sexta-feira, 29 de maio de 2020

Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1(c) ... A princesa prosseguiu

Capítulo 1





A princesa prosseguiu. Quem eram aqueles dois grosseirões, perguntou, que estavam sentados a seu lado, com maneiras de cavalariços? Que era aquela mistura repugnante que derramavam em seu prato? Os cães na Inglaterra comiam na mesma mesa que os homens? Aquela figura grotesca na extremidade da mesa, com cabelo enfeitado como um pau de sebo,(comme une grande perche mal fagotée) [7] era realmente a rainha? E o rei, babava sempre assim? E qual daqueles papagaios era George Villiers? Embora essas perguntas, no início, desconcertassem Orlando, eram feitas com tanta brejeirice e graça que ele não pôde deixar de rir; e viu, pelos rostos inexpressivos dos companheiros, que ninguém compreendeu uma só palavra, e respondeu-lhe tão livremente quanto ela perguntou, falando como ela em um francês perfeito. 

Assim começou entre ambos uma intimidade que logo se tornou o escândalo da corte.

Logo foi observado que Orlando dispensava à moscovita mais atenção do que a mera civilidade exigia. Raramente se afastava dela, e sua conversa, embora ininteligível para os outros, era conduzida com tal animação, provocava tantos rubores e risos que os mais estúpidos podiam adivinhar o assunto. Além disso, a mudança do próprio Orlando era extraordinária. Ninguém jamais o vira tão animado. Em uma noite ele se livrara da sua falta de jeito de menino; mudara, de um adolescente mal-humorado, que não podia entrar num aposento feminino sem derrubar metade dos enfeites da mesa, em um fidalgo cheio de graça e cortesia varonil. Vê-lo conduzir a moscovita (como ela era chamada) para o seu trenó, ou oferecer-lhe a mão para uma dança, ou apanhar o lenço pintado que ela deixara cair, ou cumprir qualquer outro desses múltiplos deveres que a suprema dama exige e o amante se apressa em atender, era uma visão que excitava os olhos dos velhos e fazia bater mais rápido o pulso dos jovens. Sobre isso tudo, no entanto, pairava uma nuvem. Os velhos davam de ombros. Os jovens sorriam dissimuladamente. Todos sabiam que Orlando estava comprometido com outra. Lady Margaret O’Brien O’Dare O’Reilly Tyrconnel (pois este era o verdadeiro nome da Eufrosina dos sonetos) usava a esplêndida safira de Orlando no segundo dedo da mão esquerda. Era ela quem tinha o direito supremo às suas atenções. No entanto, ela podia deixar cair no gelo todos os lenços de seu guarda-roupa (os quais tinha em grande número) sem que Orlando se curvasse para apanhá-los. Podia esperar vinte minutos por ele para que a conduzisse ao seu trenó e por fim contentar-se com os serviços de seu lacaio negro. Quando patinava, o que fazia desajeitadamente, ninguém estava ao seu lado para encorajá-la, e, se caísse, o que fazia um tanto pesadamente, ninguém a levantava do chão, nem lhe sacudia a neve das saias. Embora fosse naturalmente fleugmática, custasse a se ofender e fosse mais relutante do que a maioria das pessoas em acreditar que uma simples estrangeira pudesse afastá-la da afeição de Orlando, a própria Lady Margaret, por fim, chegou a suspeitar de que algo estava sendo tramado contra a sua paz de espírito.

Na verdade, à medida que os dias se passavam, Orlando tinha cada vez menos cuidado em ocultar seus sentimentos. Dando uma desculpa ou outra, retirava-se logo após o jantar ou escapava dos patinadores quando estavam formando pares para uma quadrilha. Logo em seguida via-se que a moscovita tinha desaparecido também. Porém o que mais ultrajava a corte e a feria na parte mais sensível, que é a sua vaidade, era que o casal era frequentemente visto deslizando sob o cordão de seda que separava o recinto real da parte pública do rio, desaparecendo no meio da multidão. Pois de repente a princesa batia o pé e gritava: “Leve-me daqui. Eu detesto sua plebe inglesa”, referindo-se à própria corte inglesa. Ela não podia suportar mais. Estava cheia de velhas intrometidas que encaravam as pessoas, disse, e de jovens convencidos que lhe pisavam os pés. Eles cheiravam mal. Seus cachorros corriam-lhe por entre as pernas. Era como estar numa jaula. Na Rússia havia vales com dez milhas de largura, por onde se podia galopar com seis cavalos lado a lado o dia inteiro sem encontrar vivalma. Além disso, ela queria ver a Torre, os Guardas, as Cabeças Decapitadas em Temple Bar e as joalherias da cidade. Assim, Orlando levou-a à cidade, mostrou-lhe os Guardas e as cabeças dos rebeldes e comprou tudo aquilo de que ela se agradou na Bolsa Real. Mas não era o suficiente. Ambos desejavam cada vez mais a companhia um do outro, em particular, o dia todo, onde não houvesse ninguém que os olhasse e importunasse. Por isso, em vez de seguirem caminho para Londres davam a volta pelo outro lado e logo tinham ultrapassado a multidão ao longo dos braços gelados do Tâmisa, onde não encontravam ninguém exceto aves marinhas ou alguma velha camponesa quebrando gelo numa vã tentativa de conseguir um balde d’água, ou catando alguns gravetos ou folhas secas que pudesse achar para o fogo. Os pobres permaneciam perto de suas casas, e os que tinham mais recursos se dirigiam para a cidade em busca de calor e alegria.

Por isso, Orlando e Sasha, como ele a chamava para abreviar e porque era um nome de uma raposa branca russa que ele tivera em pequeno — uma criatura suave como a neve, mas com dentes de aço que o mordeu tão ferozmente que seu pai mandou matar —, por isso eles ficavam com o rio para si. Aquecidos pela patinação e pelo amor, atiravam-se em algum lugar solitário, onde os juncos amarelos adornavam a margem, e Orlando, envolto numa grande capa de pele, tomava-a nos braços e, pela primeira vez — murmurava —, conhecia as delícias do amor. Então, quando o êxtase terminava, jaziam acalmados sobre o gelo e ele lhe falava de seus outros amores e como, comparados ao dela, tinham sido de madeira, de estopa e de cinzas. E, rindo de sua veemência, ela virava-se mais uma vez nos seus braços, dando-lhe mais um abraço como prova de amor. E então eles se maravilhavam que o gelo não tivesse derretido com o seu calor e se apiedavam da pobre velha que não dispunha de meios naturais para derretê-lo e tinha que quebrá-lo com um machado de aço frio. E então, envoltos em suas peles, conversavam sobre tudo o que existe sob o sol; de paisagens e viagens; de mouros e pagãos; da barba deste homem e da pele daquela mulher; de um rato alimentado à mesa pela mão dela; da tapeçaria que se movia sem parar na sala da casa; de um rosto; de uma pluma. Nada era pequeno demais para a conversa, e nada era tão grande.

Depois, de repente, Orlando caía numa de suas expressões de melancolia; a visão da velha mancando sobre o gelo podia ser a causa disso, ou não haver nada; atirava-se de rosto para baixo no gelo, olhava as águas congeladas e pensava na morte. Pois o filósofo tem razão ao dizer que nada mais espesso do que a lâmina de uma faca separa a felicidade da melancolia; e prossegue opinando que são gêmeas; e daí chega à conclusão de que todos os sentimentos extremos são aparentados da loucura; e assim convida-nos a buscar refúgio na verdadeira Igreja (a seu ver, a Anabatista), único porto, enseada, ancoradouro etc., dizia, para aqueles que se debatem neste mar.

— Tudo termina em morte — dizia Orlando, aprumando-se, o rosto velado de tristeza. (Pois era assim que sua mente trabalhava agora, em violentas oscilações entre a vida e a morte, sem se deter no meio, de modo que o biógrafo também não pode parar, tem voar tão rápido quanto possível e acompanhar o passo das ações impensadas, apaixonadas e loucas e de súbitas palavras extravagantes a que, é impossível negar, Orlando se entrega neste momento de sua vida.)

— Tudo acaba em morte — dizia Orlando, sentando-se no gelo. Mas Sasha, que afinal não tinha sangue inglês mas que era da Rússia, onde os crepúsculos eram mais longos, as auroras menos repentinas e as frases muitas vezes abandonadas sem terminação pela dúvida de como terminá-las da melhor maneira —, Sasha fitava-o, talvez escarnecendo, pois ele devia parecer-lhe uma criança — e não dizia nada. Mas finalmente o gelo esfriava debaixo deles, o que a ela não agradava, então fazia com que se levantasse, falava-lhe de forma tão encantadora, tão sedutora e tão sábia (mas infelizmente sempre em francês, o que, evidentemente, perde o sabor com a tradução) que ele esquecia as águas geladas, ou o cair da noite, ou a velhinha, ou o que quer que fosse, e tentava dizer-lhe — mergulhando e revolvendo-se entre mil imagens, tão gastas quanto as mulheres que as inspiraram — com o que ela parecia. Neve, creme, mármore, cerejas, alabastro, fio de ouro? Nada disso. Era com uma raposa ou como uma oliveira; como as ondas do mar quando vistas do alto; como uma esmeralda; com o sol numa colina verde ainda enevoada — como nada que ele tivesse visto ou conhecido na Inglaterra. Por mais que rebuscasse a língua, as palavras lhe faltavam. Queria uma outra paisagem e outro idioma. O inglês claro demais, cândido demais, meloso demais para Sasha. Pois em tudo o que ela dizia, embora parecesse franca e voluptuosa, havia alguma coisa oculta; em tudo o que fazia, ainda que ousado, havia algo escondido. Assim, a chama verde parece oculta numa esmeralda, ou o sol aprisionado numa colina. A claridade era apenas exterior; por dentro havia uma chama errante. Ia e vinha; nunca resplandecia como a chama imperturbável de uma mulher inglesa — aqui, no entanto, lembrando-se de Lady Margaret e suas saias, Orlando exaltava-se em seu arrebatamento e arrastava-a pelo gelo mais depressa, cada vez mais depressa, jurando alcançar a chama, mergulhar pela joia, e assim por diante, as palavras entrecortadas com a paixão de um poeta cuja poesia é meio provocada pela dor.

Mas Sasha ficava calada. Quando Orlando, cansado de dizer que ela era uma raposa, uma oliveira, ou o cume de uma colina verde, e tinha contado toda a história de sua família; como sua casa era uma das mais antigas da Inglaterra; como eles tinham vindo de Roma com os Césares e tinham direito de passear pelo Corso (que é a principal rua de Roma) sob um palanquim adornado, o que ele dizia ser um privilégio reservado unicamente àqueles de sangue imperial (pois havia uma credulidade orgulhosa de sua parte que era bastante agradável), ele parava e perguntava a ela: Onde era a sua casa? O que o seu pai era? Tinha irmãos? Por que ela estava ali sozinha com o tio? Então, embora ela respondesse prontamente, um mal-estar surgia entre eles. Ele suspeitou, a princípio, de que ela não pertencesse a um nível social tão alto quanto pretendia; ou que tivesse vergonha das maneiras selvagens de seu povo, pois ele ouvia dizer que as mulheres em Moscou usavam barbas e os homens se cobriam com peles da cintura para baixo; que ambos os sexos se untavam com sebo para se proteger do frio, rasgavam carne com os dedos e viviam em cabanas onde um nobre inglês teria escrúpulo de abrigar o seu gado; então desistiu de pressioná-la. Mas, refletindo, concluiu que esta não poderia ser a razão de seu silêncio; ela mesma era inteiramente desprovida de pelos no queixo; vestia-se de veludo e pérolas, e suas maneiras não eram certamente as de uma mulher criada num estábulo.

O que, então, ela ocultava dele? A dúvida subjacente à tremenda força de seus sentimentos era como areia movediça sob um monumento que de repente desliza e faz tremer toda a construção. Subitamente a angústia se apoderava dele. Então se exaltava com tanta ira que ela não sabia como acalmá-lo. Talvez não quisesse acalmá-lo; talvez suas raivas a agradassem, e ela o provocava de propósito — tal é a curiosa sinuosidade do temperamento moscovita.

Para continuar a história — patinando mais longe do que o de costume, naquele dia alcançaram a parte do rio onde os navios tinham ancorado e estavam congelados no meio da corrente. Entre eles estava o navio da embaixada moscovita, com sua águia negra de duas cabeças flutuando no mastro principal, suspensa por coloridos pingentes de neve, de muitas jardas de comprimento. Sasha deixara algumas de suas roupas a bordo, e, supondo que o navio estivesse vazio, eles subiram ao convés e foram buscá-las. Recordando certas passagens de seu próprio passado, Orlando não teria se admirado que alguns bons cidadãos tivessem procurado este refúgio antes deles, e assim aconteceu, na verdade. Não tinham ido longe quando um belo jovem levantou-se de alguma ocupação com que se entretinha atrás de um rolo de cordas e, dizendo, aparentemente, pois ele falava russo, que era um dos membros da tripulação, e que ajudaria a princesa a encontrar o que ela queria, acendeu um coto de vela e desapareceu com ela na parte inferior do navio.

O tempo passava, e Orlando, envolto em seus próprios sonhos, pensava apenas nos prazeres da vida; em sua joia; em sua raridade; nos meios de torná-la sua, irrevogável e indissoluvelmente. Havia obstáculos e dificuldades a superar. Ela estava decidida a viver na Rússia, onde havia rios gelados e cavalos selvagens e homens, dizia, que se degolavam uns aos outros. É verdade que a paisagem de pinheiros e neve, hábitos de luxúria e carnificina não o seduziam. Nem estava ansioso em deixar os seus agradáveis hábitos rurais de esportes e plantio de árvores; em renunciar ao seu cargo, abandonar sua carreira; em atirar em renas em vez de em lebres; em beber vodca em vez de vinho, e carregar uma faca na manga — não sabia para quê. No entanto, tudo isso e muito mais ele faria por ela. Quanto ao seu casamento com Lady Margaret, embora marcado para daí a uma semana, parecia-lhe tão absurdo que nem pensava nisso. Os parentes dela o censurariam por ter abandonado uma grande dama; os amigos dele zombariam por arruinar a mais bela carreira do mundo por uma mulher cossaca e um deserto de neve — isto não pesava uma palha, comparado a Sasha. Na primeira noite escura eles fugiriam. Tomariam um navio para a Rússia. Assim pensava, assim tramava, andando de um lado para outro no convés.

Virando-se para oeste, foi chamado à realidade pela visão do sol, suspenso como uma laranja na cruz da catedral de São Paulo. Estava cor de sangue e descia rapidamente. Devia ser quase noite. Sasha tinha ido há mais de uma hora. Apanhado instantaneamente por aqueles sentimentos obscuros que sombreavam mesmo os seus pensamentos mais confiantes a respeito dela, desceu pelo caminho que os vira tomar para o porão do navio; e, depois de tropeçar na escuridão entre caixas e barris, vislumbrou, num canto, que eles estavam sentados ali. Por um segundo teve a visão dos dois; Sasha estava sentada nos joelhos do marinheiro; viu-a curvar-se para ele; viu-os abraçarem-se antes que a luz desaparecesse numa nuvem vermelha de sua ira. Lançou um tal uivo de angústia que ecoou pelo navio inteiro. Sasha atirou-se entre os dois, senão o marinheiro teria sido eliminado antes que pudesse apanhar o seu sabre. Então um terrível mal-estar se apoderou de Orlando, eles tiveram que deitá-lo no chão e dar-lhe aguardente para reanimá-lo. E então, quando se recuperou, sentou-se sobre um monte de sarapilheira, Sasha inclinou-se para ele, passando diante de seus olhos tontos, suavemente, sinuosamente, como uma raposa que o tivesse mordido, ora bajulando, ora ameaçando, de modo que ele chegou a duvidar do que tinha visto. A vela não teria derretido, as sombras não teriam se movido? A caixa era pesada, ela disse; o homem estava ajudando-a a carregá-la. Orlando acreditou nela por um momento — pois, como ter certeza que a sua raiva não pintara aquilo que ele mais temia encontrar? — porém logo ficou mais violentamente indignado com a sua falsidade. Então Sasha empalideceu; bateu o pé no convés; disse que partiria naquela noite e invocou seus Deuses para que a destruíssem se ela, uma Romanovitch, tivesse estado nos braços de um simples marinheiro. Na verdade, vendo-os juntos (o que ele dificilmente se animava a fazer), Orlando se envergonhava pela infâmia de sua imaginação, capaz de pintar uma criatura tão frágil nas patas daquele peludo monstro do mar. O homem era enorme; tinha mais de seis pés de altura; usava argolas de arame nas orelhas; parecia um cavalo de carga sobre o qual uma carriça ou um tordo tivesse pousado. Então ele se rendeu; acreditou nela e pediu-lhe perdão. Mas, ao descerem do navio, novamente enamorados, Sasha parou com a mão na escada e lançou ao monstro queimado de cara larga uma série de cumprimentos, gracejos ou carinhos em russo, dos quais Orlando não compreendeu uma palavra. Mas havia algo em seu tom (podia ser o problema das consoantes russas) que lembrava a Orlando uma cena, noites atrás, quando encontrara com ela, num canto, roendo em segredo um toco de vela que apanhara no chão. É certo que era róseo; que era dourado; que era da mesa do rei; mas era de sebo, e ela o roía. Não havia nela, pensava, conduzindo-a para o gelo, alguma coisa grosseira, alguma coisa de sabor áspero, alguma coisa de camponesa? E ele a imaginava aos quarenta anos, pesadona — embora agora fosse esbelta como um junco — e entorpecida — embora agora fosse alegre como uma cotovia. Mas novamente, quando patinavam em direção a Londres, tais suspeitas se dissolveram em seu peito, e ele sentiu como se tivesse sido fisgado pelo nariz por um grande peixe e impelido a contragosto pelas águas, embora com o seu próprio consentimento.

Era uma tarde de espantosa beleza. Com o pôr do sol, todas as cúpulas, agulhas, torreões e pináculos de Londres se erguiam num negrume de tinta contra as furiosas nuvens vermelhas do poente. Aqui era a cruz ornada de Charing; ali, a cúpula da catedral de São Paulo; lá, o bloco compacto dos edifícios da Torre; adiante, como um grupo de árvores despojadas de todas as folhas — exceto um tufo na extremidade —, estavam as cabeças nas varas em Temple Bar. Agora, as janelas da Abadia estavam acesas e brilhavam como um celestial escudo multicolorido (na imaginação de Orlando); agora, todo o poente parecia uma janela dourada com tropas de anjos (ainda na imaginação de Orlando) subindo e descendo continuamente as escadarias do céu. O tempo todo eles pareciam patinar nas impenetráveis profundezas do ar, de tão azul que o gelo se tornara; e tão transparentemente liso que eles deslizavam cada vez mais rápido para a cidade, cercados por gaivotas brancas que cortavam no ar, com as asas, os mesmos círculos que eles cortavam no gelo com os patins.

Sasha, como que para tranquilizá-lo, estava mais terna do que de costume e ainda mais encantadora. Raramente tinha querido conversar a respeito de seu passado, mas agora lhe contava como no inverno, na Rússia, escutava os lobos uivando pelas estepes, e, para demonstrar-lhe, uivou como um lobo três vezes. Ele, então, falou dos veados na neve, em sua casa, de como vagavam pelo grande vestíbulo em busca de calor e eram alimentados por um velho que lhes dava mingau de um balde. E então ela o elogiou; por seu amor pelos animais; por sua galanteria; por suas pernas. Encantado com os elogios e envergonhado de pensar como tinha maliciado imaginando-a no colo de um marinheiro vulgar, e gorda e entorpecida aos quarenta anos, ele disse que não encontrava palavras para elogiá-la; mas logo considerou que ela era como a primeira e a grama verde e as águas correntes e, apertando-a mais fortemente do que nunca, rodopiou com ela pelo rio, de forma que as gaivotas e os corvos-marinhos rodopiaram também. E parando afinal, sem fôlego, ela disse, levemente ofegante, que ele era como uma árvore de Natal com um milhão de velas (como as que há na Rússia), com bolas amarelas penduradas; incandescente; suficiente para iluminar uma rua inteira (assim se poderia traduzir); pois, com suas faces brilhantes, seus cachos escuros, sua capa preta e carmesim, ele parecia como se estivesse ardendo com seu próprio esplendor, vindo de uma lâmpada acesa dentro de si.






continua pag 28...

__________________


Virginia Woolf, escritora inglesa, nasceu em 1882, no seio de uma família da alta sociedade londrina. Após a morte de seus pais, ela e os irmãos se mudaram para uma casa no bairro de Bloomsbury, onde realizavam encontros com personalidades e poetas da época, como como T. S. Elliot e Clive Bell. Virginia começou a escrever em 1905, inicialmente para jornais. Dez anos depois, ela lançou seu primeiro livro “A Viagem”.

No período entre a 1ª e 2ª Guerra Mundial, Virginia Woolf se tornou uma figura conhecida na sociedade inglesa. Em 1941, ela cometeu suicídio se jogando no rio Ouse, perto da residência onde morava com seu marido, o crítico literário Leonardo Woolf, em Sussex. Mas, a obra de Virginia se imortalizou. Usando com excelência a técnica do fluxo de consciência, a escritora criou livros inovadores, que lhe fizeram ser conhecida como a maior romancista lírica do idioma inglês.

A Universidade de Adelaide, uma das instituições de ensino mais antigas da Austrália, disponibilizou online toda a obra de Virginia Woolf para download gratuito. Ao todo, são dez romances e dois livros de contos que podem ser baixados em três formatos: Zip, ePub e Kindle (para dispositivos Amazon). Entre os arquivos, estão algumas das obras mais famosas da escritora inglesa, como “Mrs. Dalloway” (1925), “Rumo ao Farol” (1927), “Os Anos” (1937) e “A Marca na Parede” (1944).

As obras estão em inglês. Para fazer o download, basta clicar sobre o título e escolher a opção “download. Também estão disponíveis ensaios de Virginia Woolf, como “O Leitor Comum” (1925), no qual ela reflete sobre a arte literária com base em obras-primas de outros autores renomados.



___________________________

Leia também:

Virgínia Woolf - Orlando : Apresentação e Prefácio
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1(b) - Talvez fosse culpa de Orlando... 
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1(d) ... Toda a cor, salvo o vermelho


__________________________


[7] Como uma grande vara malfeita.


__________________________




Chato? Difícil? Engraçado? "ORLANDO"






Nenhum comentário:

Postar um comentário