quinta-feira, 28 de maio de 2020

Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (3)

Diante da Dor dos Outros





para David







… aux vaincus!
Baudelaire




A sórdida mentora, a Experiência...
Tennyson








1.


continuando...



Por longo tempo algumas pessoas acreditaram que, se o horror pudesse ser apresentado de forma bastante nítida, a maioria das pessoas finalmente apreenderia toda a indignidade e a insanidade da guerra.

Catorze anos antes de Woolf publicar Três guinéus — em 1924, no décimo aniversário da mobilização nacional alemã para a Primeira Guerra Mundial —, Ernst Friedrich, um dos homens que, por razões morais ou religiosas, se recusaram a pegar em armas ou servir nas forças armadas —, publicou o seu Krieg dem Kriege! (Guerra contra guerra!). Trata-se de fotografia como terapia de choque: um álbum com mais de 180 fotos, em sua maioria retiradas dos arquivos militares e médicos da Alemanha, muitas delas consideradas impublicáveis pelos censores do governo, durante a guerra. O livro começa com fotos de soldados de brinquedo, canhões de brinquedo e outras diversões de meninos do mundo inteiro, e se encerra com fotos tiradas em cemitérios militares. Entre os brinquedos e os túmulos, o leitor tem um martirizante roteiro fotográfico de quatro anos de ruína, morticínio e degradação: páginas de igrejas e castelos demolidos e saqueados, aldeias arrasadas, florestas devastadas, navios de passageiros torpedeados, veículos destroçados, homens que — por razões religiosas ou morais — se recusaram a guerrear enforcados, prostitutas seminuas em bordéis militares, soldados agonizantes depois de um ataque de gás venenoso, crianças armênias esqueléticas. Quase todas as imagens de Guerra contra guerra! são difíceis de olhar, em especial as fotos de soldados mortos, pertencentes aos vários exércitos, apodrecendo aos montes em campos e estradas e nas trincheiras da linha de frente. Mas, sem dúvida, as páginas mais insuportáveis desse livro, todo ele concebido para horrorizar e desmoralizar, encontram-se na parte intitulada “A face da guerra”, 24 closes de soldados com imensos ferimentos no rosto. E Friedrich não cometeu o erro de supor que fotos de virar o estômago e de partir o coração simplesmente falariam por si mesmas. Cada foto tem uma legenda pungente em quatro idiomas (alemão, francês, holandês e inglês), e a perversidade da ideologia militarista é recriminada e escarnecida a cada página. Imediatamente denunciada pelo governo, por associações de veteranos e por outras organizações patrióticas — em determinadas cidades, a polícia invadiu as livrarias, e abriram-se processos contra a exibição pública das fotos —, a declaração de guerra de Friedrich contra a guerra foi aclamada pela ala esquerda dos escritores, artistas e intelectuais, bem como pelos membros de numerosas ligas antibelicistas, que predisseram para o livro uma influência decisiva sobre a opinião pública. Em 1930, Guerra contra guerra! havia tido dez edições na Alemanha e fora traduzido para muitas línguas.

Em 1938, ano em que Woolf publicou Três guinéus, o célebre cineasta francês Abel Gance mostrou, em close, alguns exemplos da população de ex-combatentes horrendamente desfigurados e, em geral, mantidos ocultos — les gueules cassées (“os caras quebradas”), como eram chamados em francês — no clímax do seu novo filme J’accuse. (Gance fizera uma versão anterior, primitiva, do seu incomparável filme antibelicista, com o mesmo título consagrado, em 1918-19.) A exemplo da parte final do livro de Friedrich, o filme de Gance termina em um novo cemitério militar, não só para nos lembrar quantos milhões de jovens foram sacrificados ao militarismo e à inépcia entre 1914 e 1918 na guerra acalentada como “a guerra para pôr fim a todas as guerras”, mas também para sugerir a condenação sagrada que aqueles mortos seguramente fariam recair sobre os políticos e os generais da Europa, se soubessem que, vinte anos mais tarde, outra guerra seria iminente. “Morts de Verdun, levez-vous!” (Mortos de Verdun, levantem-se!), grita o veterano ensandecido, protagonista do filme, e repete sua conclamação em alemão e em inglês: “Seu sacrifício foi em vão!”. E a vasta planície mortuária vomita sua multidão, um exército de fantasmas claudicantes, em uniformes esfarrapados, com rostos mutilados, que se erguem de seus túmulos e partem em todas as direções, causando pânico em massa entre a turba já mobilizada para a nova guerra pan-européia. “Encham seus olhos com esse horror! É a única coisa capaz de detê-los!”, grita o louco para a multidão dos vivos em debandada, que o recompensa com uma morte de mártir, após o que ele se integra aos camaradas mortos: um mar de fantasmas impassíveis que faz submergir os futuros combatentes e vítimas de la guerra de demain, que se encolhem de medo. A guerra derrotada pelo apocalipse.

E no ano seguinte veio a guerra.


*Não obstante sua condenação da guerra, Weil procurou participar da defesa da República Espanhola e da luta contra a Alemanha de Hitler. Em 1936, foi para a Espanha como voluntária não-combatente em uma brigada internacional; em 1942 e no início de 1943, viveu em Londres como refugiada e, já doente, trabalhou nos escritórios da França Livre e quis ser enviada em missão à França Ocupada. (Ela morreu num hospital inglês em agosto de 1943.)



continua pág 48...

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Diante da Dor dos Outros




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Leia também:

Susan Sontag - Na Caverna de Platão (01)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (2)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (1)




"Quando o mundo estiver unido
na busca do conhecimento, e
não mais lutando por dinheiro e
poder, então nossa sociedade
poderá enfim evoluir a um novo
nível."




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Diante da dor dos outros

Carta Capital



A contundência da fotografia do fotógrafo sul-africano Kevin Carter, em que a criança faminta é observada por um abutre em um cenário desolado no Sudão, remete diretamente à história da fotografia que, a partir de 1890, reivindica o status de obra de arte.

Indiretamente, porém, ela aponta para as relações entre estética e ética, presentes na reflexão filosófica, desde o final do século XVIII, na qual se sublinhava que a arte poderia provocar uma empatia (simpatia, na época) que estaria na origem dos nossos juízos morais.

Para o filósofo David Hume (1711-1776), a simpatia é a inclinação que todos os homens possuem a participar dos sentimentos dos outros.

Essa tendência a compartilhar sentimentos e inclinações explica, na estética, o prazer produzido pelas obras de arte, e que decorre do fato de que participamos afetivamente daquilo que contemplamos.

A formação do juízo moral se dá, sobretudo, a partir de um recuo contemplativo por meio do qual o espectador considera as causas que determinam a formação do sofrimento do outro.

O espectador, porque está afastado da cena, transporta-se pela imaginação para a posição do agente.
O problema do distanciamento contemplativo ressurge, no século XX, especialmente com a fotografia, quando o sofrimento extremo é exibido por toda parte

Em todo caso, se a fotografia não copia, mas “emana” da realidade, no sentido entendido por Roland Barthes “de que uma foto sempre traz consigo seu referente”, é porque todo ato fotográfico é interpretativo, um enquadramento que exclui algo.

Como definiu Philiphe Dubois, o ato fotográfico é uma nova forma de pensamento, ou seja, um “jogo baseado no princípio de distância e aproximação”.

Se diante de uma pintura, por exemplo, espera-se um olhar estético, contemplativo, diante da fotografia e sua impressão de proximidade e autenticidade, exige-se um olhar ético e uma ação de reparação imediata.

Susan Sontag (1933-2004), em Diante da dor dos outros, pergunta se de fato o horror apresentado de forma tão nítida, ainda teria algum apelo moral.
Desde o fim da I Guerra Mundial (1914-1918) estamos acostumados a ver à distância, por meio da fotografia, a dor de outras pessoas.

Em uma era sobrecarregada de informação, com o crescimento da mídia sensacionalista e sua caçada por imagens dramáticas, o sofrimento humano vira clichê.

Se a câmera Leica com filmes de 35mm podia bater 36 fotos, antes de carregar a câmara, permitindo tirar fotos no calor da batalha, hoje as tecnologias digitais e as transmissões via satélite registram instantaneamente o aqui e agora; enquanto as imagens televisivas, repetidas insistentemente, esvaziam seu efeito.

Em reação ao aumento da produção das imagens, surge o fotojornalismo ético e artístico, cujo fundador é Robert Capa (1913-1945) e, os discípulos, os fotógrafos sul-africanos do Bang Bang Club, como o próprio Kevin Carter, advogando que só tem sentido fotografar o horror se a foto contribuir para acabar com ele.

Para Susan Sontag, enquanto a fotografia funcionar como terapia de choque e conseguir ferir o espectador, evitar-se-á tanto a espetacularização das imagens como a banalização do horror.

Diante da foto feita por Carter, no Sudão, em 1993, surgem questões éticas. Nela, a vida e a morte são sintetizadas na criança famélica, cujo rosto não é exibido, apenas um corpo debilitado que é mirado pelo abutre.

Em primeiro lugar cabe perguntar: a violação do corpo da criança pode servir à causa moral? Não haveria no corpo involuntariamente exposto, um abuso estético?
A foto sugere que ele é vitimado triplamente: pela fome, natureza e pelo olhar fotográfico.

A imagem, nesse sentido, reitera vários lugares comuns, que tomamos como pressupostos: sabemos que é da África, lá a inanição é esperada, parece não ser necessária a autorização para a divulgação da imagem, já que, sabemos, trata-se de um continente no qual tal ocorrido é comum.

Em seguida, deparamo-nos com nosso segundo dilema ético: não há uma urgência dramática na cena? Não deveríamos salvar a criança antes de realizar seu registro fotográfico? O que é mais relevante, ser testemunha do que acontece ou agir imediatamente na direção do bem?

Sabemos que a criança sobreviveu à fome e ao abutre, no entanto, como diz Jean Galard, “fotografar é, em essência, um ato de não intervenção”.


Em defesa do ato fotográfico e artístico, podemos assinalar que não se trata apenas de documentar a calamidade infantil, mas de associá-la aos temas das guerras e às fomes que delas decorrem.
O sofrimento não é fruto do acaso, do destino, mas da má atuação dos homens.

Se as imagens são expostas em um lugar no qual circulam como mercadorias, a atenção despertada é ligeira e distraída, provocando apenas uma comoção transitória.

Quando contemplada reflexivamente em silêncio, uma foto de horror sugere um contexto, que põe em perigo o espectador, desestabilizando-o e levando-o a exigir ação imediata para impedir que o horror anunciado continue.

Por fim, recordar imagens que apresentam, em um instante conciso, a complexidade do mundo é um ato ético, pois por meio dele é possível a constituição de uma memória do nosso sofrimento.

Entender a fotografia como memória significa, para Galard, legitimar a decisão de “fixar um instante que se sente que deve ser retido a qualquer preço”, para que não se perca no esquecimento. Nos termos de M. Ignatieff, “dar certa beleza ao horror para que se torne inesquecível”.


*Arlenice Almeida da Silva é doutora em Filosofia pela USP e professora da Unifesp


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