segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Gente Pobre - 34. Seu de alma e coração - Dostoiévski

Fiódor Dostoiévski


34.




10 de setembro



Meu querido Makar Alexeievitch:



A sua felicidade causou-me indizível alegria e sei avaliar bem o valor do auxílio do seu superior. Deste modo, o meu bom amigo poderá, finalmente, respirar e descansar das suas preocupações. Agora, por amor de Deus, não gaste mais dinheiro em coisas inúteis, suplico-lhe! Leve uma vida calma e ordenada, o mais econômica possível, e principie, a partir de hoje, a pôr todos os dias alguma coisa de lado, a fim de não tornar a ver-se em tais dificuldades. A falar verdade, não precisa de se preocupar connosco. Nós cá nos arranjaremos. Porque nos mandou tanto dinheiro, Makar Alexeievitch? De fato, não precisamos dele. O que vamos ganhando é-nos suficiente. É certo que daqui a pouco tempo necessitaremos de algum para a mudança; mas a Fédora conta que lhe paguem, até então, uma dívida antiga. Entretanto, fico com vinte rublos para o que der e vier, e devolvo-lhe o restante. Não julgue o dinheiro uma coisa supérflua, Makar Alexeievitch, peço-lhe! 

Adeus, meu amigo. Desejo que continue tranquilo e se conserve de saúde e cheio de alegria.

Por minha vontade, escreveria uma carta mais extensa; mas sinto-me muito cansada. Ontem estive de cama durante todo o dia. Fiquei muito contente com a promessa da sua visita. Não demore, Makar Alexeievitch. Olhe que estou à sua espera.


Sua


B. D.







11 de setembro




Minha querida Bárbara Alexeievna:



Rogo-lhe, meu anjo, que se não esqueça de que agora sou completamente feliz e tudo corre à medida dos meus desejos. Não faça caso da Fédora, minha querida! Prometo fazer-lhe tudo o que a minha boa amiga quiser. De futuro, hei de comportar-me bem, de maneira digna e decente, quando por outro motivo não fosse, em atenção a sua excelência. Recomeçaremos a troca de cartas alegres; confiaremos um ao outro os nossos pensamentos e também as nossas alegrias e preocupações, se é que havemos de ter estas últimas; voltaremos de novo a viver uma vida feliz e em boa harmonia... Dedicar-nos-emos à literatura. Agora, tudo na minha vida tende a melhorar, anjo do meu coração! A minha patroa já conversa comigo. A Teresa tornou-se mais atenciosa e até Faldoni me é mais prestável. Fiz as pazes com Ratazaiev. A alegria que me ia na alma impeliu-me para ele outra vez. Realmente, é um bom rapaz, querida Bárbara, e tudo o que de mal disseram dele não passa de pura mentira e disparate; tive agora oportunidade de verificar que se tratava de uma odiosa calúnia. Nunca lhe passou pela cabeça escrever qualquer sátira a nosso respeito; isso era mentira. Foi ele próprio que me afirmou, e até me leu a sua última obra. E quanto a ter-me posto a alcunha de Don Juan... isso não me traz mal algum, nem tal denominação tem nada de ofensivo. Explicou-me o que queria dizer. É um termo estrangeiro, que significa, mais ou menos, rapaz esperto, ou, exprimindo-me em linguagem mais polida, isto é, mais literária, cavalheiro galante. E é tudo. Assim, tratava-se, como vê, simplesmente de um gracejo inofensivo, meu anjo! Sou tão ignorante, que o havia tomado por uma ofensa, pelo que já hoje lhe apresentei as minhas desculpas...

Que bonito dia está hoje, querida Bárbara! É certo que de manhã havia alguma neve; mas isso não importa: torna o ar mais fresco. Fui comprar umas botas, e adquiri um par esplêndido, absolutamente irrepreensível... Em seguida dei um passeio pela Nevski e depois li o jornal. Sim, e com isto esquecia-me de lhe contar o mais importante!

É isto, ora ouça: 

Hoje de manhã estive à conversa com Emelia Ivanovitch e Aksenti Michaelovitch, e falamos de sua excelência. É verdade, querida Bárbara; não foi só para comigo que sua excelência teve gestos de bondade. A sua caridade tem-se estendido também a outras pessoas e toda a gente conhece bem os tesouros do seu coração. São muitos, mesmo muitos os indivíduos que exaltam as suas bondosas qualidades e vertem lágrimas de sincero agradecimento pelo bem que ele lhes fez. Sua excelência tomou conta de uma órfã e educou-a em sua casa, e depois casou-a com um empregado dos que trabalham diretamente sob as suas ordens; e não contente com isso, ainda lhe destinou um bom dote. Além disso, sua excelência colocou numa chancelaria o filho de uma pobre viúva. E muitos outros atos de generosidade se lhe podem apontar. Achei que era meu dever, querida, entrar na conversa, e pus em destaque o que ele fizera por mim; contei tudo, sem omitir a mínima particularidade, e fi-lo desassombradamente. Tratando-se de um gesto de tão grande alcance, pus de lado toda a timidez e toda a circunspeção e referi o caso em voz alta, para que todos ouvissem. Sim, muito alto, a fim de tornar bem conhecidas as nobres ações de sua excelência. Falei com calor e entusiasmo e fi-lo sem corar, antes, pelo contrário, sentia-me orgulhoso por poder contar semelhante episódio. 

No meu relato, apenas omiti, felizmente, o que se relaciona consigo, minha querida; essa circunstância, passei-a em claro, muito discretamente. Mas o respeitante à patroa, a Faldoni, a Ratazaiev, a Markov e às minhas botas, foi tudo contado pormenorizadamente... Alguns riram-se de mim um pouco, ou, melhor dizendo, todos fizeram caçoada... Mas ao menos todo riam! Pelo visto sempre encontraram em mim algum motivo de riso. Talvez se rissem só das minhas botas! No entanto, creio que não o faziam com má intenção, pois são incapazes disso. O mais certo é aqueles risos serem devidos à juventude dos colegas que me ouviam, ou então ao fato de não terem falta de dinheiro. Porém, repito, não devia existir má intenção ou sentido hostil nos risos que com as minhas palavras provoquei. Sim, pois não creio que fosse de sua excelência... Não; de sua excelência nunca se atreveriam a fazer pouco... Não lhe parece, querida Bárbara? 

Ainda não recuperei de todo a serenidade após a perturbação em que os últimos acontecimentos me mergulharam! Tem lenha para o lume, querida Bárbara? Tenha cuidado, não vá apanhar frio! Peço a Deus que vele por si e a proteja, meu amor. Tem, por exemplo, meias de lã ou os agasalhos necessário para o inverno? Tenha cautela, meu anjo! Se tiver falta de alguma coisa, não se acanhe, diga a este pobre velho aquilo de que precisa. Os nossos tempos maus já lá vão. A vida agora apresenta-se-nos brilhante, e bela!

Foram bem tristes aqueles dias, querida Bárbara! Mas não vale a pena recordá-los, uma vez que já passaram!... À medida que os anos forem andando, poderemos falar desses tempos. Não evoco com tanta saudade a minha infância? No entanto, o que eu sofri então! Às vezes não dispunha de um único kopek. Passava frio e fome; mas senti-me sempre contente.

De manhã ia até Nevski, deparava-se-me uma cara bonita... e lá se iam os sofrimentos por aquele dia. Bons tempos, maravilhosos tempos aqueles, apesar de tudo, meu amor! Dá gosto viver neste mundo, querida Bárbara! Sobretudo em S. Petersburgo. Ontem fiz ato de contrição diante de Deus, com lágrimas nos olhos, para que me perdoe todos os pecados que nessa dolorosa época cometi: maus pensamentos, embriaguez e jogo. E também me lembrei de si nas minhas orações. Foi a minha única consolação, meu anjo, a única pessoa que me deu bons conselhos e me ajudou a vencer todas as dificuldades. Isso, meu amor, jamais o esquecerei! Hoje beijei as suas cartas, uma a uma, meu anjo! Mas, com isto, adeus! 

Ouvi dizer que há por aqui perto quem venda um fato. É que também quero melhorar o meu exterior. Mais uma vez adeus, meu anjo; Deus lhe dê saúde e até à vista. 

Seu de alma e coração



Makar Dievuchkin



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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.



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Fiódor Dostoiévski

GENTE POBRE

Título original: Bednye Lyudi (1846)

Tradução anônima 2014 © Centaur Editions

centaur.editions@gmail.com


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Júlio Verne: Viagem ao Centro da Terra / XLII

Júlio Verne



Viagem ao Centro da Terra/XLII




Suponho que deviam ser dez horas da noite. Meu primeiro sentido que funcionou após a última aventura foi a audição. Quase que imediatamente ouvi - foi um ato de verdadeira audição silêncio voltar à galeria e substituir os mugidos que há muitas horas enchiam meus ouvidos. Finalmente as palavras de meu tio chegaram-me como um murmúrio: 

- Estamos subindo!

- O que o senhor está querendo dizer? - exclamei.

- Estamos subindo, sim, estamos subindo!

Estiquei o braço e toquei a muralha; minha mão ficou ensanguentada. Subíamos com extrema rapidez.

- A tocha! A tocha! - exclamou o professor.

Hans conseguiu acendê-la com bastante dificuldade, e a chama, mantendo-se de baixo para cima, apesar do movimento ascensional, iluminou bastante todo o cenário.

- É exatamente o que eu estava pensando - disse meu tio.

- Estamos num poço estreito, que não tem nem quatro toesas de diâmetro. Tendo chegado ao fundo do abismo, a água está subindo para voltar ao seu nível e faz com que subamos com ela. - Para onde?

- Não sei, e devemos estar preparados para qualquer acontecimento. Subimos a uma velocidade que avalio ser de duas toesas por segundo, ou seja, cento e vinte toesas por minuto e mais de três léguas e meia por hora. A esse ritmo, estamos andando bastante.

- Sim, se nada nos detiver, se houver uma saída nesse poço! Mas se estiver bloqueado, se o ar se comprimir gradualmente devido à pressão da coluna de água, se formos esmagados!

- Axel - respondeu o professor na maior calma -, a situação é quase desesperadora, mas há algumas chances de salvação e faço questão de examiná-las. Se a cada minuto podemos perecer, a cada momento podemos ser salvos. Estejamos prontos para aproveitar as menores circunstâncias.

- Mas o que podemos fazer?

- Recuperar nossas forças comendo.

Olhei para meu tio com um ar desvairado. Devia finalmente dizer o que não quisera confessar:

- Comer? - repetia.

- Sim, imediatamente. O professor acrescentou alguns termos em dinamarquês. Hans balançou a cabeça.

- Como! - exclamou meu tio. - Perdemos nossas provisões?

- Sim, só nos resta um pedaço de carne-seca para três.

Meu tio encarava-me sem querer compreender o que eu dizia.

- Então o senhor continua achando que podemos nos salvar?

Não obtive resposta. Passou-se uma hora. Começava a sentir uma fome violenta. Meus companheiros também sofriam, mas nenhum de nós ousou tocar naquele miserável resto de alimento. Entrementes, continuávamos a subir com extrema rapidez. Por vezes, o ar nos cortava a respiração, como acontece com os aeronautas cuja ascensão é rápida demais. Mas se eles sentem um frio cada vez maior à medida que se elevam nas camadas atmosféricas, sofríamos um efeito absolutamente contrário. O calor aumentava de forma preocupante e com certeza devia atingir quarenta graus naquele momento.

O que significava aquela mudança? Até então, os fatos haviam dado razão às teorias de Davy e Lidenbrock; até então as condições particulares das rochas refratárias, de eletricidade e de magnetismo haviam modificado as leis gerais da natureza, concedendo-nos uma temperatura moderada, pois, na minha opinião, a teoria do fogo central continuava a ser a única verdadeira e explicável. Estávamos voltando para um ambiente onde esses fenômenos aconteciam com todo o rigor e no qual o calor reduzia as rochas a um estado de fusão total? Era o que eu temia e o disse ao professor:

- Se não naufragarmos ou formos despedaçados, se não morrermos de fome, ainda poderemos ser queimados vivos.

Ele contentou-se em dar de ombros e voltar a suas reflexões. Mais uma hora se passou sem que qualquer incidente modificasse a situação, a não ser um leve aumento da temperatura. Finalmente, meu tio rompeu o silêncio:

- Bem, temos de tomar alguma atitude.

- Atitude? - repliquei.

- Sim. Temos de recuperar nossas forças. Se tentarmos prolongar nossas vidas por algumas horas poupando esse resto de comida, ficaremos fracos até o fim.

- Sim, até o fim, que não tardará.

- Muito bem. E se aparecer uma chance de salvar-nos, se for necessário agir, onde encontraremos as forças necessárias, se nos deixarmos enfraquecer pela inanição?

- Ah, meu tio, se devorarmos esse pedaço de carne, o que nos restará?

- Nada, Axel, nada. Mas você se sente mais bem nutrido devorando-a com os olhos? Isso é raciocínio de um homem sem vontade, sem energia!

- Então o senhor está desesperado? - exclamei, irritado.

- Não! - replicou o professor com firmeza.

- O quê! O senhor ainda tem esperanças de salvar-se?

- Claro que sim! Enquanto o coração bater e a carne palpitar, não admito que um ser dotado de vontade ceda lugar ao desespero!

Que palavras! E o homem que as pronunciava em tais circunstâncias tinha com certeza um caráter pouco comum.

- Mas o que fazer? - perguntei.

- Comer até a última migalha o resto da comida para recuperar as forças que perdemos. Mesmo que seja a nossa última refeição! Mas ao menos, em vez de permanecer esgotados, voltaremos a ser homens!

Meu tio pegou o pedaço de carne e os poucos biscoitos que escaparam do naufrágio; dividiu em três porções iguais e distribuiu-as. Dava cerca de uma libra de alimento para cada um. Meu tio comeu com avidez, com uma espécie de arrebatamento febril; eu, sem prazer apesar de minha fome, quase com nojo; Hans, tranquilamente, com moderação, mastigando sem ruído os pedacinhos, saboreando-os com a calma de um homem nada preocupado com os problemas futuros. Depois de muito procurar, encontrara um cantil cheio, até a metade, de genebra; ofereceu-nos, e aquele licor tão benéfico conseguiu reanimar-me um pouco.

- Förtraffkg! - disse Hans, bebendo.

- Excelente! - volveu meu tio.

Voltara a ter alguma esperança. Mas nossa última refeição terminara. Eram cinco horas da manhã.

O homem é feito de tal forma que sua saúde é um efeito puramente negativo. Satisfeita a necessidade de comer, dificilmente consegue imaginar os horrores da fome; precisa senti-los para compreendê-los. Ao final de um longo jejum, alguns bocados de biscoito e carne venceram nossos sofrimentos passados. Após a refeição, cada qual voltou a suas reflexões. Em que pensava Hans, aquele homem do Extremo Ocidente dominado pela resignação fatalista dos orientais? Quanto a mim, só pensava nas lembranças que me faziam voltar à superfície daquele globo que jamais deveria ter abandonado. A casa da Kõnigstrasse, minha pobre Grauben e a boa Marthe passaram como visões diante de meus olhos, e acreditava surpreender os ruídos das cidades da Terra nos grunhidos lúgubres que percorriam o maciço.

Meu tio, sempre em seu posto, tocha na mão, examinava com atenção a natureza dos terrenos. Tentava reconhecer nossa situação pela observação das camadas sobrepostas. Esse cálculo, ou melhor, essa estimativa, só podia ser muito aproximativa. Um cientista, porém, é sempre um cientista quando consegue conservar seu sangue-frio, e, sem dúvida, o professor Lidenbrock possuía essa qualidade num grau pouco comum.

Ouvia-o murmurar palavras da ciência geológica; eu era capaz de compreendê-las, e involuntariamente interessava-me por aquele derradeiro estudo.

- Granito eruptivo - dizia. - Ainda estamos na era primária, mas estamos subindo, subindo cada vez mais. Quem sabe o que encontraremos?

Quem sabe? Continuava a ter esperanças. Tocava a parede vertical e, poucos instantes depois, tornava:

- Gnaisses! Micaxistos! Bem, logo chegaremos a terrenos da era de transição e então...

O que o professor queria dizer? Era capaz de medir a espessura da crosta terrestre suspensa sobre nossas cabeças? Tinha um meio qualquer de fazer esse cálculo? Não. Sem o manômetro, qualquer estimativa tornava-se impossível. A temperatura continuava aumentando, e sentia-me completamente molhado naquela atmosfera ardente. Só conseguia compará-la ao calor dos fornos de uma fundição na hora da moldagem. Gradualmente Hans, meu tio e eu tiráramos nossos paletós e coletes; a menor peça de roupa provocava muito mal-estar e até sofrimento.

- Estamos subindo em direção a um forno incandescente! - exclamei ao sentir o calor aumentar.

- Não - respondeu meu tio. - É impossível! É impossível!

- No entanto - eu disse, apalpando a parede -, essa muralha está fervendo!

No momento em que pronunciei essas palavras, minha mão aflorara a água, e tive de retirá-la o mais depressa possível.

- A água está fervendo! - exclamei.

Dessa vez, a única resposta do professor foi um gesto de cólera. Então um terror invencível tomou conta de meu cérebro e não o abandonou mais. Sentia a aproximação de uma catástrofe de tamanhas proporções que nem a imaginação mais audaciosa seria capaz de concebê-la. Uma ideia, a princípio vaga, transformou-se em certeza para mim. Não ousava formulá-la. Algumas observações involuntárias, contudo, confirmavam minha convicção. À luz duvidosa da tocha, observei alguns movimentos desordenados nas camadas graníticas. Era evidente que ocorreria algum fenômeno ligado à eletricidade. Além disso, o calor excessivo, a água fervente!... Quis consultar a bússola. Ela enlouquecera!



Continua...

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Verne nasceu em Nantes, França, a 8 de Fevereiro de 1828. Com 11 anos começou a estudar no colégio Saint-Stanislas. Em 1848 viajou para Paris para estudar direito. Depois de se formar, persiste na literatura, e decide escrever peças de teatro, conseguindo levar a palco a peça "Les Pailles Rompues", que acabou por ser um enorme fiasco. O mesmo acontece quando tenta a música e a poesia. Entretanto casa com uma jovem viúva, com quem tem um filho, Michel Jean Pierre Verne. Mais tarde descobre o género literário que o fascina, as narrativas de viagens, que constitui o enredo do primeiro livro, “Cinco Semanas no Balão”, publicado na revista “Magazin d'Éducation”. As obras que sucederam esta provaram a imaginação e o talento do autor: “Viagem ao Centro da Terra” (1865), “Da Terra à Lua” (1865), “Vinte mil léguas submarinas” (1869), “Os Ingleses no Pólo Norte” (1870), “A Volta ao Mundo em Oitenta Dias” (1872), “Miguel Strogof” (1876) e “Um Capitão de 15 Anos” (1878).

As obras do escritor têm como influencia Jonathan Swift, em “Viagens de Gulliver”, Daniel Defoe, em “Robinson Crusoé” e Edgar Allan Poe, nas histórias de terror.

Nas suas obras, Verne descreveu o helicóptero, o cinema, a televisão, a iluminação, o néon, os tanques de guerra, os aviões, os mísseis telecomandados, os caça submarino, a luz e a água do mar para gerar energia, o uso de gases como armas químicas, entre outros. Graças a todas estas possibilidades oferecidas pelas histórias do autor, foi possível tornar realidade muita da ficção descrita, que hoje em dia representam as tecnologias modernas.

No livro “Viagem ao Centro da Terra”, Verne descreve uma expedição científica ao núcleo da Terra, um sonho de muitos geólogos e cientistas. O mesmo aconteceu em “Da Terra à Lua”, uma continuação do livro “À Volta da Lua”, em que o escritor prevê a viagem à Lua pelo Homem.

A criatividade de Júlio Verne está igualmente presente em “A Ilha Misteriosa” e “Vinte Mil Léguas Submarinas”, romance onde um carismático Capitão Nemo profetizava a pirataria submarina alemã na Segunda Guerra Mundial.

Em 1871 instalou-se em Amiens onde, em 1886, sobreviveu a uma tentativa de homicídio por parte do sobrinho. Foi atingido numa perna e ficou coxo para o resto da sua vida. Morre a 24 de Março de 1905.

Conhecido como o pai da ficção científica, Júlio Verne foi autor de obras conhecidas universalmente. Escreveu histórias de aventura, onde descrevia tecnologias e descobertas científicas. Antecipou o que hoje é o mundo atualmente, nomeadamente, as viagens ao espaço, no livro “Da Terra à Lua” (1869), e a invenção do submarino, no livro “Vinte mil léguas submarinas” (1870).

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Leia também:



domingo, 13 de janeiro de 2019

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXI - Ave! Maria

Cruz e Sousa

Obra Completa
Volume 1
POESIA



O Livro Derradeiro
Primeiros Escritos

Cambiantes
Outros Sonetos Campesinas
Dispersas
Julieta dos Santos




OUTROS SONETOS 






AVE! MARIA...
                  


Ave! Maria das Estrelas, Ave! 
Cheia de graça do luar, Maria! 
Harmonia de cântico suave, 
Das harpas celestiais branda harmonia...

Nuvem d’incensos através da nave 
Quando o templo de pompas irradia 
E em prantos o órgão vai plangendo grave 
A profunda e gemente litania...

Seja bendito o fruto do teu ventre, 
Jesus, mais belo dentre os astros e entre 
As mulheres judaicas mais amado...

Ó Luz! Eucaristia da beleza, 
Chama sagrada no Evangelho acesa, 
Maravilha do Amor e do Pecado!





IMPASSÍVEL


Teu coração de mármore não ama 
Nem um dia sequer, nem um só dia. 
Essa inclemente natureza fria 
Jamais na luz dos astros se derrama.

Mares e céus, a imensidade clama 
Por esse olhar d’estrelas e harmonia, 
Sem uma névoa de melancolia, 
Do amor nas pompas e na vida chama.

A Imensidade nunca mais quer vê-lo, 
Indiferente às comoções, de gelo 
Ao mar, ao sol, aos roseirais de aromas.

Ama com o teu olhar, que a tudo encantas, 
Ou sê antes de pedra, como as santas, 
Mudas e tristes dentro das redomas.





VERÔNICA


Não a face do Cristo, a macilenta 
Face do Cristo, a dolorosa face... 
O martírio da Cruz passou fugace 
E este Martírio, esta Paixão é lenta.

Um vivo sangue a face te ensanguenta, 
Mais vivo que se o Deus o derramasse; 
Porque esta vã paixão, para que passe, 
É mister dos Titãs a luta incruenta.

Se tu, Visão da Luz, Visão sagrada 
Queres ser a Verônica sonhada, 
Consoladora dessa dor sombria

Impressa ficará no teu sudário 
Não a face do Cristo do Calvário 
Mas a face convulsa da Agonia!



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De fato, a inteligência, criatividade e ousadia de Cruz e Sousa eram tão vigorosos que, mesmo vítima do preconceito racial e da sempiterna dificuldade em aceitar o novo, ainda assim o desterrense, filho de escravos alforriados, João da Cruz e Sousa, “Cisne Negro” para uns, “Dante Negro” para outros, soube superar todos os obstáculos que o destino lhe reservou, tornando-se o maior poeta simbolista brasileiro, um dos três grandes do mundo, no mesmo pódio onde figuram Stephan Mallarmé e Stefan George. A sociedade recém-liberta da escravidão não conseguia assimilar um negro erudito, multilíngue e, se não bastasse, com manias de dândi. Nem mesmo a chamada intelligentzia estava preparada para sua modernidade e desapego aos cânones da época. Sua postura independente e corajosa era vista como orgulhosa e arrogante. Por ser negro e por ser poeta foi um maldito entre malditos, um Baudelaire ao quadrado. Depois de morrer como indigente, num lugarejo chamado Estação do Sítio, em Barbacena (para onde fora, às pressas, tentar curar-se de tuberculose), seu
corpo foi levado para o Rio de Janeiro graças à intervenção do abolicionista José do Patrocínio, que cuidou para que tivesse um enterro cristão, no cemitério São João Batista.



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Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XIX

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XX 

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXII - Símiles

Dom Casmurro: Uma Ideia e um Escrúpulo

Machado de Assis

Dom Casmurro





CAPÍTULO LXIV
Uma Ideia e um Escrúpulo 




Relendo o capítulo passado, acode-me uma ideia e um escrúpulo. O escrúpulo é justamente de escrever a ideia, não a havendo mais banal na terra, posto que daquela banalidade do sol e da lua, que o céu nos dá todos os dias e todos os meses. Deixei o manuscrito, e olhei para as paredes. Sabes que esta casa do Engenho Novo, nas dimensões, disposições e pinturas, é reprodução da minha antiga casa de Matacavalos. Outrossim, como te disse no capítulo II, o meu fim em imitar a outra foi ligar as duas pontas da vida, o que aliás não alcancei. Pois o mesmo sucedeu àquele sonho do seminário, por mais que tentasse dormir e dormisse. Donde concluo que um dos ofícios do homem é fechar e apertar muito os olhos, e ver se continua pela noite velha o sonho truncado na noite moça. Tal é a ideia banal e nova que eu não quisera pôr aqui, e só provisoriamente a escrevo. 

Antes de concluir este capítulo, fui à janela indagar da noite por que razão os sonhos hão de ser assim tão tênues que se esgarçam ao menor abrir de olhos ou voltar de corpo, e não continuam mais. A noite não me respondeu logo. Estava deliciosamente bela, os morros palejavam de luar e o espaço morria de silêncio. Como eu insistisse, declarou-me que os sonhos já não pertencem à sua jurisdição. Quando eles moravam na ilha que Luciano lhes deu, onde ela tinha o seu palácio, e donde os fazia sair com suas caras de vária feição, dar-me-ia explicações possíveis. Mas os tempos mudaram tudo. Os sonhos antigos foram aposentados, e os modernos moram no cérebro da pessoa. Estes, ainda que quisessem imitar os outros, não poderiam fazê-lo; a ilha dos sonhos, como a dos amores, como todas as ilhas de todos os mares, são agora objeto da ambição e da rivalidade da Europa e dos Estados Unidos.

Era uma alusão às Filipinas. Pois que não amo a política, e ainda menos a política internacional, fechei a janela e vim acabar este capítulo para ir dormir. Não peço agora os sonhos de Luciano, nem outros, filhos da memória ou da digestão; basta-me um sono quieto e apagado. De manhã, com a fresca, irei dizendo o mais da minha história e suas pessoas.



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Texto de referência:

Obras Completas de Machado de Assis, vol. I,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.

Publicado originalmente pela Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1899.

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