quarta-feira, 6 de novembro de 2019

parábolas de uma professora: minicontos de natal

parábolas de uma professora


minicontos de natal
Ensaio 008A – 3ª.ed



baitasar e paulus e marko e kamilá




quantas histórias mal contadas, não admira que ainda não sabemos os porquês, alguém conta? daria para se dar conta? daria para contar sobre as balas de ódio que matam nossos jovens na vila? daria para contar dos sonhos roubados? daria para contar sobre o silêncio indiferente? daria para contar sobre as histórias invisíveis? daria para contar sobre o deus egoísta que se vende? ainda tem o que dizer sobre o que já foi dito e esquecido? poemas por escrever, mulheres e homens por amar, vidas interrompidas, não tenho mais o que dizer, não temos mais a quem amar, a sujeira nas salas, os vidros quebrados, o giz branco esfarelado no quadro-negro que é verde cheio de cicatrizes, faltam cadeiras, professores, professoras, ânimo, faltam classes, falta gente que nos acredite e defenda e lute, os jovens desistem de mim, os buracos de bala que erraram o alvo são cicatrizes que não nos deixam esquecer que não existem heróis nem nobres intenções no esgoto do poder, e nós acreditamos em quem e no quê? na força? no olho por olho, dente por dente? no silêncio? sabemos por que avaliamos? para quem avaliamos? para o adeus da formatura

Cabayba, no mundo descrente dos pobres não existem os médicos da cura e da segurança, só existe essa escola que reexiste teimosa enquanto a desmancham.

Eu sei, Kamilá. Falta-nos as condições de trabalho...

Eu repito isso todos os dias, gurias. Como podemos querer que esses jovens abram mão de seus consultórios para essa tempestade de violência?

Isso é parte da verdade, Ofélia.

E qual é a outra parte, Kamilá?

E o que é verdade, queridinha?

as nobres intenções escondidas no casulo cheio da palavra queridinha é demasiado humano, a sutileza esterilizada e sem vergonha

Precisamos de médicos que antes de entender cifras, estatísticas, laudos e exames, entendam de gente.

Dessa gente pobre?

Ah! Mas existem médicos maravilhosos...

o giz não educa, só reproduz

Pode ser, Ofélia. Mas não existem tantos médicos maravilhosos quanto necessitam os que não podem pagar.

Isso é tolice, Kamilá. Quer o melhor? Vá para a fila. Não pagamos nossos planos de saúde? E não esperamos na fila, muitas vezes, duas ou três horas para ser atendidas. Os melhores estão onde está o dinheiro.

fecho os olhos e sinto fluir as palavras da kamilá, Essa é a questão! Quais as características, conduta e qualidades de personalidade destes profissionais qualificados?

Se me permitem...

Claro, Marko. Por favor... isso é só uma conversa.

o nosso tempo parece ser feito para discutir as mesmas coisas, reclamar das mesmas coisas

Eu acredito que o projeto da personalidade como produto da educação deve estar baseado nas exigências da procura da sociedade.

aham, não sei, mas acho que gosto desta ideia, mas a questão é se essa sociedade humana sucumbe ao discurso do progresso a todo custo, acima da vida, ficamos nas mãos do lucro

Finalmente, todos olhamos na direção da rochele, sempre tão silenciosa, esperamos que ela continue, uma reunião que precisamos. O amálgama das ideias é a discussão das ideias. a prática da discussão da prática. O que deu certo? O que não deu certo? O que é preciso mudar? Como mudar? Mas precisamos seguir em frente.

Isso, Rô, também saio do meu silêncio-plateia, precisamos buscar nas ideias as revoluções da prática, mas continuo fixada no mesmo lugar, ao lado do fogão com a térmica nas mãos, as bochechas quentes

a cabayba senta e levanta, sai e volta, é toda impaciência, deixa um copo de iogurte vazio sobre a mesa, caminha até a porta do abrigo, faz uma careta, mais outra, e outra de tantas máscaras que usa, Marko... gurias... ensinar quem não escuta e não quer escutar? Brigam, xingam, saem porta afora. Não resisto mais, para mim isso tudo não tem mais jeito. Nunca teremos um final feliz. Palavrões, xingamentos, violência. Não dizem coisa com coisa. E escrever, então? Meu Deus...

mais que amar as palavras – ou tanto quanto – precisamos amar escutar narrativas, enredos, histórias que não entendemos, somos as consequências de nós mesmas, é inevitável; quanto ensino sem nenhuma consequência? quanto ensino quando falo muito e não digo nada? no fim não sobra nada, não dá em nada, somos parte destas histórias invisíveis

Profe... tem que ler?

Sim. Algum problema?

Não...

Você pode começar?

Tá bem... mas não precisa ficar em pé, né?... No Natal, meu pai saiu para comprar meu presente, nunca mais voltou.

Obrigado, Maurício. Mais alguém?

Eu posso ler, mas não autorizo que você coloque na parede do corredor...

Sem problemas, Telma.

Eu não entendo aquelas pessoas que compram roupa nova no Natal e ficam sentadas vendo o Roberto Carlos.

Vocês já escutaram Zé Ramalho?

Quem profe?

Um músico brasileiro, compositor e cantor nordestino, ele fez uma música chamada Admirável gado novo: “Vida de gado, povo marcado eh, povo feliz!”, procurem na internet... mais alguém? Gente, vamos fazer assim: ler tudo num galope só. Pode ser?

Eu e minha namorada brigamos, não sei se vou conseguir falar com ela até o Natal, As pessoas ficam tristes por acharem que falta algo em suas vidas, mas elas têm tudo o que precisam ao seu lado, No Natal meus pais ficam muito tristes, É manhã de Natal. Acordei cedo e fui até a árvore de plástico dos presentes. Ela está pequena esse ano, Eu amo o Natal, e também não gosto. Por quê? Não gosto porque o Noel não existe, todos mentem para todos. E gosto porque tem muita comida gostosa, No Natal meu pai falou que precisava comprar cigarros. Fiquei desconfiado, mas ele voltou limpo, Eu estou muito feliz. Vou estar com minha namorada neste Natal. Vai ser maravilhoso. Espero que sim, A bomba vai explodir no Natal. Ela vai dizer que está grávida e não sabe quem é o pai, Meu Natal vai ser uma merda. Meu pai tem outra família, No momento em que bater meia-noite vou esperar por uma ligação que nunca vou receber, Minha mãe está grande. Imensa. E se nascem no Natal, um vai ser Jesus e o outro Deus, Vi meu pai na lotérica. Ele me viu, mas não quer saber de mim, Estamos em volta da mesa, todo se olham. Não tem nada para comer, Está perto do Natal, mas ainda tenho aula. Já dá para chorar? Que saco. Fala sério, aula no Natal, Quando penso no Natal lembro da comida e fico feliz, Um dia um homem se vestiu de Papai Noel e levou presentes para as crianças pobres. É inspirador, Eu gosto do Natal porque minha família se reúne sem brigas... às vezes, Eu adoro o Natal, mas o que eu gosto mesmo é estar junto com minha família e amigos, A minha família briga muito, mas no Natal mostramos o carinho que temos uns pleos outros, Gosto de você, Anita. A profe mais legal que já tive em toda minha vida. Eu vou sentir saudades, Deitada e nem bem acordada, nem bem dormindo, planejei levantar e tomar um bom chimarrão de Natal. Levantei ansiosa. Fui ao banheiro lavar o rosto e, por fim, acordar. Quando cheguei na cozinha lembrei que estava com preguiça de ir ao mercadinho comprar a erva-mate. Deitei e fui dormir, tudo não passou de um pesadelo, Gosto de acordar bem cedo para olhar o dia perfeito nascendo. O sol, o chimarrão e o silêncio daquela manhã de Natal, às vezes, é perfeito, Mãe, eu te amo porque se não fosse você eu não estaria aqui, nesse mundo. Te amo para sempre minha rainha, até quando ficar bem velhinha, Profe... hoje, estava lavando a louça quando um copo caiu e quebrou. Fui juntar os cacos e cortei os dedos. Não dá para escrever, Neste Natal, decidi ler um livro que ninguém pegava emprestado na biblioteca. O melhor livro que já li, Minha amiga morreu. Fui ao funeral, mas não derramei uma lágrima até agora. É um Natal tão estranho, Te amo, mãe. Desculpa pelas decepções e dores de cabeça. Te amo, mesmo. Não sei se vou aprovar na escola. Feliz Natal, mesmo assim, Acordei às 6h30, tomei um banho. Lavei a louça de ontem, quis fazer uma surpresa pra minha mãe. Eu estava inspirada pelo espírito do Natal, Gosto de ir nas festas em que só entra gente bonita. Olhos azuis são lindos, mas os castanhos que conheci na festa, Eu gosto de sair, não gosto de estudar. Gosto de dormir, não gosto de arrumar a casa. Hoje, fico em casa dormindo, a ressaca do Natal é uma bagunça. Odeio lugares bagunçados e tema de casa, mas gosto de estudar na escola, O Big dog não gosta que o chamem de gordo. Tudo bem, a gente não chama mais, mas ele gosta de comer muito, Com 7 anos, tinha medo de ficar sozinha no escuro. Uma noite, fui até a cozinha e escutei um barulho. Corri para minha dinda. Ela me acalmou e me disse para enfrentar meus medos. Voltei até a cozinha. Hoje, não tenho mais medo, Último ano na escola, última festa de Natal na escola. Últimos olhares e abraços. Último beijo. Essa palavra nos joga na cara que a vida com alguém está sendo interrompida. Essa escola não será a minha última escola, assim espero.

antes que a cabayba pudesse sair do abrigo o marko perguntou suave e direto

E o que lhes mostramos, Cabayba? Um copo de iogurte na mesa? Um celular que toca e atendemos? Quanto preciso ou consigo resistir à indiferença sem vigiar a solidão do meu egoísmo?






parábolas: ensaio 008A / minicontos de natal
parábolas: ensaio 009A / a fome que nunca passa

Nenhum comentário:

Postar um comentário