quarta-feira, 20 de maio de 2020

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, VI — Capítulo consagrado ao amor

Victor Hugo - Os Miseráveis


Primeira Parte - Fantine

Livro Terceiro — Em 1817




VI — Capítulo consagrado ao amor




Conversas de mesa, conversas de amor, são tão impalpáveis umas como outras; as conversas de amor são nuvens, as conversas de mesa são fumo. 

Fameuil e Dália cantarolavam; Tholomyés bebia, Zefina ria, Fantine sorria. Listolier soprava numa gaitinha de madeira comprada em Saint-Cloud. Favorita fitava Blachevelle com ternura e dizia-lhe:

— Adoro-te, Blachevelle!

Isto deu lugar a uma pergunta feita por Blachevelle:

— Que farias tu, Favorita, se eu deixasse de te amar?

— O que fazia? — exclamou Favorita. — Não digas isso nem a brincar! Se deixasses de amar-me, atirava-me a ti, arranhava-te, esmurrava-te, deitava-te água e mandava-te prender!

Blachevelle sorriu com a voluptuosa fatuidade de quem se vê acariciado no seu amor próprio e Favorita prosseguiu:

— É o que te digo, chamava pela guarda para te prender! Ora experimenta!

Blachevelle, extasiado, recostou-se no espaldar da cadeira e fechou os olhos.

Dália, sem deixar de comer, disse em voz baixa a Favorita, no meio da confusão geral:

— Pelo que vejo, idolatras o teu Blachevelle?

— Detesto-o! — respondeu Favorita no mesmo tom e tornando a pegar no garfo. — É um avarento! De quem eu gosto é de um rapaz que mora defronte de mim. Aquilo é que é um rapaz a quem dá gosto amar! Conhece-lo? Parece-me que é ator. Eu gosto dos atores Apenas ele entra em casa, a mãe diz logo: «Ah, meu Deus! Estava tudo tão sossegado e aí vai ele pôr-se a quebrar a cabeça da gente com as suas cantorias!» Porque, apenas ele põe o pé em casa, vai para as águas-furtadas, para o telhado, para o lugar mais alto que pode e principia a cantar, a declamar, nem eu te sei dizer o que é, a ponto de se ouvir cá de baixo. Já ganha vinte soldos por dia, em casa de um tabelião, a rabiscar sentenças. É filho de um ex-cantor de S. Jacques do Haut-Pas. Oh, é um rapaz muito interessante! Gosta tanto de mim, que, um dia, vendo-me estar a fazer massa para as filhas, disse-me: «Ó menina, faça sonhos das suas luvas e verá como eu as como». Só os artistas é que sabem dizer destas coisas Estou quase enfeitiçada por ele! Mas isso não quer dizer nada porque vou dizendo a Blachevelle que o adoro. Que tal, sei ou não mentir?

Após uma pausa, Favorita prosseguiu:

— Mas olha, Dália, estou triste! Todo o Verão tem chovido, o vento não abranda, Blachevelle é um sovina, na praça só se encontram ervilhas, a gente não sabe o que há de comer, tenho spleen, como dizem os ingleses, a manteiga está caríssima! E, por fim, ainda isto: estar a jantar numa sala que tem uma cama, vê lá tu se não tenho razão de estar desgostosa da vida!




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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.


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Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, IV — A alegria de Tholomyés é tão grande que até canta uma canção espanhola
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Victor Hugo

OS MISERÁVEIS

Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira (1851-1888)




OS MISERÁVEIS, DE VICTOR HUGO





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