Edgar Allan Poe - Contos
Aventuras de Arthur Gordon Pym
Título original: Narrative of A. G. Pym
Publicado em 1837
3 de agosto. — Nenhuma perspetiva de salvação e o brigue cada vez mais inclinado, de maneira que os nossos pés já não se conseguiam apoiar na coberta. Ocupamo-nos em pôr em segurança o vinho e os restos da tartaruga, de forma que não se perdessem no caso de o navio se virar. Arrancamos dois grandes pregos das mesas de enxárcia do traquete e, com o auxílio do machado, espetamo-los no costado de sotavento, a uma distância de certa de dois pés da água, o que não era muito longe da quilha, porque estávamos quase de lado. Aos pregos amarramos as nossas provisões, que nos pareceram em maior segurança do que no local onde as tínhamos anteriormente. Sofrimentos terríveis devido à sede; impossível tomar banho por causa dos tubarões que não nos abandonaram um instante; sono impossível.
4 de agosto. — Pouco antes do amanhecer, apercebemo-nos que o navio voltava a quilha para o ar e tentamos evitar sermos cuspidos no movimento. Primeiro, a revolução foi lenta e gradual e conseguimos, com facilidade, trepar até sotavento, pois tínhamos tido a feliz ideia de deixar pender uma das cordas que prendiam as provisões. Mas calculamos mal a aceleração da força do impulso, porque o movimento se tornou demasiado violento para nos permitir acompanhá-lo e, antes de percebermos o que se passava, sentimo-nos precipitados na água, submersos a vários pés de profundidade, com o enorme casco por cima de nós.
Ao mergulhar, fora obrigado a largar a minha corda e, sentindo que estava debaixo do navio e completamente sem forças, resolvi não fazer o mínimo esforço para me salvar e resignei-me a morrer. Mas, enganava-me mais uma vez, porque não me lembrara do ressalto natural do casco de sotavento. O turbilhão de água, causado por aquela revolução parcial do navio, trouxe-me à superfície ainda mais depressa do que tinha mergulhado. Ao vir à tona de água, encontrava-me, segundo os meus cálculos, a cerca de vinte jardas do casco do navio que estava de quilha para o ar, balançando em todas as direções, e o mar estava agitado e cheio de violentos turbilhões. De Peters não havia sombra. Uma barrica de óleo flutuava a alguns pés de mim, assim como outros objetos provenientes do brigue, espalhados ao acaso.
O meu principal terror foi os tubarões que sabia estarem perto. Para os afastar de mim, se tal fosse possível, batia violentamente na água com as mãos e com os pés, enquanto nadava para o casco e fazia muita espuma. Não duvido que foi este expediente, por mais simples que pareça, que me salvou a vida, porque, antes do brigue se voltar, o mar à nossa volta fervilhava de tal maneira com estes monstros que devo ter estado, e certamente estive, em contacto com eles durante o meu trajeto. Por um grande acaso e felizmente consegui chegar ao navio são e salvo, mas estava completamente esgotado pelo violento esforço que precisara fazer e nunca teria sido capaz de trepar sem a ajuda oportuna de Peters que, tendo trepado para a quilha pelo outro lado do navio, reapareceu, para grande alegria minha, e me atirou uma corda, uma das que tínhamos atado aos pregos.
Mal tínhamos escapado a este perigo e já a nossa atenção se detinha noutra iminência não menos terrível: morrer de fome. Todas as nossas provisões tinham desaparecido, arrastadas pelo mar, apesar do cuidado que tivéramos em colocá-las num sítio seguro. Não vendo qualquer possibilidade de arranjarmos outras, abandonamo-nos ao desespero e começamos a chorar como crianças, não tentando nenhum encorajar o outro. É difícil compreender a nossa fraqueza e aqueles que nunca se encontraram em semelhante situação julgarão que tudo isto é inverosímil, mas devem lembrar-se que a nossa inteligência estava tão desorganizada por aquela longa série de privações e de terrores, que, naquele momento, não podíamos ser considerados como seres racionais. Posteriormente, enfrentando perigos quase tão graves, senão mais graves, lutei com coragem contra todas as desgraças e Peters, como verão, mostrou uma filosofia estoica, quase tão inconcebível como o seu atual abandono e imbecilidade infantil; o estado de espírito é o responsável por esta diferença.
A viragem do brigue e mesmo as suas consequências, ou seja a perda do vinho e da tartaruga, não teriam tornado a nossa situação muito pior do que antes, se não tivessem desaparecido também os panos e as mantas, que nos tinham servido para recolher a água da chuva, assim como o cântaro onde a guardávamos, pois encontramos o casco, a partir de dois ou três pés da precinta até à quilha e toda esta, coberta por uma espessa camada de grandes percebes, que nos forneceram uma alimentação excelente, das mais nutritivas. Assim, o acidente que a princípio nos tinha causado tanto medo, acabou por nos trazer mais vantagens do que prejuízos, no que diz respeito a duas coisas muito importantes: tinha-nos descoberto uma mina de provisões, que não conseguiríamos esgotar num mês, e tinha contribuído grandemente para aliviar a nossa posição, já que, agora, nos encontrávamos muito mais à vontade e muito menos expostos do que antes.
No entanto, a dificuldade em obter água fazia-nos esquecer todos estes benefícios resultantes da mudança da nossa posição. Para podermos aproveitar, o mais possível, a primeira chuvada que caísse, despimos as camisas a fim de as utilizarmos como o tínhamos feito com os panos. Mas, é evidente, que por este meio, não esperávamos conseguir recolher mais do que um oitavo de pinto de cada vez, e mesmo assim em condições favoráveis. Durante todo o dia não apareceu uma nuvem sequer e o nosso sofrimento devido à sede tornou-se quase intolerável. A noite, Peters conseguiu dormir durante cerca de uma hora, um sono agitado, mas eu, devido à intensidade do meu sofrimento, não fechei os olhos um minuto que fosse.
5 de agosto. — Levantou-se uma fresca brisa que nos levou através de uma massa de algas, entre as quais tivemos a sorte de encontrar onze caranguejos pequenos, que constituíram uma refeição deliciosa. Como as carapaças eram muito tenras, também as comemos, mas verificamos que nos faziam muito mais sede que os percebes. Não vendo qualquer vestígio de tubarões entre as algas, aventuramo-nos a tomar banho e permanecemos na água durante quatro ou cinco horas, sentindo uma acentuada diminuição da nossa sede. Sentimo-nos muito reconfortados e, depois de apanharmos um pouco de sol, passamos uma noite menos penosa do que a anterior.
6 de agosto. — Fomos beneficiados com uma chuva forte e contínua que durou desde o meio-dia até perto da noite. Lamentamos então amargamente a perda do cântaro e da garrafa, porque, apesar da insuficiência dos meios de que agora dispúnhamos para recolher a água, teríamos enchido um dos recipientes, ou talvez até os dois. De qualquer maneira, conseguimos apaziguar os ardores da nossa sede, deixando as nossas camisas ficarem saturadas de água e espremendo-as depois, de forma a que o líquido precioso corresse para a nossa boca. Passamos todo o dia nesta ocupação.
7 de agosto. — Ao amanhecer, descobrimos, os dois ao mesmo tempo, uma vela a Leste que, sem dúvida, se dirigia para nós. Saudamos esta maravilhosa aparição com um longo e fraco grito de êxtase, e começamos imediatamente a fazer todos os sinais possíveis, a agitar as nossas camisas, a saltar tão alto quanto a nossa fraqueza nos permitia e até a gritar com quanta força tínhamos, embora o navio estivesse a uma distância superior a quinze milhas. Entretanto, continuava a aproximar-se de nós e verificamos que, se navegasse sempre na mesma direção, acabaria infalivelmente por passar muito perto de nós e por nos ver. Cerca de uma hora depois de o termos descoberto, já distinguíamos facilmente os homens na coberta. Tratava-se de uma escuna, comprida e baixa, com a mastreação muito inclinada para a popa, e parecia ter uma tripulação muito numerosa. Sentimos, então, uma terrível angústia, porque era praticamente impossível que não nos vissem, mas podia acontecer que não nos quisessem recolher, deixando-nos perecer sobre os destroços do nosso navio, ato de crueldade verdadeiramente diabólica que, por mais incrível que pareça, tem sido praticado por seres que são considerados como pertencentes à espécie humana. Mas, desta vez, e graças a Deus, isso não aconteceria, porque em breve notamos um movimento súbito na coberta do navio desconhecido, que içou o pavilhão inglês e que navegou direito a nós. Meia hora depois estávamos no camarote. A escuna era a Jane Guy de Liverpool; o seu capitão, Guy ; e o seu destino os mares do Sul e o Pacífico, para caçar focas e comerciar.
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Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense. Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica. Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.
Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).
Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.
Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.
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Edgar Allan Poe
CONTOS
Originalmente publicados entre 1831 e 1849
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