quinta-feira, 6 de setembro de 2018

Stendhal - O Vermelho e o Negro: Um Grande Coração e Uma Pequena Fortuna (X)

Livro I

A verdade, a áspera verdade. 
Danton 



Capítulo X


UM GRANDE CORAÇÃO E UMA PEQUENA FORTUNA


But passion most dissembles, yet betrays, 
Even by its darkness; as the blackest sky 
Foretells the heaviest tempest.

DON JUAN, C. I, est. 73



O SR. DE RÊNAL, que percorria todos os quartos do castelo, voltou ao das crianças com os criados que tra​ziam os enxergões. A entrada súbita desse homem foi para Julien a gota d ´água que faz transbordar o copo.
Mais pálido, mais sombrio que de costume, avançou em direção a ele. O sr. de Rênal deteve-se e olhou para os criados.

– Senhor, disse-lhe Julien, acredita que com algum outro preceptor seus filhos teriam feito os mesmos progressos que comigo? Se responder que não, continuou Julien sem dar ao sr. de Rênal tempo de falar, como ousa censurar-me de que os negligencio?

O sr. de Rênal, mal refeito de sua reação de medo, concluiu, do tom estranho das palavras do pequeno aldeão, que ele trazia no bolso alguma proposta vantajosa e que ia deixá-lo. A cólera de Julien aumentava à medida que falava:

– Posso viver sem o senhor, acrescentou.

– Estou realmente aborrecido de vê-lo assim tão agitado, respondeu o sr. de Rênal, balbuciando um pouco. Os criados estavam a dez passos, ocupados em arrumar as camas.

– Isso não me basta, senhor, retomou Julien, fora de si; pense na infâmia das palavras que me dirigiu, e ainda por cima diante das mulheres!

O sr. de Rênal compreendia perfeitamente o que Julien pedia, e um penoso combate dilacerava sua alma. A certa altura, efetivamente enfurecido, Julien exclamou:

– Saindo de sua casa, senhor, sei para onde ir.

A essas palavras, o sr. de Rênal viu Julien instalado na casa do sr. Valenod.

– Pois bem, senhor, disse-lhe enfim, com um suspiro e a expressão de quem teria chamado o cirurgião para a operação mais dolorosa, concordo com seu pedido. A partir de depois de amanhã, que é o primeiro dia do mês, dar-lhe-ei 50 francos por mês.

Julien teve vontade de rir e ficou estupefato: toda a sua cólera desaparecera.
Eu não desprezava o bastante esse animal, pensou. Eis aí certamente o maior pedido de desculpa que pode apresentar uma alma tão baixa.
As crianças, que escutavam boquiabertas essa cena, correram até o jardim para dizer à mãe que o sr. Julien estava furioso, mas que ia receber 50 francos por mês.
Julien os acompanhou por hábito, sem sequer olhar para o sr. de Rênal, que ele deixou profundamente irritado.
Cento e sessenta e oito francos, dizia-se o prefeito, eis o que me custa o sr. Valenod! Preciso absolutamente dizer-lhe duas palavrinhas firmes sobre sua empresa de aviamentos para as crianças enjeitadas.
Um instante depois, Julien voltou a encontrar-se face a face com o sr. de Rênal:

– Devo falar de minha consciência ao sr. Chélan; tenho a honra de comunicar-lhe que estarei ausente algumas horas.

– Ah! meu caro Julien!, disse o sr. de Rênal, rindo com o ar mais falso, o dia todo, se quiser, e amanhã também. Pegue o cavalo do jardineiro para ir a Verrières.

Ei-lo que vai levar a resposta a Valenod, pensou o sr. de Rênal; ele não me prometeu nada, mas é preciso deixar esfriar essa cabeça de rapaz.
Julien partiu rapidamente, seguindo pelos grandes bosques pelos quais se pode ir de Vergy a Verrières. Não queria chegar em seguida à casa do sr. Chélan. Longe de querer entregar-se a uma nova cena de hipocrisia, tinha necessidade de ver claro dentro de sua alma e de dar ouvidos à multidão de sentimentos que o agitavam.
Ganhei uma batalha, disse a si mesmo assim que se viu nos bosques e longe do olhar dos homens. Ganhei então uma batalha!
Essas palavras punham mais brilho em sua posição e deram à sua alma uma certa tranquilidade.
Eis-me com 50 francos de rendimentos por mês, o sr. de Rênal devia estar com muito medo. Mas de quê?
Essa meditação sobre o que podia ter causado o medo num homem feliz e poderoso contra o qual, uma hora antes, ele fervia de raiva, acabou por serenar a alma de Julien. Por um momento, quase foi sensível à beleza deslumbrante dos bosques no meio dos quais caminhava. Enormes blocos de rochas nuas haviam caído outrora entre as árvores, do lado da montanha. Grandes faias elevavam-se quase tão altas quanto esses rochedos cuja sombra transmitia um delicioso frescor, a três passos dos lugares onde o calor dos raios do sol teria impossibilitado deter-se.
Julien descansava um pouco à sombra dessas grandes rochas, para depois continuar a subir. Seguindo um estreito caminho pouco discernível e que serve apenas aos guardadores de cabras, logo viu-se de pé sobre uma rocha imensa e com a certeza de estar separado de todos os homens. Essa posição física o fez sorrir, ela pintava-lhe a posição que ansiava atingir no plano moral. O ar puro dessas montanhas elevadas transmitiu serenidade e mesmo alegria à sua alma. O prefeito de Verrières continuava sendo, para ele, o representante de todos os ricos e de todos os insolentes da terra; mas Julien sentia que o ódio que há pouco o agitara, apesar da violência de seus gestos, nada tinha de pessoal. Se deixasse de ver o sr. de Rênal, em oito dias o teria esquecido, a ele, seu castelo, seus cães, seus filhos e toda a sua família. Forcei-o, não sei de que maneira, a fazer o maior sacrifício. Ora vejam! mais de cinquenta escudos por ano! e pouco antes eu me safava do maior perigo. Duas vitórias num dia; a segunda é sem mérito, seria preciso adivinhar como aconteceu. Mas deixemos para amanhã as investigações penosas.
De pé sobre seu grande rochedo, Julien olhava o céu, abrasado por um sol de agosto. As cigarras cantavam no campo abaixo do rochedo; quando se calavam, era tudo silêncio ao redor. Ele via a seus pés vinte léguas de terras. De quando em quando, avistava um ou outro gavião saído das grandes rochas acima de sua cabeça, descrevendo em silêncio círculos imensos. Os olhos de Julien seguiam maquinalmente a ave de rapina. Seus movimentos tranquilos e poderosos o impressionavam, ele invejava aquela força, aquele isolamento.
Assim fora o destino de Napoleão. Seria algum dia o dele?

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ADVERTÊNCIA DO EDITOR
Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.


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Henri-Marie Beyle, mais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.

Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.

Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.

"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.

Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.

Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.

Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.

Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.



O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.

Stendhal - O Vermelho e o Negro: Um Grande Coração e Uma Pequena Fortuna (X)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Uma Noite (XI)


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