segunda-feira, 11 de maio de 2020

Stendhal - O Vermelho e o Negro: Os Prazeres do Campo (I-2)

Livro II 

Ela não é galante,
não usa ruge algum.

Sainte-Beuve



Capítulo I

OS PRAZERES DO CAMPO


O rus quanda ego te aspiciam! 

VIRGÍLIO



continuando...



À noite, Julien hesitou muito antes de ir ao teatro de variedades, tinha ideias estranhas sobre esse lugar de perdição.
Uma profunda desconfiança impediu-o de admirar a Paris viva, apenas os monumentos deixados por seu herói o sensibilizavam.
Eis-me no centro da intriga e da hipocrisia! Aqui reinam os protetores do abade de Frilair.
Na noite do terceiro dia, a curiosidade prevaleceu sobre o projeto de ver tudo antes de apresentar-se ao abade Pirard. Este explicou-lhe, num tom frio, o gênero de vida que o aguardava na casa do sr. de La Mole.

– Se, ao cabo de alguns meses, você não for útil, voltará ao seminário, mas pela boa porta. Irá alojar-se na casa do marquês, um dos maiores nobres da França. Vestirá o traje preto, mas como um homem que está de luto, não como um eclesiástico. Exijo que, três vezes por semana, prossiga seus estudos em teologia num seminário, onde farei que seja apresentado. Diariamente, ao meio-dia, você se instalará na biblioteca do marquês, que espera proveitá-lo para redigir cartas para processos e outros assuntos. O marquês escreve, em duas palavras, à margem de cada carta que recebe, o tipo de resposta que deve ser dada. Sustentei que, dentro de três meses, você teria condições de elaborar essas respostas, de modo que, de cada doze que apresentar ao marquês, ele possa assinar oito ou nove. Às oito horas da noite, colocará o escritório em ordem e, às dez, estará liberado.

É possível, continuou o abade Pirard, que alguma velha dama ou algum homem de voz suave faça-o entrever vantagens imensas ou, mais grosseiramente, ofereça dinheiro para mostrar as cartas recebidas pelo marquês...

– Ah! senhor!, exclamou Julien, corando.

– É singular, disse o abade com um sorriso amargo, que, pobre como é, e depois de um ano de seminário, ainda lhe restem essas indignações virtuosas. Deve ter sido bastante cego!

Seria a força do sangue?, disse o abade a meia voz, como se falasse a si mesmo. O que há de singular, acrescentou, olhando para Julien, é que o marquês o conhece... Não sei como. Ele oferece, para começar, um ordenado de cem luíses. É um homem que age apenas por capricho, é seu defeito; discutirá com você por coisas insignificantes. Se ele ficar satisfeito, seu ordenado poderá elevar-se até oito mil francos.
Mas veja bem, prosseguiu o abade num tom áspero, ele não lhe dá todo esse dinheiro por seus belos olhos. Trata-se de ser útil. Em seu lugar, eu falaria muito pouco e, principalmente, jamais falaria daquilo que ignoro.
Ah!, disse o abade, tomei informações para você; estava esquecendo a família do sr. de La Mole. Ele tem dois filhos, uma menina e um rapaz de dezenove anos, elegante por excelência e meio doido, que nunca sabe ao meio-dia o que fará às duas da tarde. Ele tem espírito e bravura, participou da guerra na Espanha. O marquês espera, não sei por quê, que você se torne amigo do jovem conde Norbert. Eu disse que você era um grande latinista, talvez ele espere que ensine ao filho dele algumas frases feitas, sobre Cícero ou Virgílio. Em seu lugar, nunca deixaria esse belo moço brincar comigo; e, antes de ceder a suas propostas muito polidas, mas um pouco estragadas pela ironia, faria que as repetisse mais de uma vez.
Não esconderei que o jovem conde de La Mole deve no início desprezá-lo, por ser apenas um pequeno burguês. Um antepassado dele foi da corte e teve a honra de ter a cabeça cortada na praça da Grève, em 26 de abril de 1574, devido a uma intriga política. Quanto a você, é filho de um carpinteiro de Verrières e, além disso, assalaria do do pai dele. Considere bem essas diferenças e estude a história dessa família no Moreri; todos os bajuladores que vêm jantar na casa fazem, de tempo em tempo, o que eles chamam de alusões delicadas.
Tenha cuidado com a maneira como responderá aos gracejos do conde Norbert de La Mole, chefe de esquadrão dos hussardos e futuro par de França, e não venha causar-me problemas no futuro.

– Penso, disse Julien corando muito, que eu não deveria sequer responder a um homem que me despreza.

– Você não faz ideia desse desprezo; ele se mostrará apenas por cortesias exageradas. Se você fosse um tolo, poderia deixar-se levar; se quiser fazer fortuna, deveria deixar-se levar.

– No dia em que tudo isso não mais me convier, disse Julien, eu seria visto como um ingrato se voltasse à minha pequena cela no 103?

– Certamente, respondeu o abade. Todos os bajula dores da casa o caluniarão, mas assumirei a responsabilidade. Adsum qui feci. Direi que fui eu que tomei essa resolução.

Julien estava magoado com o tom amargo e quase maldoso que observava no abade Pirard; esse tom ofuscava inteiramente sua última resposta.
O fato é que o abade tinha escrúpulos de consciência por gostar de Julien, e era com uma espécie de terror religioso que se intrometia tão diretamente no destino de um outro.

– Verá também, acrescentou com a mesma dureza e como se cumprisse um dever penoso, verá a sra. marquesa de La Mole. É uma senhora alta, loura, devota, altiva, perfeitamente polida e mais insignificante ainda. É filha do velho duque de Chaulnes, conhecido por seus preconceitos nobiliárquicos. Essa grande dama é uma espécie de resumo, em alto relevo, do que é, no fundo, o caráter das mulheres de sua condição. Ela não esconde que ter tido antepassados que foram às Cruzadas é a única vantagem que preza. O dinheiro vem muito depois: isso o surpreende? Não estamos mais na província, meu amigo.

No salão dela, verá vários grandes senhores falarem de nossos príncipes num tom de leviandade singular. Quanto à sra. de La Mole, ela baixa a voz, por respeito, sempre que nomeia um príncipe e sobretudo uma princesa. Não o aconselharia a dizer diante dela que Felipe II ou Henrique VIII foram monstros. Eles foram REIS, o que lhes dá direitos imprescritíveis ao respeito da parte de todos, principalmente da parte de indivíduos sem estirpe, como você e eu. No entanto, acrescentou o sr. Pirard, somos padres, pois ela o verá como tal; sendo assim, ela nos considera como camareiros necessários à sua salvação.

– Senhor, disse Julien, penso que não ficarei muito tempo em Paris.

– Muito bem dito; mas observe que não há fortuna, para um homem do nosso estado, senão através dos grandes senhores. Com essa coisa indefinível, ao menos para mim, que há no seu caráter, se não fizer fortuna será perseguido, não há meio-termo para você. Não se iluda. Os homens veem que não lhe dão prazer quando lhe dirigem a palavra; num lugar de sociabilidade como este, está condenado à desgraça se não obtiver o respeito alheio.

Que seria de você em Besançon, sem esse capricho do marquês de La Mole? Um dia compreenderá toda a singularidade do que ele faz por você e, se não é um monstro, terá por ele e sua família uma eterna gratidão. Quantos pobres abades, mais sábios que você, viveram anos em Paris, com os quinze vinténs da missa e os dez vinténs de seus argumentos na Sorbonne!... Lembre-se do que eu lhe contava, no último inverno, dos primeiros anos desse mau sujeito que é o cardeal Dubois. Acaso seu orgulho acredita-se com mais talento do que ele?
Eu, por exemplo, homem tranquilo e medíocre, esperava morrer em meu seminário; cometi a infantilidade de apegar-me a ele. Pois bem! Eu ia ser destituído quando apresentei minha demissão. Sabe qual era a minha fortuna? Tinha quinhentos e vinte francos de capital, nem mais nem menos; nem um único amigo, apenas dois ou três conhecidos. O sr. de La Mole, que eu nunca vira, tirou-me desse aperto; bastou-lhe dizer uma palavra e deram-me uma paróquia onde todos os fies são pessoas abastadas, acima dos vícios grosseiros, e cujo ordenado me envergonha, sendo tão desproporcional ao meu trabalho. Só estou lhe falando tanto assim para pôr um pouco de chumbo nessa cabeça.
Mais uma palavra: tenho a infelicidade de ser irascível; é possível que você e eu deixemos de nos falar. Se as altanarias da marquesa ou as zombarias de seu filho tornarem-lhe esta casa decididamente insuportável, aconselho-o a concluir seus estudos em algum seminário a trinta léguas de Paris, de preferência ao norte do que ao sul. No norte há mais civilização e menos injustiças; e, acrescentou baixando a voz, devo confessar que a proximidade dos jornais de Paris amedronta os pequenos tiranos.
Se continuarmos tendo prazer em nos ver, e se a casa do marquês não lhe convier, ofereço-lhe o cargo de meu vigário, e dividiremos pela metade o rendimento da paróquia. Devo-lhe isso e ainda mais, acrescentou, interrompendo os agradecimentos de Julien, pela oferta singular que me fez em Besançon. Se em vez de quinhentos e vinte francos eu não tivesse nada, você me teria salvo.
O abade abandonara o tom de voz cruel. Para sua grande vergonha, Julien sentiu-se com lágrimas nos olhos; morria de vontade de lançar-se nos braços do amigo: não pôde deixar de dizer-lhe, com o jeito mais viril que pôde ostentar:

– Fui odiado por meu pai desde o berço; era uma de minhas grandes infelicidades; mas não me queixarei mais da sorte; encontrei um pai no senhor.

– Certo, certo, disse o abade, embaraçado; depois, encontrando muito oportunamente uma frase de diretor de seminário: nunca se deve dizer a sorte, meu filho, diga sempre a Providência.

O fiacre parou; o cocheiro levantou a aldrava de bronze de um portão imenso: era a MANSÃO DE LA MOLE; e, para que os transeuntes não pudessem ter dúvidas, essas palavras liam-se num mármore escuro acima do portão.
Essa ostentação desagradou a Julien. Eles têm tanto medo dos jacobinos! Vêem um Robespierre e sua charrete atrás de cada sebe; com isso fazem-se ridículos; no entanto assinalam sua casa para que a canalha a reconheça em caso de rebelião e a saqueie. Comunicou seu pensamento ao abade Pirard.

– Ah! Pobre criança, você logo será meu vigário. Que ideia espantosa lhe ocorreu!

– Não vejo nada mais simples, disse Julien.

A gravidade do porteiro e sobretudo a limpeza do pátio encheram-no de admiração. O dia estava ensolarado.

– Que arquitetura magnífica!, disse ao amigo.

Era uma daquelas mansões de fachada insípida do bairro Saint-Germain, construídas no tempo da morte de Voltaire. Jamais a moda e o belo estiveram tão distantes um do outro.




continua página 169...
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ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.


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Henri-Marie Beyle, mais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.


Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.

Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.

"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.

Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.

Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.

Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.

Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.

O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.



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Leia também:



Stendhal - O Vermelho e o Negro: Os Prazeres do Campo (I-2)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Entrada na Sociedade (II)




muitos spoilers... se não quer saber, não assista o vídeo abaixo:








"Já vivi o suficiente para ver que a diferença provoca o ódio."




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