sexta-feira, 18 de maio de 2018

Stendhal - O Vermelho e o Negro: O Constrangimento (VI)


Livro I

A verdade, a áspera verdade. 
Danton 


Capítulo VI

O CONSTRANGIMENTO


Non so più cosa son,
Cosa facio.
MOZART (Fígaro) 






COM A VIVACIDADE e a graça que lhe eram naturais quando estava longe dos olhares dos homens, a sra. de Rênal saía pela porta e janela da sala que dava para o jardim, quando avistou junto à porta de entrada a figura de um jovem aldeão quase ainda criança, extremamente pálido e com lágrimas nos olhos. Vestia uma camisa branca e trazia sob o braço uma jaqueta muito limpa, de cor violeta.

A tez desse pequeno aldeão era tão branca, seus olhos tão doces, que o espírito um pouco romanesco da sra. de Rênal chegou a pensar que podia ser uma moça disfarçada, que vinha pedir algum favor ao prefeito. Compadeceu-se dessa pobre criatura, parada à porta de entrada, e que evidentemente não ousava levantar a mão até a campainha. A sra. de Rênal aproximou-se, distraída por um instante do amargo desgosto que lhe causava a chegada do preceptor. Julien, voltado para a porta, não a viu aproximar-se. Ele estremeceu quando uma voz suave disse muito perto de seu ouvido:

– O que quer aqui, meu menino?

Julien virou-se vivamente e, impressionado com o olhar cheio de graça da sra. de Rênal, esqueceu uma parte de sua timidez. Em seguida, espantado com sua beleza, esqueceu tudo, mesmo o que vinha fazer. A sra. de Rênal repetiu a pergunta.

– Venho para ser preceptor, senhora, disse ele por fim, envergonhado com as lágrimas que enxugava como podia.

A sra. de Rênal ficou calada. Estavam muito perto um do outro a se olharem; Julien jamais tinha visto uma criatura tão bem-vestida e, sobretudo, uma mulher com uma pele tão deslumbrante falar-lhe com uma voz suave. A sra. de Rênal olhava as lágrimas que haviam se detido nas faces a princípio pálidas e agora coradas do jovem aldeão. Em seguida pôs-se a rir, com a alegria doida de uma rapariga; zombava dela mesma e não podia conceber toda a sua felicidade. Com que então era esse o preceptor que havia imaginado como um padre sujo e malvestido, que viria repreender e castigar seus filhos!

– Então o senhor, disse ela finalmente, sabe latim?

O termo “senhor” surpreendeu tanto Julien que ele refletiu por um instante.

– Sim, senhora, disse timidamente.

A sra. de Rênal estava tão feliz que ousou dizer a Julien:

– Não vai repreender demais essas pobres crianças, vai?

– Eu, repreendê-las, disse Julien espantado, e por quê?

– O senhor me promete, ela acrescentou, após um pequeno silêncio e com uma voz cuja emoção aumentava a cada instante, que será bom para eles?

Ouvir-se chamar novamente de senhor, muito a sério e por uma dama tão bem-vestida, estava acima de todas as previsões de Julien. Em todas as fantasias de sua juventude, dissera-se que uma dama de verdade só se dignaria falar-lhe quando ele tivesse um belo uniforme. A sra. de Rênal, por seu lado, estava completamente enganada pela beleza da tez, dos grandes olhos negros de Julien e de seus cabelos, mais crespos que de costume, pois, para refrescar-se, ele banhara a cabeça na fonte pública. Para a sua grande alegria, ela descobria a timidez de uma moça nesse fatal preceptor, cuja dureza e a rispidez tanto temera para os filhos. Para a alma pacífica da sra. de Rênal, o contraste de seus temores e do que via foi um grande acontecimento. Finalmente, refez-se da surpresa. Ficou espantada de ver-se assim à porta de sua casa com esse jovem em mangas de camisa e tão perto dele.

– Entremos, senhor, ela falou, bastante constran​gida.

Nunca em sua vida uma sensação puramente agradável tocara tão profundamente a sra. de Rênal, nunca uma aparição tão graciosa sucedera a temores mais inquietantes. Assim seus filhos, tão bem cuidados por ela, não cairiam nas mãos de um padre sujo e rabugento. Logo que entrou no vestíbulo, voltou-se para Julien, que a seguia timidamente. Seu ar de espanto, à visão de uma casa tão bela, era uma graça a mais aos olhos da sra. de Rênal. Ela não podia crer no que via, sobretudo achava que o preceptor devia ter um traje preto.

– Mas é verdade mesmo? disse, detendo-se ainda e temendo mortalmente enganar-se, tanto sua crença a fazia feliz. O senhor sabe latim?

Essas palavras chocaram o orgulho de Julien e dissiparam o encanto no qual vivia há um quarto de hora.

– Sim, senhora, respondeu, procurando falar com frieza; sei latim tanto quanto o sr. cura, e às vezes até ele tem a bondade de dizer que sei mais do que ele.

A sra. de Rênal notou certa maldade em Julien; ele detivera-se a dois passos dela. Ela aproximou-se e disse-lhe a meia voz:

– Nos primeiros dias, espero que não castigue meus filhos, mesmo se não souberem suas lições. Esse tom suave e quase suplicante de uma dama tão bela fez que Julien prontamente esquecesse o que devia à sua reputação de latinista. O rosto da sra. de Rênal estava muito perto, ele sentiu o perfume das roupas de verão de uma mulher, algo espantoso para um pobre aldeão. Julien corou intensamente, e disse com um suspiro e uma voz desfalecida:

– Não tema, senhora, hei de obedecer-lhe em tudo.

Foi apenas nesse momento, quando sua inquietação com os filhos dissipou-se por completo, que a sra. de Rênal ficou impressionada com a beleza de Julien. A forma quase feminina de seus traços e seu jeito acanhado não pareceram ridículos a uma mulher extremamente tímida ela própria. O aspecto masculino que comumente consideram necessário à beleza de um homem ter-lhe-ia amedrontado.

– Qual a sua idade, senhor?, disse ela a Julien.

– Quase dezenove anos.

– Meu filho mais velho tem onze anos, retomou a sra. de Rênal, totalmente tranquilizada; ele será quase um companheiro seu, e o senhor o chamará à razão. Certa vez o pai quis bater nele; o menino ficou doente durante uma semana, e foi só um tapinha.

Que diferença em relação a mim, pensou Julien. Ainda ontem meu pai me bateu. Como os ricos são felizes!

A sra. de Rênal já começava a perceber as menores nuances do que se passava na alma do preceptor; interpretou esse movimento de tristeza como timidez e quis encorajá-lo.

– Qual é o seu nome, senhor?, perguntou, com um acento e uma graça cujo encanto Julien sentiu, sem poder explicá-lo a si mesmo.

– Chamo-me Julien Sorel, senhora; tremo ao entrar pela primeira vez numa casa estranha, necessito sua proteção e que a senhora me perdoe muitas coisas nos primeiros dias. Nunca estive no colégio, eu era muito pobre; nunca falei com outros homens a não ser meu primo, o cirurgião-mor, membro da Legião de Honra, e o cura Chélan. Este lhe dará boas informações a meu respeito. Meus irmãos sempre me bateram, não acredite neles se falarem mal de mim, perdoe minhas faltas, senhora, jamais serão mal-intencionadas.

Julien confortava-se durante esse longo discurso, enquanto examinava a sra. de Rênal. Tal é o efeito da gra​ça perfeita, quando é natural ao caráter e sobretudo quando a pessoa que ela ornamenta não imagina possuí-la. Julien, que se julgava conhecedor da beleza feminina, teria jurado nesse instante que ela não tinha mais que vinte anos. Teve na hora a ideia ousada de beijar-lhe a mão, mas logo amedrontou-se com a ideia; um instante depois disse a si mesmo: Seria covardia minha não executar uma ação que pode ser-me útil, e diminuir o desprezo que essa bela dama provavelmente sente por um pobre operário recém-arrancado da serraria. Talvez Julien se sentisse um pouco encorajado pelas palavras “rapaz bonito” que, nos últimos seis meses, ouvia repetir aos domingos por algumas moças. Durante esses debates interio​res, a sra. de Rênal dava-lhe duas ou três instruções sobre a maneira de tratar as crianças. A violência que Julien se impunha fez que empalidecesse de novo; ele disse, com um ar constrangido:

– Jamais baterei em seus filhos, senhora; juro por Deus.

E, ao dizer essas palavras, ousou tomar a mão da sra. de Rênal e levá-la aos lábios. Ela espantou-se com esse gesto e, refletindo, ficou chocada. Como fazia muito calor, seu braço estava nu sob o xale, e o movimento de Julien, levando a mão a seus lábios, o deixara inteiramente descoberto. Ao cabo de alguns instantes, ela repreendeu-se a si mesma, pareceu-lhe que não havia se indignado bastante rapidamente.

O sr. de Rênal, que ouvira vozes, saiu de seu gabinete; com o mesmo ar majestoso e paternal que assumia quando fazia casamentos na Prefeitura, disse a Julien:

– É essencial que eu lhe fale antes que as crianças o vejam.

Fez Julien entrar numa peça e reteve a esposa, que queria deixá-los a sós. Fechada a porta, o sr. de Rênal sentou-se com gravidade.

– O sr. cura disse-me que o senhor é um bom sujeito; todos aqui o tratarão com honra e, se eu ficar contente, o ajudarei posteriormente a melhorar sua situação. Quero que não volte mais a ver parentes nem amigos; as maneiras deles não convêm a meus filhos. Aqui estão 36 francos pelo primeiro mês; mas exijo sua palavra de que não dará um vintém desse dinheiro a seu pai.

O sr. de Rênal estava irritado com o velho aldeão que, nesse assunto, fora mais astuto que ele.

– E agora, senhor – pois por ordens minhas todos aqui vão chamá-lo de senhor, e sentirá a vantagem de entrar numa casa de pessoas distintas, agora, senhor, não é conveniente que as crianças o vejam nesses trajes. Os criados o viram? perguntou o sr. de Rênal à esposa.

– Não, meu caro, ela respondeu com um ar profundamente pensativo.

– Melhor assim. Vista isto, disse ele ao jovem, surpreso, entregando-lhe uma sobrecasaca. Vamos até a casa do sr. Durand, o vendedor de tecidos.

Mais de uma hora depois, quando o sr. de Rênal retornou com o novo preceptor todo vestido de preto, ele reencontrou a mulher sentada no mesmo lugar. Ela sentiu-se tranquilizada com a presença de Julien, ao examiná-lo esquecia que tivera medo. Julien não pensava nela; apesar de toda a sua desconfiança do destino e dos homens, sua alma naquele momento era apenas a de uma criança, parecia-lhe ter vivido anos desde o instante em que, três horas atrás, estava trêmulo na igreja. Ele notou o ar severo da sra. de Rênal, compreendeu que ela estava furiosa por ele ter ousado beijar-lhe a mão. Mas o sentimento de orgulho que lhe dava o contato de roupas tão diferentes das que costumava usar punha-o de tal maneira fora de si, e era tamanha a vontade de esconder sua alegria, que todos esses movimentos tinham qualquer coisa de brusco e de enlouquecido. A sra. de Rênal o contemplava com olhos espantados.

– Gravidade, senhor, disse-lhe o sr. de Rênal, se quiser ser respeitado por meus filhos e por minha gente.

– Senhor, respondeu Julien, sinto-me constrangido nesses novos hábitos; eu, um pobre aldeão, nunca vesti senão jaquetas; se permite, irei encerrar-me em meu quarto.

– Que te parece essa nova aquisição? disse o sr. de Rênal à esposa.

Por um movimento quase instintivo, e do qual certamente não se deu conta, a sra. de Rênal disfarçou a verdade ao marido.

– Não estou tão encantada quanto você com esse pequeno aldeão, suas atenções farão dele um impertinente e terá que demiti-lo antes de um mês.

– Pois bem, o demitiremos, isso poderá custar-me uma centena de francos, e Verrières estará acostumada a ver um preceptor dos filhos do sr. de Rênal. Esse objetivo não teria sido alcançado se eu deixasse Julien com as roupas ridículas de um operário. Se o despedir, ficarei, é claro, com o traje preto completo que acabo de encomendar. Restar-lhe-á somente esse que encontrei pronto no alfaia​te, e com que o vesti.

A hora que Julien passou em seu quarto pareceu um instante para a sra. de Rênal. As crianças, às quais ha​viam anunciado o novo preceptor, importunavam a mãe com perguntas. Enfim Julien apareceu. Era um outro homem. Seria pouco dizer que se mostrava grave: era a gravidade em pessoa. Foi apresentado às crianças e falou-lhes de um modo que surpreendeu o próprio sr. de Rênal.

– Estou aqui, senhores, disse ele ao concluir sua alocução, para vos ensinar latim. Sabeis o que é recitar uma lição. Eis aqui a Bíblia sagrada, e mostrou-lhes um pequeno volume de capa preta. Trata-se particularmente da história de Nosso Senhor Jesus Cristo, é a parte chamada Novo Testamento. Farei com frequência que recitem lições, façam-me recitar a minha.

Adolphe, o mais velho dos meninos, pegou o livro.

– Abra ao acaso, continuou Julien, e diga-me a primeira palavra de um parágrafo. Recitarei de cor o livro sagrado, regra da conduta de todos nós, até me mandarem parar.

Adolphe abriu o livro, leu uma palavra e Julien recitou toda a página com a mesma facilidade com que falaria o francês. O sr. de Rênal olhava a esposa com um ar de triunfo. Os meninos, vendo o espanto dos pais, arregalavam os olhos. Um criado veio até a porta da sala, Julien continuou a falar latim. O criado ficou inicialmente imóvel e em seguida desapareceu. Logo a camareira da senhora e a cozinheira chegaram também à porta; Adolphe já havia aberto o livro em oito locais e Julien continuava a recitar com a mesma facilidade.

– Ah! Meu Deus! Que lindo padrezinho, disse em voz alta a cozinheira, mulher muito devota.

O amor-próprio do sr. de Rênal estava inquieto; longe de pensar em examinar o preceptor, estava ocupado em buscar na memória algumas palavras latinas; enfim, pôde dizer um verso de Horácio. Como Julien sabia do latim apenas a Bíblia, respondeu franzindo a sobrancelha:

– O santo ministério ao qual me destino proíbe-me ler um poeta tão profano.

O sr. de Rênal citou um grande número de supostos versos de Horácio. Explicou aos filhos quem era Horácio; mas as crianças, tomadas de admiração, não davam muita atenção ao que ele dizia. Elas olhavam para Julien.

Como os criados mantinham-se à porta, Julien acreditou dever prolongar a prova:

– Convém, disse ele ao mais jovem dos meninos, que o sr. Stanislas-Xavier me indique também uma passagem do livro santo.

O pequeno Stanislas, muito orgulhoso, leu como pôde a primeira palavra de um parágrafo, e Julien disse a página inteira. Para que nada faltasse ao triunfo do sr. de Rênal, enquanto Julian recitava entraram o sr. Valenod, o proprietário dos belos cavalos normandos, e o sr. Charcot de Maugiron, subprefeito do distrito. Essa cena valeu a Julien o título de Senhor, título que os próprios criados não lhe recusaram.

À noite, Verrières inteira afluiu à casa do sr. de Rênal para ver a maravilha. Julien respondia a todos com um ar grave que mantinha a distância. Sua glória estendeu-se tão rapidamente pela cidade que, poucos dias depois, o sr. de Rênal, temendo que o arrebatassem dele, propôs-lhe um contrato de dois anos.

– Não, senhor, respondeu friamente Julien, se quiser mandar-me embora serei obrigado a sair. Um compromisso que me prende sem obrigá-lo a nada não é justo, eu o recuso.

Julien soube agir tão bem que, menos de um mês após sua chegada à casa, o próprio sr. de Rênal o respeitava. Como o cura desentendera-se com os srs. de Rênal e Valenod, ninguém pôde revelar a antiga paixão de Julien por Napoleão, a quem ele só se referia com horror.




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ADVERTÊNCIA DO EDITOR
Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.


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Henri-Marie Beyle, mais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.

Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.

Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.

"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.

Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.

Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.

Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.

Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.



O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.

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