domingo, 12 de agosto de 2018

Stendhal - O Vermelho e o Negro: Pequenos Acontecimentos (VIII)

Livro I


A verdade, a áspera verdade. 
Danton 


Capítulo VIII


PEQUENOS ACONTECIMENTOS


Then there were sighs, the deeper for suppression, 
And stolen glances, sweeter for the theft, A
nd burning blushes, though for no transgression..

DON JUAN, C. I, estrofe 74






A ANGÉLICA DOÇURA QUE a sra. de Rênal devia a seu caráter e à sua felicidade atual só era um pouco alterada quando ela pensava em sua camareira Elisa. Essa moça recebeu uma herança, foi confessar-se com o cura Chélan e revelou-lhe o projeto de casar com Julien. O cura ficou muito alegre com a sorte do amigo, mas ficou muito surpreso quando Julien lhe disse, com ar decidido, que a oferta da srta. Elisa não lhe convinha. 

– Tome cuidado, meu filho, com o que se passa em seu coração, disse o cura, franzindo a sobrancelha; felicito-o por sua vocação, se é apenas a ela que deve o desprezo a uma fortuna mais do que suficiente. Há 56 anos sou pároco de Verrières, no entanto, ao que tudo indica, serei destituído. Isso me aflige, embora eu tenha 800 libras de rendimento. Conto-lhe esse detalhe para que não tenha ilusões sobre o que lhe aguarda a condição de padre. Se pensa em cortejar os homens poderosos, sua perdição eterna está garantida. Poderá fazer fortuna, mas terá de prejudicar os miseráveis, bajular o subprefeito, o prefeito, os homens importantes, e servir suas paixões: essa conduta, que na sociedade chama-se saber viver, pode, para um leigo, não ser absolutamente incompatível com a salvação; mas, em nossa condição, é preciso optar: trata-se de fazer fortuna neste mundo ou no outro, não há outra saída. Vá, meu caro amigo, reflita e volte dentro de três dias para dar-me uma resposta definitiva. Vislumbro com pesar, no fundo de seu caráter, um ardor sombrio que não me anuncia a moderação e a perfeita renúncia aos bens terrestres necessária a um padre; espero muito de seu espírito; mas, permita-me dizê-lo, acrescentou o bom cura com lágrimas nos olhos, na condição de padre receio por sua salvação. 

Julien envergonhou-se de sua emoção; pela primeira vez na vida, via-se amado; ele chorava com delícia e foi esconder suas lágrimas no bosque acima de Verrières. 

Por que me encontro nesse estado? disse enfim a si mesmo. Sinto que daria cem vezes minha vida por esse bom cura Chélan, no entanto ele acaba de provar-me que sou um tolo. É sobretudo a ele que me importa enganar, e ele me adivinha. Esse ardor secreto de que me fala é meu projeto de fazer fortuna. Ele me julga indigno de ser padre, e isto precisamente quando eu imaginava que o sacrifício de cinquenta luíses de renda lhe daria a mais alta ideia de minha piedade e de minha vocação. 

No futuro, continuou Julien, contarei apenas com as partes do meu caráter que eu tiver experimentado. Quem haveria de dizer que eu teria prazer em derramar lágrimas, que eu amaria aquele que me prova que sou um tolo!

Três dias depois, Julien encontrou o pretexto do qual deveria estar munido desde o primeiro dia; esse pretexto era uma calúnia, mas que importa? Ele confessou ao cura, com muita hesitação, que uma razão que ele não podia revelar, porque prejudicaria a um terceiro, o desviara desde o começo da união projetada. Era acusar a conduta de Elisa. O sr. Chélan viu em suas maneiras um certo ardor muito mundano, bem diferente daquele que deveria animar um jovem levita. 

– Meu amigo, disse ele ainda, é melhor ser um bom burguês da província, estimável e instruído, do que um padre sem vocação. 

A essas novas advertências, Julien respondeu muito bem, quanto às palavras: ele encontrava os termos que teria empregado um jovem seminarista fervoroso; mas o tom com que os pronunciava, mas o ardor mal dissimulado que vibrava em seus olhos alarmavam o sr. Chélan. 

Não devemos pensar muito mal a respeito de Julien; ele inventava corretamente as palavras de uma hipocrisia cautelosa e prudente. Isso é compreensível em sua idade. Quanto ao tom e aos gestos, vivera com aldeões, fora privado da visão dos grandes modelos. Posteriormente, tão logo pôde aproximar-se desses senhores, mostrou-se admirável tanto pelos gestos quanto pelas palavras. 

A sra. de Rênal ficou espantada que a nova fortuna de sua camareira não fizesse essa moça mais feliz; via-a constantemente ir à casa do cura e voltar de lá com lágrimas nos olhos; enfim, Elisa falou-lhe do casamento. 

A sra. de Rênal acreditou-se doente; uma espécie de febre a impedia de dormir; só vivia quando tinha sob os olhos sua camareira ou Julien. Só conseguia pensar neles e na felicidade que teriam. A pobreza desse lar, onde deveriam viver com 50 luíses de renda, aparecia-lhe sob cores maravilhosas. Julien poderia perfeitamente ser advogado em Bray, a subprefeitura a duas léguas de Verrières; nesse caso, ela o veria de vez em quando. 

A sra. de Rênal acreditou sinceramente que ia enlouquecer; disse isso ao marido e por fim adoeceu de fato. Na mesma noite, quando sua camareira a servia, ela observou que a moça chorava. Irritada com Elisa nesse momento, e tendo-a tratado com aspereza, pediu-lhe perdão. As lágrimas de Elisa redobraram; ela disse que, se a patroa permitisse, contar-lhe-ia toda a sua infelicidade. 

– Conte, respondeu a sra. de Rênal. 

– Pois bem, senhora, ele me rejeita; alguém deve ter-lhe falado mal a meu respeito e ele acreditou. 

– Quem a rejeita? perguntou a sra. de Rênal, quase contendo a respiração. 

– E quem haveria de ser, senhora, senão Julien? replicou a camareira, soluçando. O sr. cura não conseguiu vencer sua resistência; pois o sr. cura acha que ele não deve recusar uma mulher honesta, só porque é camareira. Afinal, o pai de Julien é apenas um carpinteiro; e ele próprio, como ganhava a vida antes de vir para a casa da senhora? 

A sra. de Rênal não escutava mais; o excesso de feli​cidade quase lhe tirara o uso da razão. Mandou repetir vá​rias vezes a certeza de que Julien recusara de uma forma positiva e que não reconsideraria uma resolução mais sensata. 

– Farei uma última tentativa, disse ela à camareira, falarei com o sr. Julien.

No dia seguinte, depois do almoço, a sra. de Rênal entregou-se à deliciosa volúpia de defender a causa da rival, e de ver a mão e a fortuna de Elisa recusadas constantemente durante uma hora. 

Aos poucos, Julien saiu de suas respostas compassadas e acabou por responder com espírito às sensatas observações da sra. de Rênal. Ela não pôde resistir à torrente de felicidade que inundava sua alma depois de tantos dias de desespero. Sentiu-se mal. Quando se viu restabelecida e bem instalada em seu quarto, mandou todos embora. Estava profundamente espantada. 

Estarei amando Julien? pensou, por fim. 

Essa descoberta, que em qualquer outro momento a teria mergulhado em remorsos e numa agitação profunda, não foi para ela senão um espetáculo singular, mas como que indiferente. Sua alma, esgotada pelo que acabava de experimentar, não tinha mais sensibilidade a serviço das paixões. 

A sra. de Rênal quis trabalhar e caiu num sono profundo; quando despertou, não se assustou tanto quanto imaginava. Estava feliz demais para poder levar a mal alguma coisa. Ingênua e inocente, essa boa provinciana jamais havia torturado sua alma para dela extrair um pouco de sensibilidade a um novo matiz de sentimento ou de infortúnio. Inteiramente absorvida, antes da chegada de Julien, pela massa de trabalho que, longe de Paris, é o que cabe a uma boa mãe de família, a sra. de Rênal pensava nas paixões assim como pensamos na loteria: ilusão certa e felicidade buscada por insensatos. 

A sineta do jantar soou; a sra. de Rênal enrubesceu muito ao ouvir a voz de Julien, que trazia as crianças. Um pouco habilidosa, desde que amava, para explicar seu rubor, queixou-se de uma forte dor de cabeça. 

– Eis como são as mulheres, disse o sr. de Rênal, com uma risada grosseira. Há sempre algo a consertar nessas máquinas! 

Embora acostumada a esse tipo de gracejo, o tom de voz chocou a sra. de Rênal. Para distrair-se, olhou a fisionomia de Julien; mesmo se fosse o homem mais feio, nesse instante ter-lhe-ia agradado. 

Atento em copiar os hábitos da corte, o sr. de Rênal instalou-se em Vergy logo nos primeiros dias da primavera; essa é uma aldeia famosa pela trágica aventura de Gabrielle. A umas centenas de passos das pitorescas ruí​nas de uma antiga igreja gótica, o sr. de Rênal possui um velho castelo com suas quatro torres e um jardim desenhado como o das Tulherias, com sebes de buxo e aleias de castanheiros podados duas vezes ao ano. Um campo vizinho, plantado de macieiras, servia de passeio. Havia oito ou dez magníficas nogueiras no fundo do pomar; sua imensa folhagem alcançava quase trinta metros de altura. 

– Cada uma dessas malditas nogueiras, dizia o sr. de Rênal quando sua mulher as admirava, custa-me a colheita de meio alqueire, o trigo não pode brotar à sombra delas. 

A vista do campo pareceu nova à sra. de Rênal; sua admiração chegava ao enlevo. O sentimento que a possuía dava-lhe ânimo e resolução. Dois dias depois da chegada em Vergy, tendo o sr. de Rênal retornado à cidade para assuntos da prefeitura, a sra. de Rênal contratou operários por conta própria. Julien lhe havia sugerido um pequeno caminho de saibro, que circularia pelo pomar e debaixo das grandes nogueiras, permitindo às crianças passearem já de manhã sem que suas sandálias ficassem molhadas de orvalho. Essa ideia foi posta em execução menos de 24 horas depois de concebida. A sra. de Rênal passou alegremente a jornada inteira com Julien a dirigir os operários. 

Quando o prefeito de Verrières voltou da cidade, ficou muito surpreso de encontrar a aleia pronta. Sua chegada surpreendeu também a sra. de Rênal; ela havia esquecido sua existência. Durante dois meses, ele falou com irritação da ousadia de terem feito, sem consultá-lo, uma obra tão importante, mas a sra. de Rênal a executara com recursos próprios, o que o consolava um pouco. 

Ela passava os dias a correr com os filhos pelo pomar e a caçar borboletas. Haviam montado grandes capuzes de gaze clara, com os quais pegavam os pobres lepi​dópteros. É o nome bárbaro que Julien ensinava à sra. de Rênal. Pois ela mandara vir de Besançon o belo livro do sr. Godart, e Julien contava-lhe os costumes singulares dos pobres bichinhos. 

Eles eram impiedosamente espetados com alfinetes num grande painel de papelão montado também por Julien. 

Houve finalmente, entre a sra. de Rênal e Julien, um assunto de conversa, ele não ficou mais exposto ao terrível suplício que lhe causavam os momentos de silêncio. 

Os dois falavam sem parar e com um interesse extremo, embora de coisas muito inocentes. Essa vida ativa, ocupada e alegre era do gosto de todos, exceto da srta. Elisa, que se via sobrecarregada de trabalho. Nem no Carnaval, dizia, quando há baile em Verrières, a senhora deu tanta atenção à sua toalete; muda de roupa duas ou três vezes por dia. 

Como nossa intenção é não lisonjear ninguém, não negaremos que a sra. de Rênal, que tinha uma pele soberba, providenciou vestidos que deixassem os braços e o peito bastante descobertos. Ela tinha um belo corpo, e essa maneira de vestir-se convinha-lhe maravilhosamente. 

Nunca esteve tão jovem, senhora, diziam-lhe os amigos de Verrières que vinham almoçar em Vergy. (É uma maneira de falar da região.) 

Uma coisa singular, na qual poucos de nós acreditarão, era que a sra. de Rênal se entregasse a tantos cuidados sem uma intenção direta. Ela sentia prazer nisso; e, sem pensar noutra coisa, quando não estava caçando borboletas com as crianças e Julien, trabalhava com Elisa na confecção de vestidos. Sua única ida a Verrières foi causada pela vontade de comprar novos vestidos de verão que acabavam de chegar de Mulhouse. 

Trouxe a Vergy uma jovem parente sua. Desde seu casamento, a sra. de Rênal aproximarase aos poucos da sra. Derville, que outrora fora sua companheira no Sacré-Coeur. 

A sra. Derville ria muito do que chamava as ideias loucas da prima: Sozinha, eu nunca pensaria nisso, dizia. Dessas ideias imprevistas, que em Paris chamariam repentes, a sra. de Rênal envergonhava-se como de uma tolice, quando estava com o marido; mas a presença da sra. Derville a encorajava. A princípio expressava seus pensamentos com uma voz tímida; quando as duas ficavam a sós por algum tempo, o espírito da sra. de Rênal animava-se, e uma longa manhã solitária passava como um instante e deixava as amigas muito alegres. Nessa via​gem, a razoável sra. Derville achou sua prima bem menos alegre e bem mais feliz. 

Julien, por seu lado, vivia como uma verdadeira crian​ça desde sua temporada no campo, tão feliz de correr atrás das borboletas quanto seus alunos. Depois de tanto constrangimento e política hábil, sozinho, longe dos olhares dos homens e, por instinto, não temendo a sra. de Rênal, ele entregava-se ao prazer de existir, tão intenso nessa idade, e em meio às mais belas montanhas do mundo. 

Desde a chegada da sra. Derville, pareceu a Julien que ela era sua amiga; apressou-se em mostrar-lhe o panorama que se tem na extremidade da nova aleia, debaixo das grandes nogueiras; de fato, ele é igual, se não superior, ao que a Suíça e os lagos da Itália podem oferecer de mais admirável. Galgando-se a encosta íngreme que começa a alguns passos dali, logo se chega a grandes precipícios orlados de bosques de carvalhos que avançam quase até a margem. É aos cumes desses rochedos talhados a prumo que Julien, feliz, livre, e até algo mais, rei da casa, conduzia as duas amigas, deli​ciando-se com a admiração delas por essas vistas sublimes. 

– Para mim, é como a música de Mozart, dizia a sra. Derville. 

A inveja dos irmãos, a presença de um pai déspota e irritadiço haviam estragado, aos olhos de Julien, os campos dos arredores de Verrières. Em Vergy, não havia nenhuma dessas lembranças amargas; pela primeira vez na vida, não via um inimigo sequer. Quando o sr. de Rênal estava na cidade, o que acontecia com frequência, ousava ler; em breve, em vez de ler à noite, e cuidando de esconder sua lâmpada no fundo de um vaso de flores emborcado, pôde entregar-se ao sono; de dia, no intervalo das lições das crianças, ia até os rochedos com o livro que era a regra única de sua conduta e o objeto de seus transportes. Nele encontrava ao mesmo tempo felicidade, êxtase e consolação nos momentos de desânimo. 

Algumas coisas que Napoleão diz das mulheres, várias discussões sobre o mérito dos romances em voga no seu reinado, deram-lhe então, pela primeira vez, algumas ideias que um outro jovem de sua idade há muito teria tido. 

Chegaram os grandes calores. Habituaram-se a passar as noites debaixo de uma imensa tília a alguns passos da casa. Ali a obscuridade era profunda. Uma noite, Julien falava com vivacidade, deliciava-se com o prazer de falar bem e a mulheres jovens; ao gesticular, tocou a mão da sra. de Rênal, que estava apoiada no encosto de uma dessas cadeiras de madeira pintada que se colocam nos jardins. 

A mão retirou-se bem depressa; mas Julien pensou que era seu dever fazer que essa mão não fosse retirada quando ele a tocasse. A ideia de um dever a cumprir, e de expor-se ao ridículo, ou melhor, a um sentimento de inferioridade, caso não conseguisse, afastou na mesma hora todo o prazer de seu coração.






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ADVERTÊNCIA DO EDITOR
Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.


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Henri-Marie Beyle, mais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.

Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.

Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.

"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.

Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.

Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.

Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.

Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.



O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.

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