Ensaio sobre a cegueira
Não esperara pela resposta. Ostensivamente, pusera-se a recolher os restos da jarra e a enxugar o soalho, enquanto ia resmungando, com uma irritação que não procurava dissimular, Bem o poderias ter feito tu, em lugar de te deitares para aí a dormir, como se não fosse nada contigo. Ele não falou, protegia os olhos por trás das pálpebras apertadas, subitamente agitado por um pensamento, E se eu abro os olhos e vejo, perguntava-se, tomado por uma ansiosa esperança. A mulher aproximou-se, reparou no lenço manchado de sangue, o seu agastamento apagou-se num instante, Pobrezinho, como foi que te aconteceu isto, perguntava compadecida, enquanto desfazia a improvisada atadura. Então ele. com todas as suas forças, desejou ver a mulher ajoelhada aos seus pés, ali, como sabia que estava, e depois. já certo de que a não veria, abriu os olhos, Até que enfim que acordaste, meu dorminhoco, disse ela, sorrindo. Fez-se um silêncio e ele disse, Estou cego, não te vejo. A mulher ralhou, Deixa-te de brincadeiras estúpidas, há coisas com que não devemos brincar, Quem me dera que fosse uma brincadeira, a verdade é que estou mesmo cego. Não vejo nada, Por favor, não me assustes, olha para mim, aqui, estou aqui, a luz está acesa, Sei que aí estás, ouço-te, toco-te, calculo que tenhas acendido a luz, mas eu estou cego. Ela começou a chorar, agarrou-se a ele, Não é verdade, dize-me que não é verdade. As flores tinham escorregado para o chão, sobre o lenço manchado, o sangue recomeçara a pingar do dedo ferido, e ele, como se por outras palavras quisesse dizer do mal o menos, murmurou, Vejo tudo branco, e logo deixou aparecer um sorriso triste. A mulher sentou-se ao lado dele, abraçou-o muito, beijou-o com cuidado na testa, na cara, suavemente nos olhos, Verás que isso passa, tu não estavas doente, ninguém fica cego assim, de um momento para outro, talvez, Conta-me como foi, o que sentiste, quando, onde, não, ainda não, espera, a primeira coisa que temos de fazer é falar com um médico dos olhos, conheces algum, Não conheço, nem tu nem eu usamos óculos, E se te levasse ao hospital, Para olhos que não vêem, não deve haver serviços de urgência, tens razão, o melhor é irmos directamente a um médico, vou procurar na lista dos telefones, um que tenha consultório perto daqui. Levantou-se, ainda perguntou, Notas alguma diferença, nenhuma, disse ele, Atenção, vou apagar a luz, já me dirás, agora, Nada, Nada, quê, Nada, vejo sempre o mesmo branco, para mim é como se não houvesse noite.
Ele ouvia a mulher passar rapidamente as folhas da lista telefônica, fungando para segurar as lágrimas, suspirando, dizendo enfim, Este deve servir, oxalá nos possa atender. Marcou um número, perguntou se era do consultório, se o senhor doutor estava, se podia falar com ele, não, não, o senhor doutor não me conhece, é por causa de um caso muito urgente, sim, por favor, compreendo, então digo-lho a si, mas peço-lhe que transmita ao senhor doutor, é que o meu marido ficou cego de repente, sim, sim, como lhe estou a dizer, de repente, não, não é doente do senhor doutor, o meu marido não usa óculos, nunca usou, sim, tinha uma óptima vista, como eu, eu também vejo bem, ah, muito obrigada, eu espero, eu espero, sim, senhor doutor, sim, de repente, diz que vê tudo branco, não sei como foi, nem tive tempo de lhe perguntar, acabo de chegar a casa e encontrei-o neste estado, quer que lhe pergunte, ah, quanto lhe agradeço, senhor doutor, vamos imediatamente, imediatamente. O cego levantou-se, Espera, disse a mulher, deixa-me curar primeiro esse dedo, desapareceu por uns momentos, voltou com um frasco de água oxigenada, outro de mercurocromo, algodão, uma caixinha de pensos rápidos. Enquanto o tratava perguntou-lhe, Onde foi que deixaste o carro, e subitamente, Mas tu, assim como estás, não podias conduzir, ou já estavas em casa quando, Não, foi na rua, quando estava parado num sinal vermelho, uma pessoa fez o favor de me trazer, o carro ficou aí na rua ao lado, Bom, então descemos, esperas à porta que eu o vou buscar, onde foi que puseste as chaves, Não sei, ele não mas devolveu, Ele, quem, O homem que me trouxe a casa, foi um homem, Tê-las-á largado por aí, vou ver, Não vale a pena procurares, ele não entrou, Mas as chaves têm de estar em algum sítio, O mais certo foi ter-se ele esquecido, levou-as sem se dar conta, Era mesmo isto o que nos faltava, Usa as tuas, depois logo se vê, Bem, vamos, dá-me cá a mão. O cego disse, Se vou ter de ficar assim, acabo com a vida, Por favor, não digas disparates, para infelicidade já basta o que nos sucedeu, Eu é que estou cego, não tu, tu não podes saber o que me sucedeu, O médico vai pôr-te bom, verás, Verei.
Saíram. Em baixo, no vestíbulo da escada, a mulher acendeu a luz e sussurrou-lhe ao ouvido, Espera-me aqui, se algum vizinho aparecer fala-lhe com naturalidade, diz que estás à minha espera, olhando para ti ninguém pensará que não vês, escusamos de estar já a dar notícia da nossa vida, Sim, mas não te demores. A mulher saiu a correr. Nenhum vizinho entrou ou saiu. Por experiência, o cego sabia que a escada só estaria iluminada enquanto se ouvisse o mecanismo do contador automático, por isso ia premindo o disparador de cada vez que se fazia silêncio. A luz, esta luz, para ele, tornara-se em ruído. Não entendia por que se demorava a mulher tanto, a rua era ali ao lado, uns oitenta, cem metros, Se nos atrasamos muito, o médico vai-se embora, pensou. Não pôde evitar um gesto maquinal, levantar o punho esquerdo e baixar os olhos para ver as horas. Apertou os lábios como se o tivesse traspassado uma súbita dor, e agradeceu à sorte não ter aparecido naquele momento um vizinho, pois ali mesmo, à primeira palavra que ele lhe dirigisse, se teria desfeito em lágrimas. Um carro parou na rua, Até que enfim, pensou, mas acto contínuo estranhou o barulho do motor, Isto é diesel, isto é um táxi, disse, e carregou uma vez mais no botão da luz. A mulher vinha a entrar, nervosa, transtornada, O santinho do teu protector, a boa alma, levou-nos o carro, Não pode ser. não deves ter visto bem, Claro que vi bem, eu vejo bem, as últimas palavras saíram-lhe sem ela querer, Tinhas-me dito que o carro estava na rua ao lado, emendou, e não está, ou então deixaram-no noutra rua, Não, não, foi nessa, tenho a certeza, Pois então levou sumiço, Nesse caso, as chaves, Aproveitou-se da tua desorientação, da aflição em que estavas, e roubou-nos, E eu que nem o quis deixar entrar em casa, por medo, se tivesse ficado a fazer-me companhia até tu chegares, não poderia ter roubado o carro, Vamos, temos o táxi à espera, juro-te que era capaz de dar um ano de vida para que esse malandro cegasse também, Não fales tão alto, E lhe roubassem tudo quanto tenha, Pode ser que apareça, Ah, pois, amanhã bate-nos aí à porta a dizer que foi uma distracção, a pedir desculpa, e a saber se estás melhorzinho.
Mantiveram-se calados até ao consultório do médico. Ela procurava afastar do pensamento o roubo do carro, apertava carinhosamente as mãos do marido entre as suas, enquanto ele, com a cabeça baixa para que o motorista não pudesse ver-lhe os olhos pelo retrovisor, não parava de perguntar-se como era possível que tão grande desgraça lhe estivesse a acontecer a ele, A mim, porquê. Aos ouvidos chegavam-lhe os ruídos do transito, uma ou outra voz mais alta quando o táxi parava, também às vezes sucede, ainda dormimos e já os sons exteriores vão repassando o véu da inconsciência em que ainda estamos envolvidos, como num lençol branco. Como num lençol branco. Abanou a cabeça suspirando, a mulher tocou-lhe ao de leve na face, maneira de dizer Sossega, estou aqui, e ele deixou pender a cabeça para o ombro dela, sem se importar com o que pensaria o motorista, Estivesses tu como eu, e não poderias ir aí a guiar, pensou infantilmente, e, sem reparar no absurdo do enunciado, congratulou-se por, em meio do seu desespero, ter sido ainda capaz de formular um raciocínio lógico. Ao sair do táxi, auxiliado discretamente pela mulher, parecia calmo, mas, à entrada do consultório, onde iria conhecer a sua sorte, perguntou-lhe num murmúrio que tremia, Como estarei eu quando sair daqui, e abanou a cabeça como quem já nada espera.
A mulher informou a empregada da recepção de que era a pessoa que há meia hora tinha telefonado por causa do marido, e ela fê-los passar a uma pequena sala onde outros doentes esperavam. Havia um velho com uma venda preta num dos olhos, um rapazinho que parecia estrábico acompanhado por uma mulher que devia de ser a mãe, uma rapariga nova de óculos escuros, duas outras pessoas sem sinais particulares à vista, mas nenhum cego, os cegos não vão ao oftalmologista. A mulher guiou o marido para uma cadeira livre, e, por não sobrar outro assento, ficou de pé ao lado dele, Vamos ter de esperar, murmurou-lhe ao ouvido. Ele percebeu porquê, ouvira vozes dos que ali se encontravam, agora afligia-o uma preocupação diferente, pensava que quanto mais o médico tardasse a examiná-lo, mais profunda a cegueira se tornaria, e portanto incurável, sem remédio.
Mexeu-se na cadeira, inquieto, ia comunicar as suas apreensões à mulher, mas nesse momento a porta abriu-se e a em pregada disse, Os senhores, por favor, passem, e dirigindo-se aos outros doentes, Foi ordem do senhor doutor, o caso deste senhor é urgente. A mãe do rapaz estrábico protestou que o direito é o direito, e que ela estava em primeiro lugar, e à espera há mais de uma hora. Os outros doentes apoiaram-na em voz baixa, mas nenhum deles, nem ela própria, acharam prudente insistir na reclamação, não fosse o médico ficar ressentido e depois pagar-se da impertinência fazendo-os esperar ainda mais, tem-se visto. O velho do olho vendado foi magnânimo, Deixem-no lá, coitado, aquele vai bem pior do que qualquer de nós. O cego não o ouviu, já iam a entrar no gabinete do médico, e a mulher dizia, Muito obrigada pela sua bondade, senhor doutor, é que o meu marido, e tendo dito interrompeu-se, em verdade ela não sabia o que realmente sucedera, sabia apenas que o marido estava cego e lhes tinham roubado o carro. O médico disse, Sentem-se, por favor, ele próprio foi ajudar o paciente a acomodar-se, e depois, tocando-lhe na mão, falou directamente para ele, Conte-me lá então o que se passa consigo. O cego explicou que estando dentro do carro, à espera de que o sinal vermelho mudasse, tinha ficado subitamente sem ver, que umas pessoas acudiram a ajudá-lo, que uma mulher de idade, pela voz devia ser. dissera que aquilo se calhar eram nervos, e que depois um homem o acompanhara a casa porque ele sozinho não podia valer-se, Vejo tudo branco, senhor doutor. Não falou do roubo do automóvel.
continua... 11
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José Saramago (1922-2010) foi um importante escritor português. Destacou-se como romancista, teatrólogo, poeta e contista. Recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, o Prêmio Camões, entre outros.
José Saramago nasceu em Azinhaga de Ribatejo, no concelho de Golegã, distrito de Santarém. Portugal, no dia 16 de novembro de 1922. Filho de camponeses com dois anos de idade mudou-se com a família para Lisboa.
José Saramago estreou na literatura com o romance “Terra do Pecado” (1947). Foi diretor literário de uma editora, jornalista e tradutor. Colaborou com vários jornais e revistas, entre eles, o Diário de Lisboa, A Capital e a Seara Nova, onde exerceu a função de cronista.
Sua trajetória literária passou por várias fases, a primeira, foi marcada pela poesia, com "Os Poemas Possíveis" (1966) e “Provavelmente Alegria” (1970), e pela crônica “Deste Mundo e do Outro” (1971).
A partir do final dos anos 70 dedicou-se ao teatro, escreveu “A Noite” (1979), peça que tem como cenário uma redação de um jornal na noite de 24 para 25 de abril de 1974. A peça recebeu o Prêmio da Associação de Críticos Portugueses.
A ficção de Saramago começou com o romance “Manual de Pintura e Caligrafia” (1976). Publicou dois volumes de contos “Objeto Quase” (1978) e “Poética dos Cinco Sentidos” (1979).
Como romancista o autor se consagrou ao receber o “Prêmio Cidade de Lisboa” com “Levantando do Chão” (1980), que se tornou Best-Seller internacional.
Com as obras, “Memorial do Convento” (1982), “O Ano da Morte de Ricardo Reis” (1984), (Prêmio do Pen Clube Português, o Prêmio da Crítica, o Prêmio Dom Diniz e o Prêmio do Jornal The Independente), “A Jangada de Pedra” (1988) e “História do Cerco de Lisboa” (1989), desenvolveu uma espécie de historicismo fantástico.
José Saramago pertenceu à primeira Direção da Associação Portuguesa de Escritores. Foi presidente da Assembleia Geral da Sociedade Portuguesa de Autores, entre 1985 e 1994.
O escritor publicou um título no campo da literatura infanto-juvenil, “A Maior Flor do Mundo” (2001), livro escrito em parceria com o ilustrador João Caetano, que recebeu o Prêmio Nacional de Ilustração.
José Saramago faleceu em Tias, Espanha, no dia 18 de junho de 2010.
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Leia também:
José Saramago - Ensaio sobre a cegueira... O disco amarelo (01)
José Saramago - Ensaio sobre a cegueira... O médico perguntou-lhe (03)
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Mago Saramago - Caverna de Platão e as imagens
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Um homem subitamente deixa de ver, vítima de uma cegueira branca, que começa a se espalhar, causando caos na cidade. Mas será que o caos foi causado pela cegueira? Ou o caos já existia, mas só "visto" com a chegada da cegueira?
Neste livro, Saramago aguça fortemente todos os nossos sentidos, implicando "a responsabilidade de ter olhos, quando os outros os perderam".
Um ritmo alucinante de escrita que nos faz parar para pensar se respeitamos os valores mais básicos da sociedade.
É preciso cegarem-se todos, para que enxerguemos a essência de cada um?
Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara
A Pilar
A minha filha Violante
Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara
Livro dos Conselhos
Ao mover-se em direcção à sala de estar, e apesar da prudente lentidão com que avançava, deslizando a mão hesitante ao longo da parede, fez cair ao chão uma jarra de flores de que não estava à espera. Tinha-se esquecido dela, ou então fora a mulher que a deixara ali quando saiu para o emprego, com a intenção de colocá-la depois em lugar adequado. Baixou-se para avaliar a gravidade do desastre. A água espalhara-se pelo chão encerado. Quis recolher as flores, mas não pensou nos vidros partidos, uma lasca longa, finíssima, espetou-se-lhe num dedo, e ele tornou a lacrimejar de dor, de abandono, como uma criança, cego de brancura no meio duma casa que, com o declinar da tarde, já começava a escurecer. Sem largar as flores, sentindo o sangue a escorrer, torceu-se todo para tirar o lenço do bolso e, como pôde, envolveu o dedo. Depois, apalpando, tropeçando, contornando os móveis, pisando cautelosamente para não enfiar os pés nos tapetes, alcançou o sofá onde ele e a mulher viam a televisão. Sentou-se, pôs as flores em cima das pernas, e, com muito cuidado, desenrolou o lenço. O sangue, pegajoso ao tacto, perturbou-o, pensou que devia ser porque não podia vê-lo, o seu sangue tornara-se numa viscosidade sem cor, em algo de certo modo alheio que apesar disso lhe pertencia, mas como uma ameaça de si contra si mesmo. Devagarinho, apalpando levemente com a mão boa, procurou a delgada esquírola de vidro, aguda como uma espada minúscula, e, fazendo pinça com as unhas do polegar e do indicador, conseguiu extraí-la inteira. Tornou a envolver no lenço o dedo maltratado, com força para estancar o sangue e, rendido, exausto, reclinou-se no sofá. Um minuto mais tarde, por uma dessas não raras desistências do corpo, que escolhe, para renunciar, certos momentos de angústia ou de desespero, quando, se por a exclusiva lógica se governasse, todos os seus nervos deveriam estar despertos e tensos, entrou-lhe um espécie de quebranto, mais sonolência do que sono autêntico, mas tão pesada como ele. Imediatamente sonhou que estava a jogar o jogo do E se eu fosse cego, sonhava que fechava e abria os olhos muitas vezes, e que, de cada vez, como se estivesse a regressar de uma viagem, encontrava à sua espera, firmes e inalteradas, todas as formas e cores, o mundo como o conhecia. Por debaixo desta certeza tranquilizadora percebia, contudo, o remoer surdo de uma dúvida, talvez se tratasse de um sonho enganador, um sonho de que teria de acordar mais cedo ou mais tarde, sem saber, nesse momento, que realidade estaria à sua espera. Depois, se tal palavra tem algum sentido aplicada a um quebrantamento que não durou mais que uns instantes, e já naquele estado de meia vigília que vai preparando o despertar, considerou seriamente que não estava bem manter-se numa tal indecisão, acordo, não acordo, acordo, não acordo, sempre chega uma altura em que não há outro remédio que arriscar, Eu que faço aqui, com estas flores em cima das pernas e os olhos fechados, que parece que estou com medo de os abrir, Que fazes tu aí, a dormir, com essas flores em cima das pernas, perguntava-lhe a mulher.
Não esperara pela resposta. Ostensivamente, pusera-se a recolher os restos da jarra e a enxugar o soalho, enquanto ia resmungando, com uma irritação que não procurava dissimular, Bem o poderias ter feito tu, em lugar de te deitares para aí a dormir, como se não fosse nada contigo. Ele não falou, protegia os olhos por trás das pálpebras apertadas, subitamente agitado por um pensamento, E se eu abro os olhos e vejo, perguntava-se, tomado por uma ansiosa esperança. A mulher aproximou-se, reparou no lenço manchado de sangue, o seu agastamento apagou-se num instante, Pobrezinho, como foi que te aconteceu isto, perguntava compadecida, enquanto desfazia a improvisada atadura. Então ele. com todas as suas forças, desejou ver a mulher ajoelhada aos seus pés, ali, como sabia que estava, e depois. já certo de que a não veria, abriu os olhos, Até que enfim que acordaste, meu dorminhoco, disse ela, sorrindo. Fez-se um silêncio e ele disse, Estou cego, não te vejo. A mulher ralhou, Deixa-te de brincadeiras estúpidas, há coisas com que não devemos brincar, Quem me dera que fosse uma brincadeira, a verdade é que estou mesmo cego. Não vejo nada, Por favor, não me assustes, olha para mim, aqui, estou aqui, a luz está acesa, Sei que aí estás, ouço-te, toco-te, calculo que tenhas acendido a luz, mas eu estou cego. Ela começou a chorar, agarrou-se a ele, Não é verdade, dize-me que não é verdade. As flores tinham escorregado para o chão, sobre o lenço manchado, o sangue recomeçara a pingar do dedo ferido, e ele, como se por outras palavras quisesse dizer do mal o menos, murmurou, Vejo tudo branco, e logo deixou aparecer um sorriso triste. A mulher sentou-se ao lado dele, abraçou-o muito, beijou-o com cuidado na testa, na cara, suavemente nos olhos, Verás que isso passa, tu não estavas doente, ninguém fica cego assim, de um momento para outro, talvez, Conta-me como foi, o que sentiste, quando, onde, não, ainda não, espera, a primeira coisa que temos de fazer é falar com um médico dos olhos, conheces algum, Não conheço, nem tu nem eu usamos óculos, E se te levasse ao hospital, Para olhos que não vêem, não deve haver serviços de urgência, tens razão, o melhor é irmos directamente a um médico, vou procurar na lista dos telefones, um que tenha consultório perto daqui. Levantou-se, ainda perguntou, Notas alguma diferença, nenhuma, disse ele, Atenção, vou apagar a luz, já me dirás, agora, Nada, Nada, quê, Nada, vejo sempre o mesmo branco, para mim é como se não houvesse noite.
Ele ouvia a mulher passar rapidamente as folhas da lista telefônica, fungando para segurar as lágrimas, suspirando, dizendo enfim, Este deve servir, oxalá nos possa atender. Marcou um número, perguntou se era do consultório, se o senhor doutor estava, se podia falar com ele, não, não, o senhor doutor não me conhece, é por causa de um caso muito urgente, sim, por favor, compreendo, então digo-lho a si, mas peço-lhe que transmita ao senhor doutor, é que o meu marido ficou cego de repente, sim, sim, como lhe estou a dizer, de repente, não, não é doente do senhor doutor, o meu marido não usa óculos, nunca usou, sim, tinha uma óptima vista, como eu, eu também vejo bem, ah, muito obrigada, eu espero, eu espero, sim, senhor doutor, sim, de repente, diz que vê tudo branco, não sei como foi, nem tive tempo de lhe perguntar, acabo de chegar a casa e encontrei-o neste estado, quer que lhe pergunte, ah, quanto lhe agradeço, senhor doutor, vamos imediatamente, imediatamente. O cego levantou-se, Espera, disse a mulher, deixa-me curar primeiro esse dedo, desapareceu por uns momentos, voltou com um frasco de água oxigenada, outro de mercurocromo, algodão, uma caixinha de pensos rápidos. Enquanto o tratava perguntou-lhe, Onde foi que deixaste o carro, e subitamente, Mas tu, assim como estás, não podias conduzir, ou já estavas em casa quando, Não, foi na rua, quando estava parado num sinal vermelho, uma pessoa fez o favor de me trazer, o carro ficou aí na rua ao lado, Bom, então descemos, esperas à porta que eu o vou buscar, onde foi que puseste as chaves, Não sei, ele não mas devolveu, Ele, quem, O homem que me trouxe a casa, foi um homem, Tê-las-á largado por aí, vou ver, Não vale a pena procurares, ele não entrou, Mas as chaves têm de estar em algum sítio, O mais certo foi ter-se ele esquecido, levou-as sem se dar conta, Era mesmo isto o que nos faltava, Usa as tuas, depois logo se vê, Bem, vamos, dá-me cá a mão. O cego disse, Se vou ter de ficar assim, acabo com a vida, Por favor, não digas disparates, para infelicidade já basta o que nos sucedeu, Eu é que estou cego, não tu, tu não podes saber o que me sucedeu, O médico vai pôr-te bom, verás, Verei.
Saíram. Em baixo, no vestíbulo da escada, a mulher acendeu a luz e sussurrou-lhe ao ouvido, Espera-me aqui, se algum vizinho aparecer fala-lhe com naturalidade, diz que estás à minha espera, olhando para ti ninguém pensará que não vês, escusamos de estar já a dar notícia da nossa vida, Sim, mas não te demores. A mulher saiu a correr. Nenhum vizinho entrou ou saiu. Por experiência, o cego sabia que a escada só estaria iluminada enquanto se ouvisse o mecanismo do contador automático, por isso ia premindo o disparador de cada vez que se fazia silêncio. A luz, esta luz, para ele, tornara-se em ruído. Não entendia por que se demorava a mulher tanto, a rua era ali ao lado, uns oitenta, cem metros, Se nos atrasamos muito, o médico vai-se embora, pensou. Não pôde evitar um gesto maquinal, levantar o punho esquerdo e baixar os olhos para ver as horas. Apertou os lábios como se o tivesse traspassado uma súbita dor, e agradeceu à sorte não ter aparecido naquele momento um vizinho, pois ali mesmo, à primeira palavra que ele lhe dirigisse, se teria desfeito em lágrimas. Um carro parou na rua, Até que enfim, pensou, mas acto contínuo estranhou o barulho do motor, Isto é diesel, isto é um táxi, disse, e carregou uma vez mais no botão da luz. A mulher vinha a entrar, nervosa, transtornada, O santinho do teu protector, a boa alma, levou-nos o carro, Não pode ser. não deves ter visto bem, Claro que vi bem, eu vejo bem, as últimas palavras saíram-lhe sem ela querer, Tinhas-me dito que o carro estava na rua ao lado, emendou, e não está, ou então deixaram-no noutra rua, Não, não, foi nessa, tenho a certeza, Pois então levou sumiço, Nesse caso, as chaves, Aproveitou-se da tua desorientação, da aflição em que estavas, e roubou-nos, E eu que nem o quis deixar entrar em casa, por medo, se tivesse ficado a fazer-me companhia até tu chegares, não poderia ter roubado o carro, Vamos, temos o táxi à espera, juro-te que era capaz de dar um ano de vida para que esse malandro cegasse também, Não fales tão alto, E lhe roubassem tudo quanto tenha, Pode ser que apareça, Ah, pois, amanhã bate-nos aí à porta a dizer que foi uma distracção, a pedir desculpa, e a saber se estás melhorzinho.
Mantiveram-se calados até ao consultório do médico. Ela procurava afastar do pensamento o roubo do carro, apertava carinhosamente as mãos do marido entre as suas, enquanto ele, com a cabeça baixa para que o motorista não pudesse ver-lhe os olhos pelo retrovisor, não parava de perguntar-se como era possível que tão grande desgraça lhe estivesse a acontecer a ele, A mim, porquê. Aos ouvidos chegavam-lhe os ruídos do transito, uma ou outra voz mais alta quando o táxi parava, também às vezes sucede, ainda dormimos e já os sons exteriores vão repassando o véu da inconsciência em que ainda estamos envolvidos, como num lençol branco. Como num lençol branco. Abanou a cabeça suspirando, a mulher tocou-lhe ao de leve na face, maneira de dizer Sossega, estou aqui, e ele deixou pender a cabeça para o ombro dela, sem se importar com o que pensaria o motorista, Estivesses tu como eu, e não poderias ir aí a guiar, pensou infantilmente, e, sem reparar no absurdo do enunciado, congratulou-se por, em meio do seu desespero, ter sido ainda capaz de formular um raciocínio lógico. Ao sair do táxi, auxiliado discretamente pela mulher, parecia calmo, mas, à entrada do consultório, onde iria conhecer a sua sorte, perguntou-lhe num murmúrio que tremia, Como estarei eu quando sair daqui, e abanou a cabeça como quem já nada espera.
A mulher informou a empregada da recepção de que era a pessoa que há meia hora tinha telefonado por causa do marido, e ela fê-los passar a uma pequena sala onde outros doentes esperavam. Havia um velho com uma venda preta num dos olhos, um rapazinho que parecia estrábico acompanhado por uma mulher que devia de ser a mãe, uma rapariga nova de óculos escuros, duas outras pessoas sem sinais particulares à vista, mas nenhum cego, os cegos não vão ao oftalmologista. A mulher guiou o marido para uma cadeira livre, e, por não sobrar outro assento, ficou de pé ao lado dele, Vamos ter de esperar, murmurou-lhe ao ouvido. Ele percebeu porquê, ouvira vozes dos que ali se encontravam, agora afligia-o uma preocupação diferente, pensava que quanto mais o médico tardasse a examiná-lo, mais profunda a cegueira se tornaria, e portanto incurável, sem remédio.
Mexeu-se na cadeira, inquieto, ia comunicar as suas apreensões à mulher, mas nesse momento a porta abriu-se e a em pregada disse, Os senhores, por favor, passem, e dirigindo-se aos outros doentes, Foi ordem do senhor doutor, o caso deste senhor é urgente. A mãe do rapaz estrábico protestou que o direito é o direito, e que ela estava em primeiro lugar, e à espera há mais de uma hora. Os outros doentes apoiaram-na em voz baixa, mas nenhum deles, nem ela própria, acharam prudente insistir na reclamação, não fosse o médico ficar ressentido e depois pagar-se da impertinência fazendo-os esperar ainda mais, tem-se visto. O velho do olho vendado foi magnânimo, Deixem-no lá, coitado, aquele vai bem pior do que qualquer de nós. O cego não o ouviu, já iam a entrar no gabinete do médico, e a mulher dizia, Muito obrigada pela sua bondade, senhor doutor, é que o meu marido, e tendo dito interrompeu-se, em verdade ela não sabia o que realmente sucedera, sabia apenas que o marido estava cego e lhes tinham roubado o carro. O médico disse, Sentem-se, por favor, ele próprio foi ajudar o paciente a acomodar-se, e depois, tocando-lhe na mão, falou directamente para ele, Conte-me lá então o que se passa consigo. O cego explicou que estando dentro do carro, à espera de que o sinal vermelho mudasse, tinha ficado subitamente sem ver, que umas pessoas acudiram a ajudá-lo, que uma mulher de idade, pela voz devia ser. dissera que aquilo se calhar eram nervos, e que depois um homem o acompanhara a casa porque ele sozinho não podia valer-se, Vejo tudo branco, senhor doutor. Não falou do roubo do automóvel.
continua... 11
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José Saramago (1922-2010) foi um importante escritor português. Destacou-se como romancista, teatrólogo, poeta e contista. Recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, o Prêmio Camões, entre outros.
José Saramago nasceu em Azinhaga de Ribatejo, no concelho de Golegã, distrito de Santarém. Portugal, no dia 16 de novembro de 1922. Filho de camponeses com dois anos de idade mudou-se com a família para Lisboa.
José Saramago estreou na literatura com o romance “Terra do Pecado” (1947). Foi diretor literário de uma editora, jornalista e tradutor. Colaborou com vários jornais e revistas, entre eles, o Diário de Lisboa, A Capital e a Seara Nova, onde exerceu a função de cronista.
Sua trajetória literária passou por várias fases, a primeira, foi marcada pela poesia, com "Os Poemas Possíveis" (1966) e “Provavelmente Alegria” (1970), e pela crônica “Deste Mundo e do Outro” (1971).
A partir do final dos anos 70 dedicou-se ao teatro, escreveu “A Noite” (1979), peça que tem como cenário uma redação de um jornal na noite de 24 para 25 de abril de 1974. A peça recebeu o Prêmio da Associação de Críticos Portugueses.
A ficção de Saramago começou com o romance “Manual de Pintura e Caligrafia” (1976). Publicou dois volumes de contos “Objeto Quase” (1978) e “Poética dos Cinco Sentidos” (1979).
Como romancista o autor se consagrou ao receber o “Prêmio Cidade de Lisboa” com “Levantando do Chão” (1980), que se tornou Best-Seller internacional.
Com as obras, “Memorial do Convento” (1982), “O Ano da Morte de Ricardo Reis” (1984), (Prêmio do Pen Clube Português, o Prêmio da Crítica, o Prêmio Dom Diniz e o Prêmio do Jornal The Independente), “A Jangada de Pedra” (1988) e “História do Cerco de Lisboa” (1989), desenvolveu uma espécie de historicismo fantástico.
José Saramago pertenceu à primeira Direção da Associação Portuguesa de Escritores. Foi presidente da Assembleia Geral da Sociedade Portuguesa de Autores, entre 1985 e 1994.
O escritor publicou um título no campo da literatura infanto-juvenil, “A Maior Flor do Mundo” (2001), livro escrito em parceria com o ilustrador João Caetano, que recebeu o Prêmio Nacional de Ilustração.
José Saramago faleceu em Tias, Espanha, no dia 18 de junho de 2010.
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Leia também:
José Saramago - Ensaio sobre a cegueira... O disco amarelo (01)
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Mago Saramago - Caverna de Platão e as imagens
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Um homem subitamente deixa de ver, vítima de uma cegueira branca, que começa a se espalhar, causando caos na cidade. Mas será que o caos foi causado pela cegueira? Ou o caos já existia, mas só "visto" com a chegada da cegueira?
Neste livro, Saramago aguça fortemente todos os nossos sentidos, implicando "a responsabilidade de ter olhos, quando os outros os perderam".
Um ritmo alucinante de escrita que nos faz parar para pensar se respeitamos os valores mais básicos da sociedade.
É preciso cegarem-se todos, para que enxerguemos a essência de cada um?
Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara
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