terça-feira, 26 de junho de 2018

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine VI — Quem guardava a casa do prelado

Victor Hugo - Os Miseráveis


Primeira Parte - Fantine

Livro Primeiro - Um Justo




VI — Quem guardava a casa do prelado  

A casa que o bispo habitava compunha-se de rés-do-chão e primeiro andar; o rés-do-chão era dividido em três salas, o andar superior em três quartos, por cima dos quais ficava um sótão. Nas traseiras da casa havia um pequeno jardim. As duas mulheres ocupavam o primeiro andar, o bispo o rés-do-chão. A primeira sala, cujas janelas deitavam para a rua, servia-lhe de sala de jantar, a segunda de quarto de dormir e a terceira de oratório. Não se podia sair deste sem passar pelo quarto de dormir, nem do quarto de dormir, sem passar pela sala de jantar. No fundo da sala que servia de oratório havia uma alcova fechada, com uma cama de reserva para os hóspedes, que o bispo oferecia aos párocos de aldeia que os seus próprios negócios ou as necessidades das suas paróquias obrigavam a vir a Digne.

A farmácia do hospital, pequeno compartimento ao fundo do jardim, servia de cozinha e dispensa.

Havia, além disso, também no jardim, um estábulo, que em tempos fora a cozinha do hospício e onde agora o bispo guardava duas vacas. Por pouco que fosse o leite que elas dessem, mesmo assim, todos os dias pela manhã, o prelado mandava entregar metade aos doentes do hospital, ao que ele chamava «pagar o seu dízimo».

Como o seu quarto, demasiadamente grande, era muito frio de Inverno e a lenha em Digne fica por elevado preço, lembrou-se de mandar fazer no estábulo das vacas um compartimento de madeira, onde passava as noites mais frias. Chamava-lhe ele o seu salão de Inverno.

Os móveis do salão de Inverno consistiam apenas, como os da sala de jantar, numa mesa quadrada de pinho e quatro cadeiras de palhinha. Na sala de jantar apenas havia mais um velho bufete, pintado de vermelho. De um bufete igual, convenientemente adornado de toalhas e rendas de pouco custo, fizera o bispo o altar que decorava o oratório.

Por várias vezes, as confessadas ricas do bispo e outras devotas da cidade se haviam quotizado entre si para, à sua custa, lhe mandarem fazer no oratório um altar mais asseado, mas, de todas as vezes, o prelado dera o dinheiro aos pobres.

— O melhor de todos os altares é — dizia ele — é a alma de um infeliz agradecendo a Deus o alívio do seu infortúnio! No oratório tinha dois genuflexórios de palhinha e no quarto de dormir uma cadeira de braços, também de palhinha. Quando acontecia sete ou oito pessoas virem-no visitar ao mesmo tempo, o prefeito, o general, o estado-maior do regimento que fazia a guarda da cidade, ou os alunos do seminário, era preciso ir ao estábulo buscar as cadeiras do salão de Inverno, os genuflexórios ao oratório e a cadeira de braços ao quarto de dormir, conseguindo-se, deste modo, reunir até onze assentos, se tantas eram as visitas. À medida que iam chegando, ia-se desguarnecendo de móveis cada sala.

Sucedia algumas vezes serem doze as visitas; então o bispo dissimulava o embaraço da situação, conservando-se em pé junto do fogão, se era de Inverno, ou passeando no jardim, se era de Verão.

Havia ainda na alcova uma cadeira de palhinha, mas como, além de ter o assento arrombado, só tinha três pernas, não podia servir senão encostando-a à parede. A senhora Baptistina tinha também no seu quarto uma grande poltrona com dourados, que já mal se conheciam, mas como a escada era demasiado estreita, não pudera ser conduzida para o primeiro andar, senão içando-a pela janela, resultando daí que não se podia contar com o seu auxílio para as ocasiões de apuro.

Baptistina tivera sempre a ambição de poder comprar uma mobília completa de acajú, para ornamentar devidamente aquela modesta casa Mas para tal ser-lhe-iam necessários, pelo menos, quinhentos francos, e vendo que durante cinco anos não conseguira economizar mais de cinquenta francos, renunciara tristemente ao seu projeto.

Nada mais simples de imaginar do que o quarto de dormir do bispo. Uma janela rasgada, que deitava para o jardim; defronte, uma cama de ferro de hospital, com cornado de sarja verde; junto da cama, encobertos por uma corna, vários objetos de toucador, denunciando ainda os hábitos elegantes do homem de boa sociedade; duas portas, uma junto do fogão, que dava para o oratório, a outra próxima da estante, dando para a casa de jantar. A estante, grande armário envidraçado cheio de livros; o fogão, guarnecido de madeira pintada a fingir mármore, quase sempre apagado, com trempe de ferro ornada de dois vasos cheios de plantas e embutidos, primitivamente prateados a fosco, o que constituía certo luxo episcopal; por cima do fogão via-se um crucifixo de cobre desprateado, assente sobre um pedaço de veludo preto já muito velho, num caixilho que fora dourado; junto da janela, uma espaçosa mesa com um tinteiro ao centro, pejada de volumosos livros e papéis em confusão. Ao pé da mesa a cadeira de palhinha e ao pé da cama um genuflexório, pertencente ao oratório.

De cada lado da cama, viam-se dois retratos em caixilhos ovais, pendurados na parede. Algumas inscrições gravadas em letras de oiro no fundo escuro de cada tela. Por baixo das figuras, indicavam que os retratos representavam, um o abade de Chaliot, bispo de S. Cláudio, o outro, o abade Tourteau, vigário geral de Agde e abade de Grand-Champs, da ordem de Cister, na diocese de Chartres.

Quando o bispo fixara a sua residência naquela casa, que fora o hospital, encontrara ali aqueles retratos e deixara-os ficar no mesmo lugar, porque eram de sacerdotes e talvez de benfeitores, duas razões para que ele os respeitasse. Tudo o que ele sabia acerca destes dois personagens era que ambos tinham sido providos, um no seu bispado, outro no seu benefício, por nomeação régia datada do mesmo dia, 27 de Abril de 1785. Soubera esta circunstância por a ter encontrado escrita em caracteres que já mal se liam, num quadradinho de papel, amarelado pela ação do tempo, pregado com quatro obreias na parte posterior do retrato do abade de Grand-Champs, numa ocasião em que Magloire tirara os dois quadros para os limpar do pó.

Pendia da larga janela uma corna de grosseiro tecido de lã muito ango, que Magloire para evitar a despesa de uma nova, se viu na necessidade de lhe fazer uma grande costura no centro. Como a costura apresentava exatamente a forma de uma cruz, o bispo indicava-a às vezes, dizendo:

— Nunca houve costura com aspecto mais agradável.

Os quartos, tanto os do rés-do-chão como os do primeiro andar, eram todos caiados de branco, como era habitual nos hospitais e nos quartéis.

Muitos anos depois, porém, Magloire encontrou por baixo do papel caiado várias pinturas que ornavam o quarto de Baptistina. Antes de ser hospital, aquela casa fora centro de reunião dos burgueses e daí provinha a decoração. Os quartos eram ladrilhados de tijolos, que todas as semanas se lavavam, e aos pés de cada cama havia uma esteira. Numa palavra, a humilde habitação do bispo, a cargo das duas mulheres, respirava o perfume da mais esmerada limpeza. Era o único luxo que ele consentia.

— Com isto não se tira nada aos pobres! — costumava ele dizer.

Convém, contudo, dizer que lhe restava ainda, do que outrora possuíra, seis talheres de prata e uma colher de sopa, que Magloire via todos os dias, com o maior prazer, reluzir sobre a alva toalha de linho grosso que cobria a mesa.

E já que aqui pintámos o bispo de Digne tal qual era, devemos acrescentar que mais de uma vez se lhe ouvira dizer:

— Há-de custar-me muito comer com um talher que não seja de prata!

A esta baixela acrescentaremos também dois castiçais de prata maciça, que herdara de uma a. Estes castiçais que tinham duas velas de cera, figuravam habitualmente sobre o fogão. Quando havia algum hóspede, Magloire acendia as velas e colocava os castiçais sobre a mesa. No quarto do bispo, junto à cabeceira da cama, havia um pequeno armário onde Magloire todas as noites fechava os talheres, mas sem nunca tirar a chave.

O jardim, um tanto prejudicado pelas feias construções de que já falámos, era dividido por quatro caminhos em cruz, com um tanque no centro Ao longo do muro caiado que fechava o jardim, havia outro caminho que o circundava. Estas ruas eram separadas por canteiros orlados de buxo, em três dos quais Magloire cultivava legumes, ficando ainda outro, onde o bispo tinha as suas flores e onde plantara também algumas árvores de fruto.

Numa ocasião, a criada dissera ao bispo, sorrindo com ar de afetuosa malícia:

— Monsenhor, que de tudo tira proveito, não sei como tem no jardim um canteiro inutilizado. Não seria melhor semear nele alfaces em vez de flores?

— Está enganada, Magloire — respondeu ele. — O agradável é tão útil como o útil. — E, após um momento de silêncio, acrescentou: — Ou talvez mais.

O canteiro, que era dividido em quatro alegretes, ocupava a atenção do bispo, tanto como os seus livros. Sempre que podia, passava ali uma ou duas horas, cortando, sachando, mondando e lançando à terra novas sementes. Menos hostil com os insetos do que seria para desejar num jardineiro, o bispo também não tinha aspirações a botânico; desconhecia os grupos e as famílias, não se lembrando sequer de decidir entre Tournefort e o método natural, nem de tomar pardo pelos utrículos contra os cotyledonios ou por Jussieu contra Limeu. Não estudava as plantas, amava as flores. Respeitava muito os sábios, respeitava ainda mais os ignorantes e, sem nunca deixar de respeitar uns e outros, no Verão regava todas as tardes os seus alegretes com um regador de lata pintado de verde.

Em toda a casa não havia uma só porta fechada à chave. A porta da sala de jantar que dava saída para o largo da catedral, fora, em tempos, guarnecida de fechaduras e ferrolhos, como se fosse a porta de uma prisão. O bispo mandou tirar todas as fechaduras e daí em diante quer fosse noite, quer dia, a porta apenas ficava segura por um simples fecho. Quem quisesse abrir a porta, podia fazê-lo a qualquer hora.

Nos primeiros tempos, isto afligia as duas mulheres, mas o bispo dizia-lhes:

— Se quiserem mandem pôr ferrolhos nos vossos quartos.

Desde então, elas principiaram a participar da confiança do bispo ou, pelo menos, a mostrar que participavam. Apenas Magloire sentia, de tempos a tempos, renascer-lhe os receios. No que respeita ao prelado, podem dar-nos a explicação ou, pelo menos, indicação do seu pensamento, as seguintes linhas escritas por ele na margem de uma folha da Bíblia: «Eis a diferença: a porta do médico nunca deve estar fechada e a porta do sacerdote deve estar sempre aberta.»

Noutro livro intitulado Filosofia da ciência médica escrevera ele esta nota: «Tão médico sou eu como eles. Eles têm os seus enfermos, aos quais chamam doentes; eu tenho esses e os meus, a quem chamo desgraçados».

Noutra parte lia-se ainda: «Não pergunteis nunca o nome de quem vos pedir pousada Aquele que necessita de ocultar o seu nome, é quem mais carece de asilo».

Uma ocasião, um respeitável pároco, não sabemos bem se o de Couloubroux, se o de Pompierry, perguntou-lhe, talvez instigado por Magloire, se estava certo de não cometer, até certo ponto, uma imprudência, deixando de noite a porta aberta, à mercê de quem quisesse entrar, e se, finalmente, não receava consequências desagradáveis numa casa tão mal guardada.

O bispo, com serena gravidade, pôs-lhe a mão no ombro e disse-lhe:

Nisi Dominus custodierit domum, in vanum vigilante qui custodiunt earn.

Dizendo isto, mudou logo de assunto.

O sacerdote, costumava ele dizer, tem tanta bravura como o militar. Com a diferença, acrescentava, que a nossa deve ser mais pacífica.





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Enquanto existir nas leis e nos costumes uma organização social que cria infernos artificiais no seio da civilização, juntando ao destino, divino por natureza, um fatalismo que provém dos homens; enquanto não forem resolvidos os três problemas fundamentais a degradação do homem pela pobreza, o aviltamento da mulher pela fome, a atrofia da criança pelas trevas; enquanto, em certas classes, continuar a asfixia social ou, por outras palavras e sob um ponto de vista mais claro, enquanto houver no mundo ignorância e miséria, não serão de todo inúteis os livros desta natureza. 

Hauteville House, 1862




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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.


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