quinta-feira, 17 de outubro de 2019

parábolas de uma professora: o compromisso

parábolas de uma professora


o compromisso
Ensaio 007A – 3ª.ed



baitasar e paulus e marko e kamilá




Eita! Essa conversinha é coisa antiga, educação não é lugar para fazer política, taokey? Eu ensino, a família educa!

Concordo com a Ofélia. Não bastasse ter que trabalhar em casa, sábado e domingo, para dar conta das responsabilidades atribuídas ao ensino de 30, 40 ou 45 alunos, em média – criaturinhas nascidas nas trevas –, ainda temos que conviver com esses e outros absurdos.

Gurias! Para mim, basta! Eu votei nessa gente. É tudo a mesma coisa: o alcaide da Villa mente, o outro também mentiu. E nós continuamos mentindo e assistindo. Estudamos, fazemos ensino superior para sermos tratadas como lixo, querendo ensinar quem não sabe e não quer conhecimento.

Que horror! Ser professora não está nada fácil. Desvalorizados e tendo que suportar a ignorância de um bando de gente à toa. Não sei o que é pior, ser tratada como palhaça por pais ausentes ou autoridades que se desviam do óbvio. Damos mais que recebemos!

É preciso ter sangue de barata...

Querem nos esmagar com baratas!

Povo gado!

Só Jesus salva!

na educação não há lugar para se salvar sozinha, quer seja em sonhos ou pesadelos, vivemos cercadas de gente, manipulamos e somos manipuladas, muitas vezes, descuidadas de nós mesmas, assumimos muitos personagens, alguns são tiranos implacáveis, algumas ressentidas e vaidosas do seu conhecimento superior, muitos silêncios misteriosos e desumanos, muitas caras sem expressão, medos e receios, tudo isso sentadas na fórmica verde, até que a velhice chega e as varizes, ah! as varizes no verão... outro inferno

e não fazemos política?

a família é a procriação das políticas do macho branco dono de tudo, mas na família também não fazemos política

os jornais mentem e distorcem os fatos, é óbvio que você só aceita essa manipulação enquanto as suas verdades não são o alvo, mas os jornais não fazem política

ah! mas as nossas crianças... os nossos jovens...

as nossas crianças estão sendo abusadas em suas casas, continuam sendo usadas no trabalho infantil – e por favor, não me venha com essa conversinha da ofélia, Eu lavava a louça! –, elas continuam sendo o alvo

e não podemos fazer política na escola? onde desconstruir essa política do dono de tudo: mulher nova, bonita e carinhosa e do homem que até pode sofrer, mas não quer sentir dor

onde?

em todos os lugares possíveis e imagináveis! na escola, inclusive

temos, dentro de nós... tudo e todas – as crianças também! –, mas continuamos sendo o alvo e adivinhem quem está sendo morta... sim, as nossas crianças! as nossas jovens! os nossos jovens! empurrados para a margem da educação, do subemprego, da periferia da vida

a não-política não consegue proteger nossas crianças nem impedir que balas de fuzil violem seus corpos, estraçalhando seus sonhos, os melhores anos nunca chegarão para nossas jovens e nossos jovens

Ofélia, quando você defende essa ideia da não-política está fazendo política: a política da despolitização. A educação sempre foi política, ela sempre esteve a serviço das classes dominantes.

o marko interveio em pé, explodia indignação, a kamilá tocou de leve em sua mão, sentou em silêncio ao nosso lado, na fórmica verde, mas sempre atento a cada palavra e inflexão da voz

os discursos e a catarse das queixas ainda não passaram, as ofélias seguem dispostas na trincheira do cinismo e da zombaria com indiferença, não bastam outras ideias, sem deus ou com deus, nesta escola da não-política a trama é o silêncio de todas, sorrisos quietos, quase invisíveis e a imensa maioria silenciosa sem a consciência de si mesma, sonhando em ser a dominadora 

Gente, eu quero dizer uma ou duas coisinhas...

reconheceria essa voz em qualquer lugar: abigail

fazemos silêncio e esperamos

fale falem

traga à luz as palavras que guardam por séculos e séculos, Vocês não acreditam nesta baboseira toda, né?

ela para, olha todas na sua volta, Gostaria de ver onde vai parar essa fé na humanidade, gosto da criatividade afiada da abigail, o seu papo é mais vivo e criativo que o seu trabalho em sala de aula, mas enfim, os dois servem de muito pouco, quando receberem o primeiro tapa na cara daquela mãe insaciada com o beijo na parede, demente com o esforço por algo melhor que resulta em nada, enlouquecida com os pingos da chuva no fogão e na mesa, insatisfeita com o cigarro que acabou, irritada com a invasão dos camundongos, assustada com as baratas, impaciente com os mosquitos e as moscas, a fome, a gritaria do rádio do vizinho, os gritos, amedrontada com as ameaças, a violência das mortes de seus outros filhos, desconfiada da polícia, ela é por ela e pelos filhos, neste dia o feijão queimou, a farinha acabou e a professora respondeu sem cuidado e atenção, e o tapa veio e deixou você pasmada. E vocês acreditam...

outro silêncio e outro olhar estudado, a respiração segura, reconhece o terreno em que está pisando, e nem foi até o fundo do poço, ainda não é a hora de dar um sorriso, fazer um gesto conciliador e dizer tudo bem, apesar do ódio e o medo de uma por todos e todas por um; não, ela não chegou a isso, por enquanto, Que no meio dessa gente vamos encontrar os médicos, veterinários, engenheiros e advogados que a Villa quer e precisa? Por Deus, eu até escuto isso nas minhas aulas, mas no meio dessa gente pobre, feia e ignorante... não, não é possível. Já é muito pouco provável que sobrevivam! Universidade? É impossível! Não, não acredito.

não posso mais suportar a vontade de vomitar, como ela pode ser tão cruel, sofro entre desejar muito que cale a boca e que continue a desvelar essa teoria que somos boazinhas, tolerantes, isentas, simpáticas e compreensivas, no primeiro descuido mostramos que somos firmes, fortes e desunidas

Abigail, só um instante, por favor, eis que a coordenadora do núcleo duro da neutralidade interrompe a isenta e caridosa abigail, ela pede a palavra, Sim, Cabayba, Você até parece candidata à direção da escola...

todas sorrimos nervosas e desconfortáveis

Isso se houver eleição, Cabayba...

É... está bem, foi mal. Concordo, Abigail, isso é outro assunto. Gostaria de contribuir dizendo que entendo a Kamilá, mas a questão é que já temos muitos médicos...

Muitos médicos, Cabayba?!

não consegui continuar calada

Sim, muitos médicos, Anita. Muitos engenheiros, advogados, veterinários, na verdade, essa gente precisa parar de fazer filhos. Pobre só cria mais pobreza com essas suas ninhadas.

Por Deus, Cabayba! Está em jogo aqui o compromisso do profissional em educação com a sociedade, esse grito sem pausa e impaciente foi do paulo, respeito suas palavras, elas nos chamam à prática com reflexão, não se trata do compromisso de qualquer um, não pode ser um compromisso estéril, seco e oco, despejado sem lucidez e concretude. Educar e ensinar não é cortesia, é compromisso que transforma o outro em você... e você no outro. 

E quem quer se comprometer, Paulo?

Eu, a Kamilá, o Marko, a Anita e tantas e tantos mais. E você?!

Baboseira! Precisamos de protocolos mais seguros de comportamento.

E os círculos de paz?

Só Jesus salva!

Compromisso com quem e com o quê, Paulo? Chega de balbúrdia nas escolas!



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