sexta-feira, 15 de maio de 2020

OS SERTÕES, Euclides da Cunha - A Terra: IV As caatingas

OS SERTÕES 

Euclides da Cunha

Volume 1



A TERRA




IV



continuando...




As caatingas


Então, a travessia das veredas sertanejas é mais exaustiva que a de uma estepe nua. 

Nesta, ao menos, o viajante tem o desafogo de um horizonte largo e a perspectiva das planuras francas. Ao passo que a caatinga o afoga; abrevia-lhe o olhar; agride-o e estonteia-o; enlaça-o na trama espinescente e não o atrai; repulsa-o com as folhas urticantes, com o espinho, com os gravetos estalados em lanças; e desdobra-se-lhe na frente léguas e léguas, imutável no aspecto desolado: árvores sem folhas, de galhos estorcidos e secos, revoltos, entrecruzados, apontando rijamente no espaço ou estirando-se flexuosos pelo solo, lembrando um bracejar imenso, de tortura, da flora agonizante...

Embora esta não tenha as espécies reduzidas dos desertos — mimosas tolhiças ou eufórbias ásperas sobre o tapete das gramíneas murchas — e se afigure farta de vegetais distintos, as suas árvores, vistas em conjunto, semelham uma só família de poucos gêneros, quase reduzida a uma espécie invariável, divergindo apenas no tamanho, tendo todas a mesma conformação, a mesma aparência de vegetais morrendo, quase sem troncos, em esgalhos logo ao irromper do chão. É que por um efeito explicável de adaptação às condições estreitas do meio ingrato, evolvendo penosamente em círculos estreitos, aquelas mesmo que tanto se diversificam nas matas ali se talham por um molde único. Transmudam-se, e em lenta metamorfose vão tendendo para limitadíssimo número de tipos caracterizados pelos atributos dos que possuem maior capacidade de resistência.

Esta impõe-se, tenaz e inflexível.

A luta pela vida, que nas florestas se traduz como uma tendência irreprimível para a luz, desatando-se os arbustos em cipós, elásticos, distensos, fugindo ao afogado das sombras e alteando-se presos mais aos raios do Sol do que aos troncos seculares — ali, de todo oposta, é mais obscura, é mais original, é mais comovedora. O Sol é o inimigo que é forçoso evitar, iludir ou combater. E evitando-o pressente-se de algum modo, como o indicaremos adiante, a inumação da flora moribunda, enterrando-se os caules pelo solo. Mas como este, por seu turno, é áspero e duro, exsicado pelas drenagens dos pendores ou esterilizado pela sucção dos estratos completando as insolações, entre dous meios desfavoráveis — espaços candentes e terrenos agros — as plantas mais robustas trazem no aspecto anormalíssimo, impressos, todos os estigmas desta batalha surda.

As leguminosas, altaneiras noutros lugares, ali se tornam anãs. Ao mesmo tempo ampliam o âmbito das frondes, alargando a superfície de contacto com o ar, para a absorção dos escassos elementos nele difundidos. Atrofiam as raízes mestras batendo contra o subsolo impenetrável e substituem-nas pela expansão irradiante das radículas secundárias, ganglionando-as em tubérculos túmidos de seiva. Amiúdam as folhas. Fitam-nas rijamente, duras como cisalhas, à ponta dos galhos para diminuírem o campo de insolação. Revestem de um indumento protetor os frutos, rígidos, às vezes, como estróbilos. Dão-lhes na deiscência perfeita com que as vagens se abrem, estalando como se houvessem molas de aço, admiráveis aparelhos para propagação das sementes, espalhando-as profusamente pelo chão. E têm, todas, sem excetuar uma única, no perfume suavíssimo das flores, anteparos intácteis que nas noites frias sobre elas se alevantam e se arqueiam obstando a que sofram de chofre as quedas de temperatura, tendas invisíveis e encantadoras, resguardando-as...

Assim disposta, a árvore aparelha-se para reagir contra o regime bruto.

Ajusta-se sobre os sertões o cautério das secas; esterilizam-se os ares urentes; empedra-se o chão, gretando, recrestado; ruge o nordeste nos ermos; e, como um cilício dilacerador, a caatinga estende sobre a terra as ramagens de espinhos... Mas, reduzidas todas as funções, a planta, estivando em vida latente, alimenta-se das reservas que armazena nas quadras remansadas e rompe os estios, pronta a transfigurar-se entre os deslumbramentos da primavera.

Algumas, em terrenos mais favoráveis, iludem ainda melhor as intempéries, em disposição singularíssima.

Vêem-se, numerosos, aglomerados em caapões ou salpintando, isolados, as macegas, arbúsculos de pouco mais de um metro de alto, de largas folhas espessas e luzidas, exuberando floração ridente em meio da desolação geral. São os cajueiros anões, os típicos anacardium humile das chapadas áridas, os cajuís dos indígenas. Estes vegetais estranhos, quando ablaqueados em roda, mostram raízes que se entranham a surpreendente profundura. Não há desenraizá-los. O eixo descendente aumenta-lhes maior à medida que se escava. Por fim se nota que ele vai repartindo-se em divisões dicotômicas. Progride pela terra dentro até a um caule único e vigoroso, embaixo.

Não são raízes, são galhos. E os pequeninos arbúsculos, esparsos, ou repontando em tufos, abrangendo às vezes largas áreas, uma árvore única e enorme, inteiramente soterrada.

Espancado pelas canículas, fustigado dos sóis, roído dos enxurros, torturado pelos ventos, o vegetal parece derrear-se aos embates desses elementos antagônicos e abroquelar-se daquele modo, invisível, no solo sobre que alevanta apenas os mais altos renovos da fronde majestosa.

Outros, sem esta conformação, se aparelham de outra sorte.

As águas que fogem ao volver selvagem das torrentes, ou entre as camadas inclinadas dos xistos, ficam retidas, longo tempo, nas espatas das bromélias, aviventando-as. No pino dos verões, um pé de macambira é para o matuto sequioso um copo d’água cristalina e pura. Os caroás verdoengos, de flores triunfais e altas; os gravatás e ananases bravos, traçados em touceiras impenetráveis, copiam-lhe a mesma forma, adrede feita àquelas paragens estéreis. As suas folhas ensiformes, lisas e lustrosas, como as da maioria dos vegetais sertanejos, facilitam a condensação dos vapores escassos trazidos pelos ventos, por maneira a debelar-se o perigo máximo à vida vegetativa, resultante da larga evaporação pelas folhas, esgotando e vencendo a absorção pelas radículas.
Sucedem-se outros, diversamente apercebidos, sob novos aprestos, mas igualmente resistentes.

As nopáleas e cactos, nativas em toda a parte, entram na categoria das fontes vegetais, de Saint-Hilaire. Tipos clássicos da flora desértica, mais resistentes que os demais, quando decaem a seu lado, fulminadas, as árvores todas, persistem inalteráveis ou mais vívidos talvez. Afeiçoaram-se aos regimes bárbaros; repelem os climas benignos em que estiolam e definham. Ao passo que o ambiente em fogo dos desertos parece estimular melhor a circulação da seiva entre os seus cladódios túmidos.

As favelas, anônimas ainda na ciência — ignoradas dos sábios, conhecidas demais pelos tabaréus — talvez um futuro gênero cauterium das leguminosas, têm, nas folhas de células alongadas em vilosidades, notáveis aprestos de condensação, absorção e defesa. Por um lado, a sua epiderme ao resfriar-se, à noite, muito abaixo da temperatura do ar, provoca, a despeito da secura deste, breves precipitações de orvalho; por outro, a mão que a toca, toca uma chapa incandescente de ardência inaturável.

Ora quando, ao revés das anteriores, as espécies não se mostram tão bem armadas para a reação vitoriosa, observam-se dispositivos porventura mais interessantes; unem-se, intimamente abraçadas, transmudando-se em plantas sociais. Não podendo revidar isoladas, disciplinam-se, congregam-se, arregimentam-se. São deste número todas as cesalpinas e as catingueiras, constituindo, nos trechos em que aparecem, sessenta por cento das caatingas; os alecrins-dos-tabuleiros, e os canudos-de-pito, heliotrópicos arbustivos de caule oco, pintalgado de branco e flores em espigas, destinados a emprestar o nome ao mais lendário dos vilarejos...

Não estão no quadro das plantas sociais brasileiras, de Humboldt, e é possível que as primeiras vicejem, noutros climas, isoladas. Ali se associam. E, estreitamente solidárias as suas raízes, no subsolo, em apertada trama, retêm as águas, retêm as terras que se desagregam, e formam, ao cabo, num longo esforço o solo arável em que nascem, vencendo, pela capilaridade do inextricável tecido de radículas enredadas em malhas numerosas, a sucção insaciável dos estratos e das areias. E vivem. Vivem é o termo — porque há, no fato, um traço superior à passividade da evolução vegetativa...




O juazeiro



Têm o mesmo caráter os juazeiros, que raro perdem as folhas de um verde intenso, adrede modeladas às reações vigorosas da luz. Sucedem-se meses e anos ardentes. Empobrece-se inteiramente o solo aspérrimo. Mas, nessas quadras cruéis, em que as soalheiras se agravam, às vezes, com os incêndios espontaneamente acesos pelas ventanias atritando rijamente os galhos secos e estonados — sobre o depauperamento geral da vida, em roda, eles agitam as ramagens virentes, alheios às estações, floridos sempre, salpintando o deserto com as flores cor de ouro, álacres, esbatidas no pardo dos restolhos — à maneira de oásis verdejantes e festivos.

A dureza dos elementos cresce, entretanto, em certas quadras, ao ponto de os desnudar: é que se enterroaram há muito os fundos das cacimbas, e os leitos endurecidos das ipueiras mostram, feito enormes carimbos, em moldes, os rastros velhos das boiadas; e o sertão de todo se impropriou à vida.

Então, sobre a natureza morta, apenas se alteiam os cereus esguios e silentes, aprumando os caules circulares repartidos em colunas poliédricas e uniformes, na simetria impecável de enormes candelabros. E avultando ao descer das tardes breves sobre aqueles ermos, quando os abotoam grandes frutos vermelhos destacando-se, nítidos, à meia luz dos crepúsculos, eles dão a ilusão emocionante de círios enormes, fincados a esmo no solo, espalhados pelas chapadas, e acesos...

Caracterizam a flora caprichosa na plenitude do estio.

Os mandacarus (cereus jaramacaru) atingindo notável altura, raro aparecendo em grupos, assomando isolados acima da vegetação caótica, são novidade atraente, a princípio. Atuam pelo contraste. Aprumam-se tesos, triunfalmente, enquanto por toda a banda a flora se deprime. O olhar perturbado pelo acomodar-se à contemplação penosa dos acervos de ramalhos estorcidos, descansa e retifica-se percorrendo os seus caules direitos e corretos. No fim de algum tempo, porém, são uma obsessão acabrunhadora. Gravam em tudo monotonia inaturável, sucedendo-se constantes, uniformes, idênticos todos, todos do mesmo porte, igualmente afastados, distribuídos com uma ordem singular pelo deserto.

Os xiquexiques (cactus peruvianus) são uma variante de proporções inferiores, fracionando-se em ramos fervilhantes de espinhos, recurvos e rasteiros, recamados de flores alvíssimas. Procuram os lugares ásperos e ardentes. São os vegetais clássicos dos areais queimosos. Aprazem-se no leito abrasante das lajes graníticas feridas pelos sóis.

Têm como sócios inseparáveis neste habitat, que as próprias orquídeas evitam, os cabeças-de-frade, deselegantes e monstruosos melocactos de forma elipsoidal, acanalada, de gomos espinescentes, convergindo-lhes no vértice superior formado por uma flor única, intensamente rubra. Aparecem, de modo inexplicável, sobre a pedra nua, dando, realmente, no tamanho, na conformação, no modo por que se espalham, a imagem singular de cabeças decepadas e sanguinolentas jogadas por ali, a esmo, numa desordem trágica. É que estreitíssima frincha lhes permitiu insinuar, através da rocha, a raiz longa e capilar até à parte inferior onde acaso existam, livres de evaporação, uns restos de umidade.

E a vasta família, revestindo todos os aspectos, decai, a pouco e pouco, até aos quipás reptantes, espinhosos, humílimos, trançados sobre a terra à maneira de espartos de um capacho dilacerador; às ripsálides serpeantes, flexuosas, como víboras verdes pelos ramos, de parceria com os frágeis cactos epífitas, de um glauco empalecido, presos por adligantes aos estípites dos ouricurizeiros, fugindo do solo bárbaro para o remanso da copa da palmeira.

Aqui, ali, outras modalidades: as palmatórias-do-inferno, opúntias de palmas diminutas, diabolicamente eriçadas de espinhos, — com o vivo carmim das cochonilhas que alimentam; orladas de flores rutilantes, quebrando alacremente a tristeza solene das paisagens...


E pouco mais especializa quem anda, pelos dias claros, por aqueles ermos, entre árvores sem folhas e sem flores. Toda a flora, como em uma derrubada, se mistura em baralhamento indescritível. É a caatanduva, mato doente, da etimologia indígena, dolorosamente caída sobre o seu terrível leito de espinhos!

Vingando um cômoro qualquer, postas em torno as vistas, perturba-as o mesmo cenário desolador: a vegetação agonizante, doente e informe, exausta, num espasmo doloroso...

É a silva aestu aphylla, a silva horrida, de Martius, abrindo no seio iluminado da natureza tropical um vácuo de deserto.

Compreende-se, então, a verdade da frase paradoxal de Aug. de Saint-Hilaire: “Há, ali, toda a melancolia dos invernos, com um sol ardente e os ardores do verão!”

A luz crua dos dias longos flameja sobre a terra imóvel e não a anima. Reverberam as infiltrações de quartzo pelos cerros calcários, desordenadamente esparsos pelos ermos, num alvejar de banquisas; e oscilando à ponta dos ramos secos das árvores inteiriçadas, dependuram-se as tilândsias alvacentas, lembrando flocos esgarçados, de neve, dando ao conjunto o aspecto de uma paisagem glacial, de vegetação hibernante, nos gelos...





continua 020...

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Leia também:

OS SERTÕES, Euclides da Cunha - A Terra: I Preliminares
OS SERTÕES, Euclides da Cunha - A Terra: I A entrada do sertão
OS SERTÕES, Euclides da Cunha - A Terra: I Primeiras impressões
OS SERTÕES, Euclides da Cunha - A Terra: II Do alto de Monte Santo
OS SERTÕES, Euclides da Cunha - A Terra: III O clima
OS SERTÕES, Euclides da Cunha - A Terra: IV As secas
OS SERTÕES, Euclides da Cunha - A Terra: IV A tormenta


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Os Sertões, de Euclides da Cunha

Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante). 

Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.



História do Brasil / A Guerra de Canudos





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