quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine VIII — Filosofia de sobremesa

Victor Hugo - Os Miseráveis


Primeira Parte - Fantine

Livro Primeiro - Um Justo




VIII — Filosofia de sobremesa 
 

O senador de que atrás falámos, era um homem entendido, que percorrera sempre o seu caminho com retidão pouco atenta a todos os encontros que lhe servem de obstáculo e a que se chama consciência, fé, justiça e dever; superior a semelhantes
preconceitos, caminhara sempre direito ao seu fim, sem uma só vez se desviar da linha do seu adiantamento e interesses. Era um antigo procurador, não pervertido pela prosperidade nem dotado de mau coração, prestando com facilidade os serviços que podia em favor dos filhos, genros, parentes e até amigos; aproveitara sempre os ensejos da fortuna e o que a vida tem de melhor, sem se importar com mais nada, porque o contrário, no seu entender, era asneira. Espirituoso e instruído suficientemente para se julgar discípulo de Epicuro, não passando talvez de um produto de Pigault-Lebrun, ria-se com a maior satisfação e vontade das coisas infinitas e eternas e dos desvarios do bom bispo, chegando, por vezes, a fazê-lo com a mais prazenteira autoridade, na presença do próprio prelado. 

Um dia, por ocasião de uma cerimonia semi-oficial, encontraram-se a jantar em casa do prefeito, Carlos Myriel e o conde de... (o senador). À sobremesa, o senador, um tanto prazenteiro, sem contudo perder a dignidade, exclamou: 

— Senhor bispo, se não se importa, conversemos um bocado. Um senador e um bispo raramente conseguem fitar-se sem piscar os olhos. Nós somos dois agoureiros. Vou fazer-lhe uma revelação. Tenho um sistema filosófico propriamente meu. 

— Faz muito bem — respondeu o bispo. — Conforme é a filosofia que professamos, assim é a cama que preparamos para nós próprios. A de V. Ex.ª deve ser de púrpura, senhor senador. 

Este, mais animado, continuou: 

— Sejamos bons rapazes! 

— Pobres diabos, mesmo! — disse o bispo. 

— Declaro-lhe — prosseguiu o senador — que o marquês de Argens, Pyrrhon, Hobbes e Naigeon, não são nenhuns parvos ridículos. Tenho na minha biblioteca todos os meus filósofos, magnificamente encadernados. 

— Como V. Ex.ª, senhor conde — interrompeu o bispo. 

O senador prosseguiu: 

— Odeio Diderot! É um ideólogo, um declamador revolucionário, mas no íntimo mais crente em Deus e mais religioso do que Voltaire. Este escarnecia de Needham e não tinha razão, porque as enguias de Needham provam que Deus é inútil. Uma gota de vinagre numa colher de farinha amassada vale pelo fiat lux. Imaginem uma gota maior e uma colher de mais avantajadas dimensões e aí têm o mundo! O homem é a enguia! Neste caso, de que serve o Padre Eterno? Senhor bispo, não posso levar à paciência a hipótese Jeová. Só serve para emagrecer os que pensam demais. Abaixo, pois, esse grande Todo que me incomoda! Viva Zero, que me deixa tranquilo! Aqui entre nós, para não ficar nada por dizer e confessar-me ao meu pastor, como devo: declaro-lhe que, por ora, tenho a cabeça no devido lugar, e não me sinto apaixonado pelo seu Jesus que prega por todos os cantos a renúncia e o sacrifício. Conselho de um avarento dado a mendigos. Renúncia, porquê? Sacrifício, a quem? Não é crível que um lobo se imole por outro lobo. Conservemo-nos como a natureza nos fez. Estamos no cume, seja também superior a nossa filosofia. De que serve estar no cimo, se a gente não vê um palmo adiante do nariz? Vivamos alegremente, porque na vida se cifra tudo! No outro futuro que dizem que o homem tem cá por cima, lá por baixo, em qualquer parte, isso escusam de pregar, porque não creio numa só palavra. Como me recomendam o sacrifício e a renúncia, devo meditar sobre todas as minhas ações e quebrar a cabeça para distinguir o bem do mal, o justo do injusto, e o lícito do ilícito Porquê? Porque terei de dar contas das minhas ações? Quando? Depois da minha morte. Que bonito sonho! Depois de eu morrer hão-de pegar-me nas botas! Falemos franco, nós que somos iniciados e que erguemos a túnica de Isis. Não há bem nem mal, há apenas vegetação. Procuremos a realidade, cavemos até ao fundo, que diabo! É necessário encontrar a verdade, cavemos até encontrá-la e tenhamos a certeza de que ela nos dará os mais requintados prazeres e que fará com que nos riamos do resto. Bem vê que sou quadrado na base. Senhor bispo, a imortalidade da alma não passa de um mito, uma promessa encantadora e mais nada! Que felicidade ser filho de Adão! Ser alma, ser anjo, ver-se a gente com asas azuis nas omoplatas, que deslumbrante perspectiva! Vamos, senhor bispo, ajude-me a memória, não foi Tertuliano quem disse que os bem-aventurados andarão de astro em astro? Ora aí tem! Seremos os gafanhotos das estrelas e ainda por cima gozaremos da presença de Deus. Que patarata é toda esta coleção de paraísos! Deus não passa de uma frioleira monstruosa! Por certo que eu não ia agora pôr-me a dizer isto nas colunas do Monitor, mas aqui entre amigos inter pocula posso dizê-lo. Sacrificar a terra pelo paraíso é largar a presa pela sombra! É extremamente estúpido ser logrado pelo infinito. O que sou eu senão uma porção do nada? Exisa porventura antes de nascer? Não. Continuarei a existir depois de morto? Não. O que sou então? Um pouco de pó agregado por um organismo. Que devo fazer na terra? Posso escolher: sofrer ou gozar. Aonde me conduzirá o sofrimento? Ao nada. Mas terei sofrido. Aonde me levará o gozo? Ao nada. Mas terei gozado. Assim, pois, a minha escolha está feita. É indispensável dominar ou ser dominado. Prefiro dominar! É preferível ser martelo a ser bigorna. É esta a minha teoria. No fim de tudo isto está o coveiro, que é para nós o Pantheon e está tudo arrumado. Finis. Liquidação total. Some-se tudo para nunca mais aparecer. Creia-me, a morte é a morte e, por mais que me digam, não posso deixar de rir quando penso nela. É uma invenção de amas de crianças; para estas é o papão, para os homens é Jeová! Além do túmulo, há a igualdade do nada. Sardanapalo ou Vicente de Paula, quem quer que tenhais sido, o mesmo nada vos caberá em sorte. Aqui está a verdade! Portanto, vivamos, dê por onde der. Façamos uso do nosso eu, enquanto o possuímos. Repito-lhe, senhor bispo, tenho a minha filosofia e os meus filósofos e não me deixo engrinaldar com patranhas. Todavia, alguma coisa hão-de ter os que rastejam na lama, os pés descalços, os miseráveis. Dão-se-lhe a engolir as lendas, as quimeras, a alma, a imortalidade, o paraíso, as estrelas. E eles lá vão mastigando tudo. Quem não tem nada, tem Deus. Pouco é, mas valha-nos isso. Da minha parte não lhe ponho obstáculos, mas guardo Naigeon para mim. Quanto a Deus, deixo-o ao povo. 

— Ora isso é que se chama falar! — exclamou o bispo, batendo as palmas. — Excelente! É realmente maravilhoso o seu materialismo, senhor conde! Quem o professa está livre de cair em logros; não se deixa desterrar estupidamente como Catão, nem apedrejar como Santo Estêvão, nem queimar vivo como Joana d’Arc! Quem consegue chegar a possuir tão admirável materialismo tem o prazer de conseguir a irresponsabilidade e adquirir a convicção de que tudo pode devorar sem susto, empregos, sinecuras, dignidades, palinódias lucravas, traições úteis, saborosas capitulações de consciência e que descerá ao túmulo, depois de bem feita a digestão. Que agradável coisa! Eu não digo isto por V. Ex.ª, senhor senador. Todavia, não posso deixar de lhe dar os parabéns! Os fidalgos, como V. Ex.ª disse, têm uma filosofia própria, sutil, requintada, unicamente acessível aos ricos, ótimo condimento para guisar com todas as voluptuosidades da vida! É uma filosofia desenterrada das profundidades por investigadores especiais. Porém, magnates de bom coração, não levam a mal que a crença em Deus seja a filosofia do povo, do mesmo modo, por assim dizer, como a açorda é o peru do pobre.



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Enquanto existir nas leis e nos costumes uma organização social que cria infernos artificiais no seio da civilização, juntando ao destino, divino por natureza, um fatalismo que provém dos homens; enquanto não forem resolvidos os três problemas fundamentais a degradação do homem pela pobreza, o aviltamento da mulher pela fome, a atrofia da criança pelas trevas; enquanto, em certas classes, continuar a asfixia social ou, por outras palavras e sob um ponto de vista mais claro, enquanto houver no mundo ignorância e miséria, não serão de todo inúteis os livros desta natureza. 

Hauteville House, 1862




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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.


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