sábado, 9 de maio de 2020

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (18)

 Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1


1
Estudos de Costumes 
- Cenas da Vida Privada



Memórias de duas jovens esposas





PRIMEIRA PARTE




XVIII – A SRA. DE L’ESTORADE A LUÍSA DE CHAULIEU



Abril


Querido anjo, ou quem sabe se seria melhor dizer: querido demônio? Afligiste-me sem querer, e, se não fôssemos duma única alma, eu diria que me feriste, mas não nos ferimos também a nós mesmas? Vê-se muito bem que ainda não detiveste teu pensamento na palavra indissolúvel, aplicada ao contrato que une uma mulher a um homem! Não quero contradizer nem os filósofos nem os legisladores, eles são bem capazes de contradizer-se; mas, querida, ao tornar o casamento irrevogável e impondo-lhe uma fórmula igual para todos e implacável, fizeram de cada união uma coisa inteiramente dessemelhante, tão dessemelhante quanto os indivíduos o são entre si; cada um deles tem as suas diferentes leis interiores: as de um casamento no campo, no qual dois seres estarão incessantemente em presença um do outro, não são as de um matrimônio na cidade, onde um maior número de distrações ameniza a vida; e as de um casal em Paris, onde a existência se escoa com uma torrente, não serão as de um matrimônio na província, onde a vida é menos agitada. Se as condições variam segundo os lugares, variam ainda mais segundo os caracteres. A mulher de um homem de gênio nada mais tem a fazer do que se deixar guiar, e a mulher de um tolo deve, sob pena dos maiores desastres, apoderar-se da direção da máquina, se se sente mais inteligente do que ele. É possível, afinal de contas, que a reflexão e a razão alcancem ao que se chama depravação. Para nós, depravação não é o cálculo nos sentimentos? Uma paixão que raciocina é depravada; somente é bela se involuntária e naqueles sublimes arrebatamentos que excluem qualquer egoísmo. Ah! Cedo ou tarde a ti mesma dirás, querida: “Sim! A falsidade é tão necessária à mulher quanto o seu espartilho, se por falsidade queremos designar o silêncio da que tem a coragem de calar-se, se por falsidade designamos o necessário cálculo do futuro”. Toda mulher casada aprende à própria custa as leis sociais, que em muitos pontos são incompatíveis com as da natureza. A gente pode ter doze filhos quando casa na nossa idade, e, se os tivéssemos, cometeríamos doze crimes, faríamos doze desgraças. Não seria destinar seres encantadores à miséria e ao desespero? Ao passo que dois filhos são duas felicidades, duas mercês, duas criações em harmonia com os costumes e as leis atuais. A lei natural e o código são dois inimigos, e nós somos o terreno no qual eles se digladiam. Denominarás depravação a previdência da esposa que cuida que a família não se arruíne por si mesma? Um único cálculo ou mil, tudo se perde no coração. Esse cálculo atroz vós o fareis um dia, bela baronesa de Macumer, quando fordes a esposa feliz e orgulhosa do homem que vos adora; ou antes, esse homem superior vo-lo poupará, pois que ele mesmo o fará. Já vês, querida louquinha, que estudamos o código nas suas relações com o amor conjugal. Deves saber que somente a Deus e a nós mesmas temos de prestar contas dos meios que empregamos para perpetuar a felicidade no interior de nossas casas: e mais vale o cálculo que tal consegue do que o amor irrefletido que traz o luto, as dissensões ou a desunião. Estudei cruelmente o papel da esposa e da mãe de família. Sim, querido anjo, temos de recorrer a mentiras sublimes para sermos as nobres criaturas que somos ao cumprir nossos deveres. Tachas-me de falsa porque quero medir, dia a dia, para Luís, o conhecimento de mim mesma; mas não é acaso um conhecimento demasiado íntimo que provoca as desuniões? Quero ocupá-lo muito, para muito distraí-lo de mim, em nome de sua própria felicidade; e não é esse o cálculo da paixão? Se a ternura é inesgotável, o amor não o é; por isso constitui uma verdadeira empresa para uma mulher honesta distribuí-lo sensatamente por toda a vida. Arriscando-me a parecer-te execrável, dir-te-ei que persisto nos meus princípios, considerando-me muito grande e muito generosa. A virtude, mimosa, é um princípio cujas manifestações diferem segundo os meios: a virtude da Provença, a de Constantinopla, a de Londres e a de Paris têm efeitos perfeitamente diferentes, sem por isso deixar de ser virtudes. Cada vida humana oferece, no seu tecido, as mais irregulares combinações; vistas, porém, de certa altura, todas se assemelham. Se eu quisesse ver Luís infeliz e provocar uma separação de corpos, não precisaria mais do que deixá-lo pôr-me uma corrente. Não tive, como tu, a sorte de encontrar um homem superior, mas é possível que venha a ter o prazer de torná-lo superior, e para isso, marco-te um encontro, daqui a cinco anos, em Paris. Tu mesma ficarás surpreendida e me virás dizer que eu me enganei e que o sr. de l’Estorade era inatamente extraordinário. Quanto a esses belos amores, a essas emoções que somente experimento através de ti; quanto a essas sentinelas noturnas na sacada, à luz das estrelas; quanto a essas adorações excessivas, a essas divinizações de nós, soube que devia desistir delas. Teu desabrochamento na vida irradia à tua vontade; o meu é circunscrito, encerrado nos limites da Crampade: e tu me censuras as precauções exigidas por uma frágil, uma secreta, uma pobre felicidade, a fim de se tornar durável, rica e misteriosa! Eu julgava ter achado as seduções de uma amante no meu estado de mulher, e tu quase me fizeste corar de mim mesma. Das duas, quem tem razão, quem está errada? É bem possível que ambas estejamos em erro e tenhamos razão, e possivelmente a sociedade nos vende muito caro os nossos enfeites, os nossos títulos e os nossos filhos! Eu tenho as minhas camélias vermelhas, estão nos meus lábios, em sorrisos que florescem para esses dois seres, o pai e o filho, aos quais sou dedicada, simultaneamente escrava e senhora. Mas, querida! Tuas últimas cartas fizeram-me entrever tudo o que perdi! Fizeste-me conhecer a extensão dos sacrifícios da mulher casada. Eu apenas tinha passeado os olhos por sobre as belas estepes selvagens onde corres e saltas, e não te falarei de algumas lágrimas que enxuguei ao ler-te; mas o pesar não era remorso, embora parente próximo. Disseste-me: “O casamento nos torna filosofas!”. Infelizmente, não: bem o senti, quando chorei ao ver-te arrastada na torrente do amor. Meu pai, porém, fizera-me ler um dos mais profundos escritores da nossa província, um dos herdeiros de Bossuet, um desses cruéis políticos cujas páginas engendram a convicção. Enquanto lias Corina, [132] eu lia Bonald, [133] e é esse o segredo de minha filosofia: apresentou-se-me a família santa e forte. Segundo Bonald, teu pai tinha razão no seu discurso. Adeus, minha querida imaginação, minha amiga, tu que és a minha loucura!




pg 273...
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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.

Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844.[1] Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).

Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava.[1] De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.


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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Balzac, Honoré de, 1799-1850. 
          A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac;                            orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São                  Paulo: Globo, 2012. 

          (A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1                    0.000 kb; ePUB 

1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série. 

12-13086                                                                               cdd-843 

Índices para catálogo sistemático: 
1. Romances: Literatura francesa 843

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[130] Todas as argúcias minuciosas das mulheres de Cyrus e da Astrée: trata-se de Le Grand Cyrus, romance À clef heroico-precioso, da srta. de Scudéry (1608-1701), e Astrée, romance pastoral de Honoré d’Urfé (1568-1625), obras que nos parecem hoje frívolas e de um gosto bastante duvidoso, cheias de minúcias psicológicas e de infinitas complicações sentimentais.

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Leia também:

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Honoré Balzac - A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (19)

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[132] Corina (1807): famoso romance de Madame de Staël, de tendência “feminista”; a heroína é uma poetisa genial que não encontra seu lugar na sociedade.

[133] Bonald: Visconde Luís de Bonald (1754-1840): fundador da filosofia “tradicionalista”, político e teórico da extrema direita, é um dos autores preferidos de Balzac. Autor de várias obras, entre as quais o Ensaio analítico sobre as leis naturais da ordem social, a Teoria do poder político e religioso etc., foi o campeão da proibição do
divórcio.

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5 Curiosidades: HONORÉ DE BALZAC






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