sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XVI

Cruz e Sousa

Obra Completa
Volume 1
POESIA



O Livro Derradeiro
Primeiros Escritos

Cambiantes
Outros Sonetos Campesinas
Dispersas
Julieta dos Santos




OUTROS SONETOS 








NINHO ABANDONADO
                  À distinta família Simas, pela morte de seu chefe, o Ilmo. Sr. 
                  João da Silva Simas.


O vosso lar harmônico e tranquilo 
Era um ninho de luz e de esperanças 
Que como abelhas iriadas, mansas, 
Nos vossos corações tinham asilo.

Havia lá por dentro tanta crença 
E tanto amor puríssimo, cantando, 
Que parecia um largo sol faiscando 
Por majestosa catedral imensa.

Agora o ninho está desamparado! 
Sumiu-se dele o pássaro adorado, 
O mais ideal dos pássaros do ninho.

Não se ouve mais a música sonora 
Da sua voz – dentro do ninho, agora, 
Paira a saudade como um bom carinho.





CRENÇA


Filha do céu, a pura crença é isto 
Que eu vejo em ti, na vastidão das cousas, 
Nessa mudez castíssima das lousas, 
No belo rosto sonhador do Cristo.

A crença é tudo quanto tenho visto 
Nos olhos teus, quando a cabeça pousas 
Sobre o meu colo e que dizer não ousas 
Todo esse amor que eu venço e que conquisto.

A crença é ter os peregrinos olhos 
Abertos sempre aos ríspidos escolhos; 
Tê-los à frente de qualquer farol

E conservá-los simplesmente acesos 
Como dois fachos – engastados, presos 
Nas radiações prismáticas do sol!





CRISTO E A ADÚLTERA 
                   (Grupo de Bernardelli)


Sente-se a extrema comoção do artista 
No grupo ideal de plácida candura, 
Nesse esplendor tão fino da escultura 
Para onde a luz de todo o olhar enrista.

Que campo, ali, de rútila conquista 
Deve rasgar, do mármore na alvura, 
O estatuário – que amplidão segura 
Tem – de alma e braço, de razão e vista!

Vê-se a mulher que implora, ajoelhada, 
A mais serena compaixão sagrada 
De um Cristo feito a largos tons gloriosos.

De um Nazareno compassivo e terno, 
D’olhos que lembram, cheios de falerno, 
Dois inefáveis corações piedosos!






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De fato, a inteligência, criatividade e ousadia de Cruz e Sousa eram tão vigorosos que, mesmo vítima do preconceito racial e da sempiterna dificuldade em aceitar o novo, ainda assim o desterrense, filho de escravos alforriados, João da Cruz e Sousa, “Cisne Negro” para uns, “Dante Negro” para outros, soube superar todos os obstáculos que o destino lhe reservou, tornando-se o maior poeta simbolista brasileiro, um dos três grandes do mundo, no mesmo pódio onde figuram Stephan Mallarmé e Stefan George. A sociedade recém-liberta da escravidão não conseguia assimilar um negro erudito, multilíngue e, se não bastasse, com manias de dândi. Nem mesmo a chamada intelligentzia estava preparada para sua modernidade e desapego aos cânones da época. Sua postura independente e corajosa era vista como orgulhosa e arrogante. Por ser negro e por ser poeta foi um maldito entre malditos, um Baudelaire ao quadrado. Depois de morrer como indigente, num lugarejo chamado Estação do Sítio, em Barbacena (para onde fora, às pressas, tentar curar-se de tuberculose), seu
corpo foi levado para o Rio de Janeiro graças à intervenção do abolicionista José do Patrocínio, que cuidou para que tivesse um enterro cristão, no cemitério São João Batista.



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