cuidou para que tivesse um enterro cristão, no cemitério São João Batista.



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