terça-feira, 14 de agosto de 2018

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine VII — Gravatte, o salteador


Victor Hugo - Os Miseráveis


Primeira Parte - Fantine

Livro Primeiro - Um Justo




VII — Gravatte, o salteador 
 

Vem a propósito aqui um facto que não devemos omitir, por ser um dos que melhor dão a conhecer o carácter do virtuoso bispo de Digne. 

Depois de destroçada a quadrilha de Gaspar Bés, terrível bandido que infestara as gargantas de Olialles, refugiara-se na montanha com mais alguns salteadores que conseguiram escapar à justiça, um dos seus lugares-tenentes, chamado Gravae. Conservando-se algum tempo oculto no condado de Nice, Gravae entrou no Piemonte e, quando menos era esperado, reapareceu em França, do lado de Bercelonee, sendo visto primeiro em Jausiers e depois em Tuiles. Oculto nas cavernas de Joug-de-l’Aigle, fazia frequentes incursões nos lugares e aldeias dos arredores, descendo pelos barrancos de Ubaye e do Ubayette. 

Uma noite, chegou mesmo a entrar em Embrun, onde penetrou na catedral, roubando todos os objectos que se encontravam na sacrisa. Os seus repedos assaltos traziam a terra em connuo e terrível sobressalto. Destacou-se um corpo de gendarmeria para o perseguir, mas foi trabalho baldado. Escapava-se sempre e até algumas vezes resisa às forças mandadas em sua perseguição. 

No meio deste terror, chegou o bispo, que andava a fazer as suas visitas pelo distrito de Chastelar. O maire foi ao seu encontro e pretendeu convencê-lo de quanto seria prudente voltar para trás, pois Gravae ocupava a montanha até para além do Arche. Tornava-se perigoso atravessá-la, mesmo com uma escolta, porque seria expor inutilmente a vida de três ou quatro pobres soldados. 

— Por isso mesmo tenciono ir sem escolta — disse o bispo. 

— Pois Monsenhor intenta semelhante coisa?! — exclamou o maire

— De tal modo que recuso a companhia dos soldados e daqui a uma hora pôr-me-ei a caminho. 

— Pois teima em partir? 

— Porque não? 

— Sozinho? 

— Sim. 

— Isso é uma temeridade, senhor bispo. 

— Há três anos — replicou o bispo — que não visito o pequeno e humilde lugarejo da montanha, cujos habitantes e bons pastores, são todos meus amigos. A sua riqueza é uma cabra de cada rebanho de trinta que guardam; a sua indústria, é fazer bonitos cordões de lã de diversas cores e o seu divertimento, tocar árias montanhesas em flautins de seis buracos. Precisam de ouvir a palavra de Deus de tempos a tempos. Que haviam de dizer de um bispo medroso? Que diriam se eu lá não fosse? 

— Mas, Monsenhor, e os salteadores? 

— É verdade, tem razão. Se os encontrasse... Olhe que também devem ter necessidade de ouvir falar em Deus! 

— É uma grande quadrilha! Um rebanho de lobos! 

— Pois talvez seja desse rebanho, senhor maire, que Jesus queira que eu seja pastor. Quem sabe os desígnios da Providência? 

— Podem roubá-lo, senhor bispo. 

— Não tenho nada. 

— Podem assassiná-lo! 

— Ora! Com que fim fariam eles mal a um pobre sacerdote que vai a passar, ocupado unicamente em rezar as suas orações? 

— Valha-me Deus! Que sucederá se os encontrar? 

— Pedir-lhes-ei esmola para os meus pobres. 

— Em nome do céu, Monsenhor, não exponha a sua vida! 

— Pois é esse o seu temor, senhor maire! — atalhou o bispo. — Eu não ando no mundo para guardar a minha vida, mas sim para guardar as almas! 

Ninguém o pôde fazer mudar de resolução. Apesar de todas as súplicas, partiu acompanhado apenas por um rapaz que se prestou a servir-lhe de guia. 

A sua obstinada resistência deu muito que falar, deixando os ânimos sobressaltados em extremo. Desta vez não quis que a irmã nem Magloire o acompanhassem. 

Atravessou a montanha montado numa mula e chegou são e salvo até aos pastores seus amigos sem ter tido o menor encontro desagradável. Demorou-se quinze dias no meio deles, pregando, ensinando, moralizando, administrando os sacramentos. 

Quando estava prestes a retirar-se, resolveu cantar pontificalmente um Te-Deum e comunicou a sua intenção ao cura. Mas surgiram graves dificuldades, pois não havia as insígnias episcopais que era mister. A modesta igreja paroquial apenas podia pôr à disposição do bispo alguns deteriorados paramentos de damasco, guarnecidos de galões falsos. 

— Isso não será obstáculo, senhor cura — disse o bispo. — Anuncie na missa o nosso Te-Deum, que o mais sempre se há-de arranjar. 

Procuraram-se paramentos em todas as igrejas dos arredores e reunidas as magnificências das humildes paróquias, mal chegavam para revestir convenientemente um chantre da catedral. 

Achavam-se as coisas nestes apuros, quando à porta da residência paroquial chegaram dois cavaleiros desconhecidos que, depois de fazerem entrega de uma grande caixa de que eram portadores, tornaram a parr imediatamente. Aberta a caixa, viu-se que connha uma dalmáca carregada de oiro, uma mitra guarnecida de diamantes, uma cruz arquiepiscopal, um báculo magnífico, todos os paramentos ponficais roubados um mês antes da sacrisa de Nossa Senhora de Embrun. No fundo da caixa
estava um papel em que se liam estas palavras: Oferta de Gravae a Monsenhor Bemvindo

— Eu bem dizia que tudo se havia de arranjar! — exclamou o bispo. Em seguida acrescentou, sorrindo: — A quem se contentava com a sobrepeliz de um simples cura, envia Deus um manto de arcebispo! 

— Deus... ou o diabo! — murmurou o pároco, abanando a cabeça com um sorriso de incredulidade. 

O bispo fitou atentamente o pároco e replicou em tom austero: 

— Foi Deus. 

Quando voltou a Chastelar, de todos os lados, vinha gente à beira da estrada para o ver passar. Chegado à residência paroquial de Chastelar, encontrou a irmã e Magloire que o esperavam ali e, apenas as viu, exclamou: 

— Então, eu não tinha razão? Vai um pobre sacerdote visitar os infelizes montanheses com as mãos vazias e volta de lá com elas cheias! Quando fui, levava apenas a minha confiança em Deus, e agora volto trazendo o tesouro de uma catedral! 

À noite, antes de se deitar, disse ainda: 

— Não tenhamos receio de ladrões e de assassinos. São muito pequenos os perigos exteriores. Devemos ter receio é de nós próprios! Os preconceitos e os vícios é que são os verdadeiros ladrões e os verdadeiros assassinos! Os maiores perigos são os que se acham dentro de nós mesmos. Que importa que a nossa cabeça ou a nossa bolsa esteja ameaçada? Não devemos temer senão o que nos ameaça a alma! — Depois, voltando-se para a irmã, acrescentou: — Minha irmã, o sacerdote não deve precaver-se contra o próximo. Aquilo que ele pratica é permitido por Deus. Limitemo-nos a implorar a bondade divina, quando nos julguemos ameaçados por qualquer perigo. Imploremo-la, não por nós, mas para que os nossos irmãos não caiam em tentação por nossa causa. 

Todavia, os acontecimentos fora do comum, eram raros na sua existência. O modo de viver do bispo era quase sempre idêntico, passava a vida a fazer sempre as mesmas coisas nas mesmas ocasiões, de modo que um mês do seu ano assemelhava-se a uma hora do seu dia. 

Quanto ao destino que levou o tesouro da catedral de Embrun, embaraçados nos veríamos se alguém nos perguntasse o que foi feito dele. Eram, na verdade, coisas muito ricas e tentadoras para não serem furtadas em proveito dos desvalidos. E demais, furtadas já elas tinham sido. Metade da aventura estava passada; o que faltava era mudar apenas a direção do furto, fazendo-lhe dar mais uns passos para o lado dos pobres. Não afirmaremos, pois, coisa alguma a tal respeito. O que sabemos ao certo é que entre os papéis do bispo apareceu uma nota de certo modo obscura, que alude talvez a este assunto, e concebida nos seguintes termos: O ponto consiste em saber se isto deve voltar para a catedral, ou ir para o hospital.


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Enquanto existir nas leis e nos costumes uma organização social que cria infernos artificiais no seio da civilização, juntando ao destino, divino por natureza, um fatalismo que provém dos homens; enquanto não forem resolvidos os três problemas fundamentais a degradação do homem pela pobreza, o aviltamento da mulher pela fome, a atrofia da criança pelas trevas; enquanto, em certas classes, continuar a asfixia social ou, por outras palavras e sob um ponto de vista mais claro, enquanto houver no mundo ignorância e miséria, não serão de todo inúteis os livros desta natureza. 

Hauteville House, 1862




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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.


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