Livro I
A verdade, a áspera verdade.
Danton
Capítulo VII
AS AFINIDADES ELETIVAS
Só sabem tocar o coração machucando-o.
UM MODERNO
AS CRIANÇAS O adoravam, ele não gostava delas; seu pensamento estava noutra parte. O que aqueles moleques pudessem fazer jamais o impacientava. Frio, justo, impassível, e não obstante amado, porque sua chegada expulsara de certo modo o tédio da casa, foi um bom preceptor. Para ele, tudo o que sentia era ódio e horror em relação à alta sociedade na qual era admitido, em verdade apenas com reserva, o que explica talvez seu sentimento. Houve alguns jantares de cerimônia nos quais só a muito custo pôde conter o ódio por tudo o que o cercava. Num dia de São Luís, entre outros, enquanto o sr. Valenod sustentava a conversa na casa do sr. de Rênal, Julien esteve a ponto de trair-se; salvou-se indo para o jardim, a pretexto de ver as crianças. Quantos elogios à probidade!, exclamou; dir-se-ia que é a única virtude; no entanto, quanta consideração, quanto respeito servil por um homem que evidentemente duplicou e triplicou sua fortuna desde que administra o bem dos pobres! Eu apostaria que ele ganha mesmo com os fundos destinados às crianças enjeitadas, a esses pobres cuja miséria é ainda maior que a dos outros! Ah! Monstros, monstros! E eu, também, sou uma espécie de criança enjeitada, odiado por meu pai, por meus irmãos, por toda a minha família.
Alguns dias antes do São Luís, Julien, passeando sozinho e recitando seu breviário num pequeno bosque chamado Belvedere, e que domina o Passeio da Fidelidade, buscara em vão evitar seus dois irmãos, que vinham ao longe por um caminho solitário. Enciumados pelo belo traje preto, pelo aspecto extremamente asseado do irmão, pelo desprezo sincero que tinha por eles, esses operários grosseiros bateram nele a ponto de deixá-lo desfalecido e sangrando. A sra. de Rênal, que passeava com o sr. Valenod e o subprefeito, chegou por acaso ao pequeno bosque; viu Julien estendido no chão e acreditou-o morto. Sua comoção foi tamanha que despertou ciúmes no sr. Valenod.
Ele alarmava-se muito cedo. Julien achava a sra. de Rênal muito bela, mas a odiava por causa de sua beleza; fora o primeiro obstáculo que por pouco não lhe barrara o caminho à fortuna. Falava-lhe o menos possível, a fim de fazer esquecer o transporte que, no primeiro dia, o levara a beijar sua mão.
Elisa, a camareira da sra. de Rênal, logo apaixonara-se pelo jovem preceptor; falava dele com frequência à patroa. O amor da srta. Elisa valera a Julien o ódio de um dos criados. Um dia, ele ouviu esse homem dizer a Elisa: Você não quer mais falar comigo desde que esse preceptor ordinário entrou na casa. Julien não merecia essa injúria; mas, por instinto de rapaz bonito, redobrou os cuidados com sua pessoa. O ódio do sr. Valenod também aumentou. Ele disse publicamente que tanta elegância não convinha a um jovem padre. Julien vestia raramente a batina.
A sra. de Rênal observou que ele falava mais seguidamente que de costume com a srta. Elisa; ficou sabendo que essas conversas eram causadas pela penúria do pequeno guarda-roupa de Julien. Ele tinha tão poucas roupas de baixo que era obrigado a fazê-las lavar com frequência fora de casa, e era para esses pequenos serviços que Elisa lhe era útil. Essa extrema pobreza, que não suspeitava, tocou a sra. de Rênal; ela teve vontade de dar-lhe presentes, mas não ousou; essa resistência interior foi o primeiro sentimento penoso que Julien lhe causou. Até então, o nome de Julien e o sentimento de uma alegria pura e inteiramente intelectual eram sinônimos para ela. Atormentada pela ideia da pobreza de Julien, a sra. de Rênal falou ao marido para dar-lhe de presente roupas de baixo.
– Que tolice!, ele respondeu. Dar presentes a um homem com o qual estamos perfeitamente satisfeitos e que nos serve bem! Só faríamos isso se começasse a relaxar e fosse preciso estimular seu zelo.
A sra. de Rênal sentiu-se humilhada com essa maneira de ver; não a teria notado antes da chegada de Julien. Não podia ver o extremo asseio do vestuário, aliás muito simples, do jovem padre, sem pensar: pobre rapaz, como ele se arranja?
Aos poucos, sentiu piedade por tudo o que faltava a Julien, em vez de sentir-se chocada.
A sra. de Rênal era uma dessas mulheres da província que podemos perfeitamente tomar por tolas durante os quinze primeiros dias em que as vemos. Não tinha nenhuma experiência da vida e não se preocupava com o que dizia. Dotada de uma alma delicada e desdenhosa, o instinto de felicidade natural a todos os seres fazia que, na maior parte do tempo, ela não desse nenhuma atenção às ações dos personagens grosseiros no meio dos quais o acaso a lançara.
Teriam reparado em seu caráter e em sua vivacidade de espírito se tivesse recebido o mínimo de educação. Mas, em sua qualidade de herdeira, fora educada pelas religiosas adoradoras apaixonadas do Sagrado Coração de Jesus e animadas de um ódio violento aos franceses inimigos dos jesuítas. A sra. de Rênal tivera bastante bom senso para esquecer em seguida, como absurdo, tudo o que aprendera no convento, mas nada colocou no lugar, e acabou por nada saber. As lisonjas precoces de que fora objeto em sua qualidade de herdeira de uma grande fortuna, e um pendor decidido à devoção apaixonada, produziram nela uma maneira de viver completamente interior. Aparentando a condescendência mais perfeita e uma abnegação da vontade que os maridos de Verrières citavam como exemplo às suas mulheres, e que faziam o orgulho do sr. de Rênal, a conduta habitual de sua alma era, com efeito, o resultado da mais altiva disposição de espírito. Essa princesa, citada por seu orgulho, está infinitamente mais atenta ao que fazem os fidalgos a seu redor do que a esposa, aparentemente tão doce e modesta, ao que dizia ou fazia o marido. Até a chegada de Julien, ela realmente só dera atenção aos filhos. Suas pequenas doenças, suas dores, suas pequenas alegrias ocupavam toda a sensibilidade dessa alma que, na vida, não havia adorado senão a Deus, quando estava no Sacré-Coeur de Besançon.
Sem que dissesse a ninguém, um acesso de febre num dos filhos deixava-a quase no mesmo estado, como se a criança tivesse morrido. Uma risada grosseira, um dar de ombros, acompanhado de uma máxima trivial sobre a loucura das mulheres: assim haviam sido acolhidas as confidências desse tipo de aflição que a necessidade de desafogo a levara a fazer ao marido, nos primeiros anos do casamento. Tais gracejos, sobretudo quando relacionados às doenças dos filhos, eram como uma punhalada no coração da sra. de Rênal. Eis o que ela encontrou em lugar das bajulações servis e melosas do convento jesuítico onde passara a juventude. Sua educação fizera-se pelo sofrimento. Orgulhosa demais para falar desse tipo de desgosto, mesmo à sua amiga, sra. Derville, ela imaginou que todos os homens eram como seu marido, o sr. Valenod e o subprefeito Charcot de Maugiron. A grosseria e a mais brutal insensibilidade a tudo o que não era interesse por dinheiro, prerrogativa ou condecoração, o ódio cego a qualquer raciocínio que os contrariasse, pareceram-lhe coisas naturais a esse sexo, como usar botas e um chapéu de feltro.
Depois de longos anos, a sra. de Rênal ainda não se acostumara a essa gente de dinheiro no meio da qual precisava viver.
Daí o sucesso do pequeno aldeão Julien. Ela descobriu doces prazeres, realçados pelo encanto da novidade, na simpatia dessa alma nobre e orgulhosa. A sra. de Rênal em breve lhe perdoaria sua ignorância extrema, que era uma graça a mais, e a rudeza de suas maneiras, que conseguiu corrigir. Achou que valia a pena escutá-lo, mesmo quando falavam das coisas mais comuns, mesmo quando se tratava de um pobre cão atropelado, ao cruzar a rua, pela carroça de um aldeão apressado. O espetáculo desse sofrimento provocava o riso grosseiro do marido, ao passo que ela via contraírem-se as belas sobrancelhas negras e tão bem arqueadas de Julien. A generosidade, a nobreza de alma e a humanidade pareceram-lhe, aos poucos, existir apenas nesse jovem padre. Apenas por ele sentiu a simpatia e mesmo a admiração que essas virtudes suscitam nas almas bem-nascidas.
Em Paris, a posição de Julien em relação à sra. de Rênal logo teria se simplificado; mas em Paris o amor é filho dos romances. O jovem preceptor e sua tímida patroa teriam encontrado em três ou quatro romances, e até nas coplas do liceu, o esclarecimento da posição deles. Os romances ter-lhes-iam traçado o papel a desempenhar, mostrado o modelo a imitar; e esse modelo, cedo ou tarde, e embora sem nenhum prazer, quem sabe até resmungando, a vaidade teria forçado Julien a segui-lo.
Numa cidadezinha do Aveyron ou dos Pirineus, o menor incidente teria sido decisivo, em função do clima. Sob nossos céus mais sombrios, um moço pobre, e que só é ambicioso porque a delicadeza de seu coração torna necessários alguns dos prazeres que o dinheiro proporciona, vê todo dia uma mulher de trinta anos, sinceramente honesta, ocupada com os filhos, e que de maneira nenhuma tira dos romances exemplos de conduta. Tudo segue lentamente, tudo se faz aos poucos na província, há mais naturalidade.
Com frequência, ao pensar na pobreza do jovem preceptor, a sra. de Rênal enternecia-se até as lágrimas. Julien surpreendeu-a, um dia, a chorar de verdade.
– Oh! Aconteceu-lhe alguma desgraça, senhora?
– Não, meu amigo, ela respondeu; chame as crianças, vamos passear.
Ela tomou-lhe o braço e apoiou-se de uma maneira que pareceu singular a Julien. Era a primeira vez que o chamava de meu amigo.
Quase ao final do passeio, Julien notou que ela estava muito corada e diminuiu o passo.
– Terão lhe contado, ela disse sem olhar para ele, que sou a única herdeira de uma tia muito rica que mora em Besançon. Ela me cumula de presentes... meus filhos fazem progressos... tão surpreendentes que gostaria de pedir-lhe aceitar um pequeno presente como prova de meu reconhecimento. Trata-se apenas de alguns luíses para que compre roupas. Mas... acrescentou, ruborizando ainda mais, e parou de falar.
– O quê, senhora?, disse Julien.
– Seria inútil, ela prosseguiu, baixando a cabeça, falar disso a meu marido.
– Sou pequeno, senhora, mas não sou vil, disse Julien estacando, com os olhos brilhantes de cólera e empertigando-se todo, e a senhora não pensou muito nisso. Eu seria menos que um criado se decidisse ocultar ao sr. de Rênal qualquer coisa relacionada a meu dinheiro.
A sra. de Rênal estava aterrorizada.
– O sr. prefeito, continuou Julien, pagou-me cinco vezes 36 francos desde que moro em sua casa, estou pronto para mostrar meu livro de despesas ao sr. de Rênal e a quem quer que seja, mesmo ao sr. Valenod, que me odeia.
Depois dessa resposta, a sra. de Rênal ficara pálida e trêmula, e o passeio terminou sem que nenhum dos dois pudesse achar um pretexto para reatar o diálogo. O amor pela sra. de Rênal tornou-se cada vez mais impossível no coração orgulhoso de Julien; quanto a ela, respeitou-o, admirou-o; fora repreendida. Sob pretexto de reparar a humilhação involuntária que lhe causara, permitiu-se as atenções mais ternas. A novidade dessas maneiras fez, durante oito dias, a felicidade da sra. de Rênal. Seu efeito foi apaziguar em parte a cólera de Julien; ele estava longe de ver nisso algo que pudesse assemelhar-se a um gosto pessoal.
Eis como age essa gente rica, ele pensava, humilham e creem em seguida poder reparar tudo com alguns trejeitos!
O coração da sra. de Rênal era ainda muito puro, e ainda muito inocente, para que, apesar de suas resoluções a esse respeito, ela não contasse ao marido a oferta que fizera a Julien e a maneira como fora repelida.
– O quê! disse o sr. de Rênal vivamente ofendido, você pôde tolerar uma recusa da parte de um criado?
E, como a sra. de Rênal protestasse contra essa palavra:
– Eu falo, senhora, como o falecido príncipe de Condé, ao apresentar seus auxiliares à nova esposa: “Todos esses aí”, disse-lhe, “são meus criados”. Já li a você a passagem das Memórias de Besenval, essencial para as prerrogativas. Todos os que não são fidalgos que vivem em sua casa e recebem salário são seus criados. Vou dizer duas palavras a esse sr. Julien e dar-lhe cem francos.
– Ah, meu caro, disse a sra. de Rênal trêmula, que ao menos não seja diante dos criados!
– Sim, eles poderiam ficar enciumados e com razão, disse o marido, afastando-se e pensando no montante da soma.
A sra. de Rênal deixou-se cair numa cadeira, quase desfalecida de dor. Ele vai humilhar Julien, e por minha culpa! Sentiu horror do marido e cobriu o rosto com as mãos. Prometeu a si mesma jamais fazer confidências.
Quando tornou a ver Julien, estava muito trêmula, seu peito estava tão contraído que não conseguiu pronunciar a menor palavra. No seu embaraço, tomou as mãos dele e as apertou.
– Então, meu amigo, disse ela enfim, está contente com meu marido?
– Como não estaria?, respondeu Julien com um sorriso amargo; ele me deu cem francos.
A sra. de Rênal olhou para ele como que incerta.
– Dê-me o braço, disse ela enfim, com um acento de coragem que Julien não conhecia.
Ela ousou ir até a casa do livreiro de Verrières, apesar de sua terrível reputação de liberalismo. Lá escolheu, por dez luíses, livros que deu aos filhos. Mas esses livros eram os que ela sabia que Julien desejava. Exigiu que ali, na loja do livreiro, cada um dos filhos escrevesse seu nome nos livros que lhe cabiam. Enquanto a sra. de Rênal alegrava-se com a espécie de reparação que tinha a audácia de fazer a Julien, este surpreendia-se com a quantidade de livros que via na loja do livreiro. Nunca havia ousado entrar num lugar tão profano; seu coração palpitava. Longe de tentar adivinhar o que se passava no coração da sra. de Rênal, ele imaginava o meio que haveria, para um jovem estudante de teologia, de obter alguns daqueles livros. Finalmente, teve a ideia de que seria possível, com habilidade, convencer o sr. de Rênal de que era preciso dar como tema, a seus filhos, a história dos fidalgos célebres nascidos na província. Após um mês de esforços, sua ideia foi bem sucedida, a tal ponto que, algum tempo depois, Julien ousou propor, ao falar com o sr. de Rênal, uma ação bem mais penosa para o nobre prefeito; tratava-se de contribuir para a fortuna de um liberal, abrindo uma conta no livreiro. O sr. de Rênal admitia ser conveniente dar ao filho mais velho uma ideia geral de várias obras que ele ouviria mencionar em conversas, quando estivesse na Escola Militar; mas Julien via o sr. prefeito obstinar-se em não ir mais adiante. Suspeitava uma razão secreta, mas não podia adivinhá-la.
– Pensei, senhor, disse ele um dia, que seria muito inconveniente o nome de um bom fidalgo como um Rênal figurar no registro sujo do livreiro.
A fronte do sr. de Rênal desanuviou-se.
– Também seria bastante impróprio, continuou Julien num tom mais humilde, para um pobre estudante de teologia, se viessem um dia a descobrir que seu nome esteve no registro de um livreiro que aluga livros. Os liberais poderiam acusar-me de ter solicitado os livros mais infames; quem sabe até não chegariam a escrever após meu nome os títulos desses livros perversos.
Mas Julien afastava-se da pista. Ele via a fisionomia do prefeito retomar a expressão de embaraço e de irritação. Julien calou-se. Tenho-o na mão, pensou.
Alguns dias depois, o mais velho dos meninos interrogava Julien sobre um livro anunciado no La Quotidienne, em presença do sr. de Rênal:
– Para evitar qualquer motivo de triunfo ao partido jacobino, disse o jovem preceptor, e no entanto para dar-me os meios de responder ao sr. Adolphe, poderíamos fazer que o último de seus criados abrisse uma conta no livreiro.
– A ideia não é má, disse o sr. de Rênal, evidentemente muito alegre.
– Todavia, seria preciso especificar, observou Julien, com aquele ar grave e quase infeliz que cai tão bem em certas pessoas quando veem o sucesso há muito almejado de seus negócios, seria preciso especificar que o criado não poderá tomar nenhum romance. Uma vez na casa, esses livros perigosos poderiam corromper as criadas da senhora e o próprio criado.
– Está esquecendo os panfletos políticos, acrescentou o sr. de Rênal, com um ar altivo. Ele queria dissimular a admiração que lhe causava o sábio mezzo-termine inventado pelo preceptor de seus filhos.
A vida de Julien compunha-se assim de uma série de pequenas negociações; e seu sucesso ocupava-o bem mais do que o sentimento de preferência marcada que lhe bastaria ler no coração da sra. de Rênal.
A posição moral onde estivera em toda a sua vida renovava-se na casa do sr. prefeito de Verrières. Ali, como na serraria do pai, desprezava profundamente as pessoas com quem vivia, e era odiado por elas. Diariamente ele via nos relatos feitos pelo subprefeito, pelo sr. Valenod, pelos outros amigos da casa, a propósito de coisas que acabavam de se passar sob seus olhos, o quanto as ideias deles eram contrárias às suas. Uma ação que lhe parecia admirável era precisamente a que atraía a reprovação das pessoas que o cercavam. Sua réplica interior era sempre: Que monstros ou que tolos! O engraçado é que, com todo esse orgulho, com frequência ele não compreendia absolutamente nada do que estavam falando.
Em sua vida, ele só havia falado sinceramente com o velho cirurgião-mor. As poucas ideias que tinha eram relativas às campanhas de Bonaparte na Itália ou à cirurgia. Sua jovem coragem comprazia-se com o relato detalhado das operações mais dolorosas; ele dizia a si mesmo: Eu não teria pestanejado.
A primeira vez que a sra. de Rênal tentou com ele uma conversa alheia à educação das crianças, ele pôs-se a falar de operações cirúrgicas; ela empalideceu e pediu-lhe que parasse.
Julien nada sabia além disso. Assim, convivendo com a sra. de Rênal, um silêncio singular estabelecia-se entre os dois assim que estavam a sós. Na sala, qualquer que fosse a humildade de sua atitude, ela percebia nos olhos dele um ar de superioridade intelectual em relação a tudo que partia dela. Ao ficar por um instante a sós com ele, via-o visivelmente embaraçado. Ela inquietava-se com isso, pois seu instinto de mulher fazia-a compreender que esse embaraço não era de modo algum afetuoso.
De acordo com não sei que ideia ouvida em conversas da boa sociedade, segundo dissera o velho cirurgião-mor, de que não se devia ficar em silêncio num lugar onde houvesse uma mulher, Julien sentia-se humilhado, como se esse silêncio fosse por sua culpa particular. Essa sensação era cem vezes mais penosa no encontro a dois. Sua imaginação, repleta das noções mais exageradas, mais espanholas, sobre o que um homem deve dizer quando está a sós com uma mulher, só lhe oferecia, em sua perturbação, ideias inadmissíveis. Tinha a alma nas nuvens, e no entanto não podia sair do silêncio mais humilhante. Assim, seu ar severo, durante os longos passeios com a sra. de Rênal e as crianças, era aumentado pelos sofrimentos mais cruéis. Desprezava-se horrivelmente. Se, por infelicidade, forçava-se a falar, sucedia-lhe dizer as coisas mais ridículas. Para o cúmulo da miséria, ele via e exagerava o absurdo delas; mas o que não via era a expressão de seus olhos; eram tão belos e anunciavam uma alma tão ardente que, como os bons atores, davam às vezes um sentido encantador ao que não o tinha. A sra. de Rênal observou que, a sós com ela, ele só chegava a dizer alguma coisa de interessante quando, distraído por um acontecimento imprevisto, não pensava em dirigir-lhe uma lisonja. Como os amigos da casa não lhe presenteavam com ideias novas e brilhantes, ela deliciava-se com os rasgos de espírito de Julien.
Desde a queda de Napoleão, toda aparência de galanteria está severamente banida dos costumes da província. Teme-se ser destituído. Os velhacos buscam um apoio na Congregação; e a hipocrisia fez os maiores progressos mesmo nas classes liberais. O tédio aumenta. Não resta outro prazer senão a leitura e a agricultura.
A sra. de Rênal, rica herdeira de uma tia devota, casada aos dezesseis anos com um fidalgo, não tinha em sua vida experimentado nem visto nada que se assemelhasse um pouquinho só ao amor. Praticamente apenas seu confessor, o bom cura Chélan, lhe falara do amor, a propósito do assédio do sr. Valenod, e fizera dele uma imagem tão desagradável que essa palavra representava-lhe apenas a ideia da libertinagem mais abjeta. Ela considerava como uma exceção, ou mesmo como algo inteiramente antinatural, o amor tal como o encontrara nos poucos romances que o acaso pusera sob seus olhos. Graças a essa ignorância, a sra. de Rênal, perfeitamente feliz, ocupada o tempo todo com Julien, estava longe de fazer-se a menor censura.
Sem que dissesse a ninguém, um acesso de febre num dos filhos deixava-a quase no mesmo estado, como se a criança tivesse morrido. Uma risada grosseira, um dar de ombros, acompanhado de uma máxima trivial sobre a loucura das mulheres: assim haviam sido acolhidas as confidências desse tipo de aflição que a necessidade de desafogo a levara a fazer ao marido, nos primeiros anos do casamento. Tais gracejos, sobretudo quando relacionados às doenças dos filhos, eram como uma punhalada no coração da sra. de Rênal. Eis o que ela encontrou em lugar das bajulações servis e melosas do convento jesuítico onde passara a juventude. Sua educação fizera-se pelo sofrimento. Orgulhosa demais para falar desse tipo de desgosto, mesmo à sua amiga, sra. Derville, ela imaginou que todos os homens eram como seu marido, o sr. Valenod e o subprefeito Charcot de Maugiron. A grosseria e a mais brutal insensibilidade a tudo o que não era interesse por dinheiro, prerrogativa ou condecoração, o ódio cego a qualquer raciocínio que os contrariasse, pareceram-lhe coisas naturais a esse sexo, como usar botas e um chapéu de feltro.
Depois de longos anos, a sra. de Rênal ainda não se acostumara a essa gente de dinheiro no meio da qual precisava viver.
Daí o sucesso do pequeno aldeão Julien. Ela descobriu doces prazeres, realçados pelo encanto da novidade, na simpatia dessa alma nobre e orgulhosa. A sra. de Rênal em breve lhe perdoaria sua ignorância extrema, que era uma graça a mais, e a rudeza de suas maneiras, que conseguiu corrigir. Achou que valia a pena escutá-lo, mesmo quando falavam das coisas mais comuns, mesmo quando se tratava de um pobre cão atropelado, ao cruzar a rua, pela carroça de um aldeão apressado. O espetáculo desse sofrimento provocava o riso grosseiro do marido, ao passo que ela via contraírem-se as belas sobrancelhas negras e tão bem arqueadas de Julien. A generosidade, a nobreza de alma e a humanidade pareceram-lhe, aos poucos, existir apenas nesse jovem padre. Apenas por ele sentiu a simpatia e mesmo a admiração que essas virtudes suscitam nas almas bem-nascidas.
Em Paris, a posição de Julien em relação à sra. de Rênal logo teria se simplificado; mas em Paris o amor é filho dos romances. O jovem preceptor e sua tímida patroa teriam encontrado em três ou quatro romances, e até nas coplas do liceu, o esclarecimento da posição deles. Os romances ter-lhes-iam traçado o papel a desempenhar, mostrado o modelo a imitar; e esse modelo, cedo ou tarde, e embora sem nenhum prazer, quem sabe até resmungando, a vaidade teria forçado Julien a segui-lo.
Numa cidadezinha do Aveyron ou dos Pirineus, o menor incidente teria sido decisivo, em função do clima. Sob nossos céus mais sombrios, um moço pobre, e que só é ambicioso porque a delicadeza de seu coração torna necessários alguns dos prazeres que o dinheiro proporciona, vê todo dia uma mulher de trinta anos, sinceramente honesta, ocupada com os filhos, e que de maneira nenhuma tira dos romances exemplos de conduta. Tudo segue lentamente, tudo se faz aos poucos na província, há mais naturalidade.
Com frequência, ao pensar na pobreza do jovem preceptor, a sra. de Rênal enternecia-se até as lágrimas. Julien surpreendeu-a, um dia, a chorar de verdade.
– Oh! Aconteceu-lhe alguma desgraça, senhora?
– Não, meu amigo, ela respondeu; chame as crianças, vamos passear.
Ela tomou-lhe o braço e apoiou-se de uma maneira que pareceu singular a Julien. Era a primeira vez que o chamava de meu amigo.
Quase ao final do passeio, Julien notou que ela estava muito corada e diminuiu o passo.
– Terão lhe contado, ela disse sem olhar para ele, que sou a única herdeira de uma tia muito rica que mora em Besançon. Ela me cumula de presentes... meus filhos fazem progressos... tão surpreendentes que gostaria de pedir-lhe aceitar um pequeno presente como prova de meu reconhecimento. Trata-se apenas de alguns luíses para que compre roupas. Mas... acrescentou, ruborizando ainda mais, e parou de falar.
– O quê, senhora?, disse Julien.
– Seria inútil, ela prosseguiu, baixando a cabeça, falar disso a meu marido.
– Sou pequeno, senhora, mas não sou vil, disse Julien estacando, com os olhos brilhantes de cólera e empertigando-se todo, e a senhora não pensou muito nisso. Eu seria menos que um criado se decidisse ocultar ao sr. de Rênal qualquer coisa relacionada a meu dinheiro.
A sra. de Rênal estava aterrorizada.
– O sr. prefeito, continuou Julien, pagou-me cinco vezes 36 francos desde que moro em sua casa, estou pronto para mostrar meu livro de despesas ao sr. de Rênal e a quem quer que seja, mesmo ao sr. Valenod, que me odeia.
Depois dessa resposta, a sra. de Rênal ficara pálida e trêmula, e o passeio terminou sem que nenhum dos dois pudesse achar um pretexto para reatar o diálogo. O amor pela sra. de Rênal tornou-se cada vez mais impossível no coração orgulhoso de Julien; quanto a ela, respeitou-o, admirou-o; fora repreendida. Sob pretexto de reparar a humilhação involuntária que lhe causara, permitiu-se as atenções mais ternas. A novidade dessas maneiras fez, durante oito dias, a felicidade da sra. de Rênal. Seu efeito foi apaziguar em parte a cólera de Julien; ele estava longe de ver nisso algo que pudesse assemelhar-se a um gosto pessoal.
Eis como age essa gente rica, ele pensava, humilham e creem em seguida poder reparar tudo com alguns trejeitos!
O coração da sra. de Rênal era ainda muito puro, e ainda muito inocente, para que, apesar de suas resoluções a esse respeito, ela não contasse ao marido a oferta que fizera a Julien e a maneira como fora repelida.
– O quê! disse o sr. de Rênal vivamente ofendido, você pôde tolerar uma recusa da parte de um criado?
E, como a sra. de Rênal protestasse contra essa palavra:
– Eu falo, senhora, como o falecido príncipe de Condé, ao apresentar seus auxiliares à nova esposa: “Todos esses aí”, disse-lhe, “são meus criados”. Já li a você a passagem das Memórias de Besenval, essencial para as prerrogativas. Todos os que não são fidalgos que vivem em sua casa e recebem salário são seus criados. Vou dizer duas palavras a esse sr. Julien e dar-lhe cem francos.
– Ah, meu caro, disse a sra. de Rênal trêmula, que ao menos não seja diante dos criados!
– Sim, eles poderiam ficar enciumados e com razão, disse o marido, afastando-se e pensando no montante da soma.
A sra. de Rênal deixou-se cair numa cadeira, quase desfalecida de dor. Ele vai humilhar Julien, e por minha culpa! Sentiu horror do marido e cobriu o rosto com as mãos. Prometeu a si mesma jamais fazer confidências.
Quando tornou a ver Julien, estava muito trêmula, seu peito estava tão contraído que não conseguiu pronunciar a menor palavra. No seu embaraço, tomou as mãos dele e as apertou.
– Então, meu amigo, disse ela enfim, está contente com meu marido?
– Como não estaria?, respondeu Julien com um sorriso amargo; ele me deu cem francos.
A sra. de Rênal olhou para ele como que incerta.
– Dê-me o braço, disse ela enfim, com um acento de coragem que Julien não conhecia.
Ela ousou ir até a casa do livreiro de Verrières, apesar de sua terrível reputação de liberalismo. Lá escolheu, por dez luíses, livros que deu aos filhos. Mas esses livros eram os que ela sabia que Julien desejava. Exigiu que ali, na loja do livreiro, cada um dos filhos escrevesse seu nome nos livros que lhe cabiam. Enquanto a sra. de Rênal alegrava-se com a espécie de reparação que tinha a audácia de fazer a Julien, este surpreendia-se com a quantidade de livros que via na loja do livreiro. Nunca havia ousado entrar num lugar tão profano; seu coração palpitava. Longe de tentar adivinhar o que se passava no coração da sra. de Rênal, ele imaginava o meio que haveria, para um jovem estudante de teologia, de obter alguns daqueles livros. Finalmente, teve a ideia de que seria possível, com habilidade, convencer o sr. de Rênal de que era preciso dar como tema, a seus filhos, a história dos fidalgos célebres nascidos na província. Após um mês de esforços, sua ideia foi bem sucedida, a tal ponto que, algum tempo depois, Julien ousou propor, ao falar com o sr. de Rênal, uma ação bem mais penosa para o nobre prefeito; tratava-se de contribuir para a fortuna de um liberal, abrindo uma conta no livreiro. O sr. de Rênal admitia ser conveniente dar ao filho mais velho uma ideia geral de várias obras que ele ouviria mencionar em conversas, quando estivesse na Escola Militar; mas Julien via o sr. prefeito obstinar-se em não ir mais adiante. Suspeitava uma razão secreta, mas não podia adivinhá-la.
– Pensei, senhor, disse ele um dia, que seria muito inconveniente o nome de um bom fidalgo como um Rênal figurar no registro sujo do livreiro.
A fronte do sr. de Rênal desanuviou-se.
– Também seria bastante impróprio, continuou Julien num tom mais humilde, para um pobre estudante de teologia, se viessem um dia a descobrir que seu nome esteve no registro de um livreiro que aluga livros. Os liberais poderiam acusar-me de ter solicitado os livros mais infames; quem sabe até não chegariam a escrever após meu nome os títulos desses livros perversos.
Mas Julien afastava-se da pista. Ele via a fisionomia do prefeito retomar a expressão de embaraço e de irritação. Julien calou-se. Tenho-o na mão, pensou.
Alguns dias depois, o mais velho dos meninos interrogava Julien sobre um livro anunciado no La Quotidienne, em presença do sr. de Rênal:
– Para evitar qualquer motivo de triunfo ao partido jacobino, disse o jovem preceptor, e no entanto para dar-me os meios de responder ao sr. Adolphe, poderíamos fazer que o último de seus criados abrisse uma conta no livreiro.
– A ideia não é má, disse o sr. de Rênal, evidentemente muito alegre.
– Todavia, seria preciso especificar, observou Julien, com aquele ar grave e quase infeliz que cai tão bem em certas pessoas quando veem o sucesso há muito almejado de seus negócios, seria preciso especificar que o criado não poderá tomar nenhum romance. Uma vez na casa, esses livros perigosos poderiam corromper as criadas da senhora e o próprio criado.
– Está esquecendo os panfletos políticos, acrescentou o sr. de Rênal, com um ar altivo. Ele queria dissimular a admiração que lhe causava o sábio mezzo-termine inventado pelo preceptor de seus filhos.
A vida de Julien compunha-se assim de uma série de pequenas negociações; e seu sucesso ocupava-o bem mais do que o sentimento de preferência marcada que lhe bastaria ler no coração da sra. de Rênal.
A posição moral onde estivera em toda a sua vida renovava-se na casa do sr. prefeito de Verrières. Ali, como na serraria do pai, desprezava profundamente as pessoas com quem vivia, e era odiado por elas. Diariamente ele via nos relatos feitos pelo subprefeito, pelo sr. Valenod, pelos outros amigos da casa, a propósito de coisas que acabavam de se passar sob seus olhos, o quanto as ideias deles eram contrárias às suas. Uma ação que lhe parecia admirável era precisamente a que atraía a reprovação das pessoas que o cercavam. Sua réplica interior era sempre: Que monstros ou que tolos! O engraçado é que, com todo esse orgulho, com frequência ele não compreendia absolutamente nada do que estavam falando.
Em sua vida, ele só havia falado sinceramente com o velho cirurgião-mor. As poucas ideias que tinha eram relativas às campanhas de Bonaparte na Itália ou à cirurgia. Sua jovem coragem comprazia-se com o relato detalhado das operações mais dolorosas; ele dizia a si mesmo: Eu não teria pestanejado.
A primeira vez que a sra. de Rênal tentou com ele uma conversa alheia à educação das crianças, ele pôs-se a falar de operações cirúrgicas; ela empalideceu e pediu-lhe que parasse.
Julien nada sabia além disso. Assim, convivendo com a sra. de Rênal, um silêncio singular estabelecia-se entre os dois assim que estavam a sós. Na sala, qualquer que fosse a humildade de sua atitude, ela percebia nos olhos dele um ar de superioridade intelectual em relação a tudo que partia dela. Ao ficar por um instante a sós com ele, via-o visivelmente embaraçado. Ela inquietava-se com isso, pois seu instinto de mulher fazia-a compreender que esse embaraço não era de modo algum afetuoso.
De acordo com não sei que ideia ouvida em conversas da boa sociedade, segundo dissera o velho cirurgião-mor, de que não se devia ficar em silêncio num lugar onde houvesse uma mulher, Julien sentia-se humilhado, como se esse silêncio fosse por sua culpa particular. Essa sensação era cem vezes mais penosa no encontro a dois. Sua imaginação, repleta das noções mais exageradas, mais espanholas, sobre o que um homem deve dizer quando está a sós com uma mulher, só lhe oferecia, em sua perturbação, ideias inadmissíveis. Tinha a alma nas nuvens, e no entanto não podia sair do silêncio mais humilhante. Assim, seu ar severo, durante os longos passeios com a sra. de Rênal e as crianças, era aumentado pelos sofrimentos mais cruéis. Desprezava-se horrivelmente. Se, por infelicidade, forçava-se a falar, sucedia-lhe dizer as coisas mais ridículas. Para o cúmulo da miséria, ele via e exagerava o absurdo delas; mas o que não via era a expressão de seus olhos; eram tão belos e anunciavam uma alma tão ardente que, como os bons atores, davam às vezes um sentido encantador ao que não o tinha. A sra. de Rênal observou que, a sós com ela, ele só chegava a dizer alguma coisa de interessante quando, distraído por um acontecimento imprevisto, não pensava em dirigir-lhe uma lisonja. Como os amigos da casa não lhe presenteavam com ideias novas e brilhantes, ela deliciava-se com os rasgos de espírito de Julien.
Desde a queda de Napoleão, toda aparência de galanteria está severamente banida dos costumes da província. Teme-se ser destituído. Os velhacos buscam um apoio na Congregação; e a hipocrisia fez os maiores progressos mesmo nas classes liberais. O tédio aumenta. Não resta outro prazer senão a leitura e a agricultura.
A sra. de Rênal, rica herdeira de uma tia devota, casada aos dezesseis anos com um fidalgo, não tinha em sua vida experimentado nem visto nada que se assemelhasse um pouquinho só ao amor. Praticamente apenas seu confessor, o bom cura Chélan, lhe falara do amor, a propósito do assédio do sr. Valenod, e fizera dele uma imagem tão desagradável que essa palavra representava-lhe apenas a ideia da libertinagem mais abjeta. Ela considerava como uma exceção, ou mesmo como algo inteiramente antinatural, o amor tal como o encontrara nos poucos romances que o acaso pusera sob seus olhos. Graças a essa ignorância, a sra. de Rênal, perfeitamente feliz, ocupada o tempo todo com Julien, estava longe de fazer-se a menor censura.
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ADVERTÊNCIA DO EDITOR
Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.
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Henri-Marie Beyle, mais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.
Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.
Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.
"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.
Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.
Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.
Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.
Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.
O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.
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