sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Stendhal - O Vermelho e o Negro: Uma Noite no Campo (IX)

Livro I

A verdade, a áspera verdade. 
Danton 




Capítulo IX


UMA NOITE NO CAMPO


A Dido do sr. Guérin, esboço encantador.

STROMBECK






SEUS OLHARES NO DIA SEGUINTE, quando voltou a ver a sra. de Rênal, eram singulares; ele a observava como um inimigo com o qual terá de bater-se. Esses olhares, tão diferentes dos da véspera, tiraram o sossego da sra. de Rênal: fora boa com ele, e ele parecia zangado. Ela não conseguia afastar seus olhos dos dele. 
A presença da sra. Derville permitia a Julien falar menos e ocupar-se mais com o que tinha em mente. Sua única preocupação, durante toda essa jornada, foi fortalecer-se pela leitura do livro inspirado que impregnava sua alma. 
Abreviou em muito as lições das crianças e, a seguir, quando a presença da sra. de Rênal veio convocá-lo por inteiro aos cuidados de sua glória, decidiu que sua mão devia absolutamente, naquela noite, permanecer na dela. 
Quando o sol se pôs e aproximou-se o momento decisivo, o coração de Julien bateu com força. Fez-se noite. Ele observou, com uma alegria que lhe tirou um peso imenso de cima do peito, que seria uma noite muito escura. O céu carregado de nuvens, arrastadas por um vento quente, parecia anunciar uma tempestade. As duas amigas passearam até muito tarde. Tudo o que elas fa​ziam naquela noite parecia especial a Julien. Elas se deliciavam com aquele tempo que, para certas almas delicadas, parece aumentar o prazer de amar. 
Sentaram-se, enfim, a sra. de Rênal ao lado de Julien e a sra. Derville perto de sua amiga. Preocupado com o que ia tentar, Julien não conseguia dizer nada. A conversa esmorecia. 
Estarei assim trêmulo e inquieto quando enfrentar meu primeiro duelo?, pensou Julien, pois tinha muita desconfiança dele e dos outros para não perceber o estado de sua alma. 
Em sua mortal angústia, todos os perigos pareceram-lhe preferíveis. Quantas vezes não desejou que um afazer obrigasse a sra. de Rênal a voltar para casa e a deixar o jardim! A violência que Julien se impunha era demasia​do forte para que sua voz não se alterasse profundamente; em breve, também a voz da sra. de Rênal ficou trêmula, mas Julien não percebeu. O terrível comba​te que o dever travava com a timidez era penoso demais para que pudesse observar alguma coisa fora de si mesmo. Acabavam de soar nove horas e três quartos no relógio do castelo, sem que ele nada tivesse ousado. Indignado com sua covardia, Julien pensou: no exato momento em que soarem dez horas, executarei aquilo que, o dia todo, me prometi fazer esta noite, caso contrário subo ao meu quarto e arrebento os miolos. 
Depois de um último momento de espera e de ansie​dade, durante o qual o excesso de emoção punha Julien como que fora de si, soaram dez horas no relógio que estava acima de sua cabeça. Cada badalada desse relógio fatal repercutia em seu peito e causava-lhe como que uma agitação física.
Enfim, quando a última badalada das dez horas ainda ressoava, ele estendeu a mão e pegou a da sra. de Rênal, que a retirou em seguida. Julien, sem saber muito bem o que fazia, agarrou-a de novo. Embora muito emocionado, surpreen​deu-se com a frieza glacial da mão que segurava; ele a apertava com uma força convulsiva; essa mão fez um último esforço para desprender-se, mas enfim permaneceu na dele. 
Sua alma foi inundada de felicidade; não que ele amasse a sra. de Rênal, mas um terrível suplício acabava de cessar. Para que a sra. Derville não percebesse nada, ele acreditou-se obrigado a falar; sua voz era então estridente e forte. A da sra. de Rênal, ao contrário, traía tanta emoção que sua amiga a julgou doente e propôs que entrassem. Julien sentiu o perigo: se a sra. de Rênal voltar à sala, recairei na posição terrível na qual passei a jornada. Segurei essa mão por muito pouco tempo para que isso conte como vantagem a meu favor. 
No momento em que a sra. Derville renovava a proposta de voltar para a sala, Julien apertou fortemente a mão que retinha. 
A sra. de Rênal, que já se levantava, tornou a sentar-se, dizendo, com uma voz débil: 

– Sinto-me um pouco doente, é verdade, mas o ar livre me faz bem. 

Essas palavras confirmaram a felicidade de Julien que, nesse momento, era extrema: ele falou, parou de fingir e pareceu o homem mais amável às duas amigas que o escutavam. No entanto, havia ainda um pouco de falta de coragem nessa eloquência que súbito lhe vinha. Ele temia mortalmente que a sra. Derville, fatigada com o vento que começava a soprar e que precedia a tempestade, quisesse voltar sozinha para a sala. Estaria então frente a frente com a sra. de Rênal. Ele tivera quase por acaso a coragem cega suficiente para agir; mas sentia que estava fora de seu poder dizer a palavra mais simples à sra. de Rênal. Por mais leves que fossem as censuras dela, ele seria vencido e perderia a vantagem que acabava de obter. 

Felizmente para ele, naquela noite, suas palavras tocantes e enfáticas foram bem acolhidas pela sra. Derville que, geralmente, o achava desajeitado como uma criança e pouco divertido. Quanto à sra. de Rênal, com a mão na de Julien, ela não pensava em nada; deixava-se viver. As horas passadas sob essa grande tília, que, segundo a tradição do lugar, teria sido plantada por Carlos o Temerário, foram para ela um momento de felicidade. Ela escutava com delícia o gemido do vento na espessa folhagem da tília e o ruído de algumas gotas raras que começavam a cair nas folhas mais baixas. Julien não notou uma circunstância que o teria tranquilizado: obrigada a retirar sua mão da dele, porque se levantou para ajudar a prima a reerguer um vaso que o vento acabava de derrubar a seus pés, a sra. de Rênal, logo que tornou a sentar-se, entregou-lhe a mão quase sem dificuldade, como se já fosse entre eles uma coisa combinada. 

Havia muito soara a meia-noite; foi preciso enfim deixar o jardim. Separaram-se. A sra. de Rênal, transportada pela felicidade de amar, era tão ignorante que não se fazia quase nenhuma censura. A felicidade tirava-lhe o sono. Um sono de chumbo apoderou-se de Julien, mortalmente fatigado pelos combates que a timidez e o orgulho haviam travado o dia inteiro em seu coração. 

No dia seguinte, despertaram-no às cinco horas; e – o que teria sido cruel para a sra. de Rênal se o soubesse – teve apenas um pensamento: havia cumprido seu dever, e um dever heroico. Tomado de felicidade por esse sentimento, encerrou-se à chave em seu quarto e entregou-se com um renovado prazer à leitura dos feitos de seu herói.

Quando a sineta do almoço fez-se ouvir, ele havia esquecido, ao ler os Boletins do Grande Exército (3), todas as vantagens da véspera. Disse a si mesmo, num tom leve, ao descer para a sala: preciso dizer a essa mulher que a amo. 

Em vez dos olhares carregados de volúpia que esperava encontrar, encontrou o rosto severo do sr. de Rênal que, tendo chegado de Verrières havia duas horas, não ocultava seu descontentamento pelo fato de Julien passar toda a manhã sem se ocupar das crianças. Nada era mais desagradável do que aquele homem importante de mau humor e acreditando poder demonstrá-lo. 

Cada palavra áspera do marido feria o coração da sra. de Rênal. Quanto a Julien, estava de tal forma mergulhado no êxtase, ainda tão ocupado com as coisas que, durante várias horas, acabavam de se passar diante de seus olhos, que a princípio mal pôde rebaixar sua atenção para escutar as frases duras que o sr. de Rênal lhe dirigia. Por fim disse a ele, de maneira bastante brusca: 

– Eu estava doente. 

O tom dessa resposta teria ofendido um homem muito menos suscetível que o prefeito de Verrières; este chegou a pensar em demitir Julien na mesma hora. Só foi retido pela máxima que se impusera de jamais apressar suas decisões. 

Esse jovem tolo, pensou em seguida, adquiriu uma espécie de reputação em minha casa; o Valenod poderá contratá-lo, ou então casará com Elisa; em ambos os casos, no fundo do coração, poderá zombar de mim. 

Apesar da ponderação de suas reflexões, nem por isso o descontentamento do sr. de Rênal deixou de se manifestar por uma série de palavras grosseiras que aos poucos irritaram Julien. A sra. de Rênal esteve a ponto de desfazer-se em lágrimas. Terminado o almoço, ela pediu que Julien lhe desse o braço para o passeio; apoiava-se nele com amizade. A tudo o que a sra. de Rênal lhe dizia, Julien apenas respondia a meia voz:

 – Gente rica é assim! 

O sr. de Rênal caminhava muito perto deles; sua presença aumentava a cólera de Julien. Ele notou de repente que a sra. de Rênal apoiava-se em seu braço de uma forma espe​cial; esse gesto causou-lhe horror, repeliu-a com violência e retirou o braço. 

Felizmente o sr. de Rênal não viu essa nova impertinência, ela só foi observada pela sra. Derville; sua amiga desfazia-se em lágrimas. Naquele momento, o sr. de Rênal pusera-se a perseguir a pedradas uma camponesinha que tomara um caminho proibido e atravessava um canto do pomar. 

– Sr. Julien, por favor, modere-se; pense que todos temos momentos de mau humor, disse rapidamente a sra. Derville. 

Julien mirou-a friamente com olhos nos quais trans​parecia o mais soberano desprezo. 

Esse olhar surpreendeu a sra. Derville, e a teria sur​preendido bem mais se adivinhasse sua verdadeira expressão; teria lido nele algo como uma esperança vaga da mais atroz vingança. Certamente, foram momentos de humilhação como esse que produziram os Robes​pierre. 

– Seu Julien é muito violento, ele me assusta, disse a sra. Derville em voz baixa à sua amiga. 

– Ele tem razão de estar furioso, esta respondeu. Depois dos progressos espantosos que obteve com as crian​ças, que importa que passe uma manhã sem lhes falar? Há que convir que os homens são muito duros. 

Pela primeira vez na vida, a sra. de Rênal sentiu uma espécie de desejo de vingança contra o marido. O ódio extremo que animava Julien contra os ricos ia explodir. Felizmente, o sr. de Rênal chamou seu jardineiro e permaneceu ocupado com ele a barrar, com feixes de espinhos, a passagem proibida através do pomar. Julien não respondeu uma só palavra às amabilidades de que foi objeto durante o resto do passeio. Tão logo o sr. de Rênal afastou-se, as duas amigas, alegando cansaço, pediram-lhe cada uma um braço. 
Entre as duas mulheres com as faces ruborizadas pelo embaraço e uma perturbação extrema, a palidez altiva, o ar sombrio e decidido de Julien formava um estranho contraste. Ele desprezava essas mulheres e todos os sentimentos ternos. 
Quê!, ele pensava, nem mesmo quinhentos francos de renda para terminar meus estudos! Ah! Como gostaria de livrar-me dele! 
Absorvido por essas ideias severas, o pouco que se dignava compreender das palavras atenciosas das duas amigas desagradava-lhe como vazio de sentido, tolo, fraco, em suma: feminino
À força de falar por falar, e de buscar manter a conversa viva, ocorreu à sra. de Rênal dizer que o marido viera de Verrières porque havia adquirido palha de milho de um de seus capatazes. (Nessa região, é com palha de milho que são forrados os enxergões das camas.) 

– Meu marido não nos acompanhará, acrescentou a sra. de Rênal; com o jardineiro e o camareiro, ficará ocupado em terminar a renovação dos enxergões da casa. Esta manhã pôs palha de milho em todas as camas do primeiro andar, agora está no segundo. 

Julien mudou de cor; olhou a sra. de Rênal de um jeito singular e logo tomou-a à parte, de certo modo, dobrando o passo. A sra. Derville deixou que se afastassem. 

– Salve-me a vida, disse Julien à sra. de Rênal, somente a senhora poderá fazê-lo; pois sabe que o camareiro tem ódio mortal de mim. Devo confessar-lhe, senhora, que tenho um retrato; escondi-o no enxergão de minha cama. 

A essa frase, a sra. de Rênal também empalideceu. 

– Somente a senhora poderá neste momento entrar em meu quarto; sem que percebam, vasculhe o ângulo do enxergão mais próximo da janela, ali encontrará uma caixinha de papelão preta e lisa. 

– Ela guarda um retrato!, disse a sra. de Rênal, mal podendo manter-se em pé. 

Seu ar de desânimo foi logo notado por Julien, que disso se aproveitou. 

– Tenho um segundo favor a pedir-lhe, senhora, suplico que não olhe para esse retrato, é meu segredo. 

– É um segredo, repetiu a sra. de Rênal, com voz apagada. 

Mas, embora educada entre pessoas orgulhosas de sua fortuna e sensíveis apenas ao interesse do dinheiro, o amor já pusera generosidade nessa alma. Cruelmente ferida, foi com o devotamento mais simples que a sra. de Rênal fez a Julien as perguntas necessárias para cumprir bem a tarefa. 

– Então, disse ela, afastando-se, uma caixinha redonda, de papelão preto, bem lisa. 

– Sim, senhora, respondeu Julien, com a dureza que o perigo confere aos homens.

Ela subiu até o segundo andar do castelo, pálida como se caminhasse para a morte. Para o cúmulo da desgraça, sentiu que estava a ponto de desmaiar, mas a necessidade de prestar um serviço a Julien deu-lhe forças. 

– Preciso pegar essa caixa, disse a si mesma, dobrando o passo. 

Ouviu o marido falar ao camareiro no quarto mesmo de Julien. Felizmente, eles passaram para o das crianças. Ela levantou o colchão e enfiou a mão no enxergão com tal violência que esfolou os dedos. Mas, embora muito sensível a pequenas dores desse tipo, não teve a consciên​cia dessa, pois quase ao mesmo tempo sentiu a superfície lisa da caixa de papelão. Pegou-a e desapareceu. 
Apenas aliviada do temor de ser surpreendida pelo marido, o horror que lhe causava essa caixa chegou ao ponto de fazê-la decididamente sentir-se mal. 
Então Julien está apaixonado, e tenho aqui o retrato da mulher que ele ama! 
Sentada numa cadeira na antecâmara desse aposento, a sra. de Rênal estava exposta a todos os horrores do ciúme. Sua extrema ignorância foi-lhe ainda útil nesse momento, o espanto amenizava a dor. Julien apareceu, pegou a caixa, sem agradecer, sem dizer nada, e correu para seu quarto, onde fez fogo e queimou-a ali mesmo. Estava pálido, arrasado, exagerava a extensão do perigo que acabava de correr. 
O retrato de Napoleão, dizia-se, sacudindo a cabeça, achado escondido nos aposentos de um homem que faz profissão de tanto ódio ao usurpador! encontrado pelo sr. de Rênal, tão reacionário e tão irritado! E, para o cúmulo da imprudência, na cartolina branca atrás do retrato, linhas escritas por minha mão! e que não podem deixar dúvida alguma sobre o excesso de minha admiração! e cada um des​ses transportes de amor está datado! há um de anteontem! 
Toda a minha reputação perdida, destruída num momento! dizia-se Julien, vendo arder a caixa, e minha reputação é tudo o que tenho, não vivo senão por ela... e ainda assim, que vida, meu Deus! 
Uma hora depois, a fadiga e a piedade que sentia por si mesmo o dispunham ao enternecimento. Tornou a encontrar a sra. de Rênal e pegou-lhe a mão, beijando-a com mais sinceridade do que jamais havia feito. Ela corou de felicidade e, quase no mesmo instante, repeliu Julien com a cólera do ciúme. O orgulho de Julien, tão recentemente ferido, fez dele um tolo nesse momento. Viu na sra. de Rênal apenas uma mulher rica, deixou cair sua mão com desdém e afastou-se. Foi pas​sear no jardim, pensativo, e logo um sorriso amargo despontou em seus lábios. 

– Eu a passear aqui, tranquilo como um homem que dispõe de seu tempo! Não me ocupo com as crianças! Exponho-me às palavras humilhantes do sr. de Rênal, e ele terá razão. Correu ao quarto dos meninos. 

Os carinhos do mais jovem, de quem ele gostava muito, acalmaram um pouco sua dor pungente. 
Este ainda não me despreza, pensou Julien. Mas logo viu nessa diminuição de dor uma nova fraqueza. Essas crianças me acariciam como o fariam a um jovem cão de caça que lhes compraram ontem.


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ADVERTÊNCIA DO EDITOR
Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.


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Henri-Marie Beyle, mais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.

Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.

Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.

"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.

Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.

Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.

Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.

Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.

O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.

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