sábado, 24 de agosto de 2019

parábolas de uma professora: macho, branco e dono de tudo

parábolas de uma professora


macho, branco e dono de tudo
Ensaio 003A – 3ª.ed



baitasar e paulo e marko e kamilá




Professor Paulo, por favor... sente-se. Vamos começar nossa reunião, essa é a altíssima, nossa reorganizadora escolar pedagógico, não invejo a sua tarefa e não acredito em seu êxito, mas é claro que hoje não estou tão esperançosa

o paulo senta calmamente na fórmica verde e dura, fria e menos pedagógica, Se eu pudesse acabaria com a pedagogia, eu avisei você que não estou nada esperançosa, pior que a possibilidade de ameaçar sonhos é a maneira como transforma todos em bonecos de pau e alienados, Calma, Anita... calma, Eu sei, Antônio. Sinto-me uma idiota quando penso em voz alta e chateada com meu descontrole, Sentir que somos idiotas é apenas parte da luta, Sinceramente, quero ficar quieta no meu cantinho, A pedagogia não é uma traição, Não sei se é a pedagogia que é uma traição ou se o seu uso ou desuso, Acho, meu amor, que a intenção desvela as diferentes concepções de mundo que cada um de nós – pedagogos ou não – carrega consigo.

as memórias com o professor do corredor é tudo que quero carregar comigo, não sei se já quis alguém assim e me entreguei tanto, Anita... somos pedaços do acaso, Não sei, Antônio, mas não posso voltar em meus silêncios, Por acaso ou por intenção, Não sei, Antônio, O que é ser um pedagogo, E você é um pedagogo, Não, não fiz o curso de pedagogia, Mas o que é a pedagogia, afinal, Você é um pedagogo, Vamos por partes, a pedagogia é uma ciência pensada para dar conta de muitas ciências dentro da instituição escola, o antônio do corredor para, toma fôlego, faço uma pequena observação antes que retome o rumo do seu discurso acadêmico, Aí começa o emaranhado: como se pode dar conta de todo saber científico para ensiná-lo na escola, Esse é o lio, Anita, criamos os programas, os conteúdos, os métodos, as estratégias, etc etc etc etc, Eis o começo da traição aos miseráveis.

olho para o professor paulo, ele me sorri, enfia os dedos em sua barba branca, queria aquela paz, seus olhinhos nos convidam a continuar, volto para as lembranças, Antônio, meu querido... eu sei, através dos tempos, de acordo com os diferentes momentos históricos, tivemos construções importantes no campo da pedagogia no sentido de transformar as práticas coercitivas, disciplinadoras e autoritárias, Lembre de citar Gramsci com sua pedagogia crítica, Frenet com a escola nova, Makarenko com a pedagogia socialista, Paulo Freire e a pedagogia libertadora, outros de agora, outras que virão, Então, eles foram traídos, perguntei ao professor do corredor, Sim, eles foram traídos, ele responde

meu coração aperta e voa maluco, voa em sua direção, O que pensar deles, pergunto com os olhos brilhando, quero-lhe em meus braços, mas preciso contentar-me com essa peça oratória, Todos eles pensaram uma nova escola a partir da utopia da construção de uma sociedade baseada em princípios solidários, éticos e amorosos, onde a pedagogia estaria a serviço da construção do novo homem, da nova mulher, um outro mundo possível, E o que deu errado, Antônio, pergunto, já sabendo que minha resposta é a provocação que será aceita, Olhemos para o mundo, não... basta olharmos para a África e a América Latina: fome, favelas, guetos, desigualdades extremas, As pessoas não estão preocupadas com justiça social, Antônio, mas com o treinamento de recursos humanos para as grandes corporações, amestrando mentes e adestrando corações, o patriarcado macho, branco, racista, preconceituoso e pretensamente hétero não está interessado em direitos e deveres, busca privilégios, Nem todos, Anita, pronto, ele aceitou a provocação, quase desisto, não consegue se dar conta ou não quer  vai saber, né?, Eu sei, Antônio... nem todo homem e nem sempre, mas entenda, falo de um padrão social de comportamento. Você não é o assunto, esse mundo é o assunto, entende isso, pergunto sem nenhuma provocação, ou quase nenhuma, Compreendi, desculpe... é isso, meu ego branco faz parte desse mundo machista e dono de tudo, eis um pequeno avanço tirado a fórceps, só não quero que o antônio comece a chorar em meu ombro, acendo o amarelo piscante, e sigo adiante, O que deu errado? Tanta coisa deu errado e continua errada, mas o que poderá dar certo? Uma pedagogia da esperança? Uma pedagogia das encruzilhadas? Uma pedagogia do possível? O que é possível em uma sociedade onde o onipresente macho branco domina a criação do fato? O que é possível fazer e sentir em uma sociedade onde se duvida da possibilidade de pensar em solidariedade? Solidariedade não é caridade! Você consegue entender isso, Acho que sim, Solidariedade é mudança pela vida! Caridade é mudança que não muda pela vida, muda pela morte! Caridade é eleger um governante que faz arminha! Sabes por quê?, Acho que sim, mas já sei que vais me dizer, Porque ele descaradamente promete extinguir com os miseráveis! Acabando assim com o sofrimento dos miseráveis e o medo burro dos caridosos, E o que fazemos com a caridade, Não nego a caridade como uma ajuda de socorro, mas é na solidariedade que o projeto da vida floresce. Como construir conceitos de justiça e práticas éticas nesta sociedade de cúmplices? As pessoas já se aceitam não querendo melhorar como pessoas, mas querendo ter mais poder ou qualquer coisa que lhes dê o poder, Concordo, mas isso não basta, O que não basta, Não basta fazermos a leitura da realidade, Taokei, mas precisamos da leitura dos saberes existentes e apontarmos onde precisamos ir e chegar. Já não me basta mais só o caminho, quero chegar. E você quer ir conosco?

Pra onde?

Porra!, ao céu e ao inferno, respondi, precisamos compreender e interpretar a nossa própria realidade. Não há outra saída que não seja estar junto à velhice, às mulheres, aos miseráveis, crianças, pretos e pretas, índios e índias, lgbts, às minorias, falar, e principalmente, escutar... meter a colher, mudar nosso modo de vê-los, deixar que ensinem e eduquem, nos toquem com a pedagogia das encruzilhadas para cruzarmos essa pedagogia colonizadora e avivar o ajuntamento de todas as vidas, E como fugimos da lógica da opressão, Não fugindo, enfrentando o esquecimento e fazendo diferente: ser diferente, não para teorizar em relatos de seminários, mas para mudar nossas vidas. 

Calma, Anita, Não consigo, Antônio. Estamos destroçadas, bestializadas, desencantadas, em cacos e vazias, precisamos reinventar a vida e o encantamento, cruzar os caminhos, os esquecimentos, os olhares, as línguas, as religiões.

Pensando assim, você descobriu que a pedagogia não é uma traição, é mais uma ferramenta de mudança, Desde que assim o façamos e a entendamos, Antônio, mas tudo isso exige disciplina, amorosidade e método dialético, Eis que o abismo nos espera, E nós, a quem vamos continuar empurrando no abismo com o nosso imobilismo? Por quanto tempo iremos resistir sendo partidos ao meio?

abro os olhos, continuo no mesmo lugar, sentada na fórmica verde



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parábolas: ensaio 001A / Camarada, Ofélia!
parábolas: ensaio 002A / o coração livre para voar
parábolas: ensaio 003A / macho, branco e dono de tudo
parábolas: ensaio 004A / uma carreta de bois


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