Manoel Bomfim
O Brasil Nação volume 2
SEGUNDA PARTE
TRADIÇÕES
À glória de
CASTRO ALVES
Potente e comovida voz de revolução
CASTRO ALVES
Potente e comovida voz de revolução
capítulo 8
A Revolução Republicana
§ 75 – Ordem...
O povo brasileiro, mesmo no estado de ineducação política em que se encontra, é dos mais próprios para o regime de liberdade. As suas benéficas tendências de solidariedade, a cordial mansidão do seu caráter, indispõem-no para as desordens facciosas. Entregue a si mesmo, ele viveria em boa harmonia, sob a direção legal de autoridades que apenas simbolizem essa harmonia. Naquelas partes dos nossos sertões, deixados aos humildes naturais, o tradicional sertanejo, sob autoridades que mal se pronunciam, manifesta mais humanidade, mais realidade moral do que a média dos que vivem nos centros ostensivamente contidos pela férula oficial. Se há crises de crimes, aí se impõe a força; mas afora tais casos de exceção, a vida se conduz na cordialidade dos bons instintos, de harmonia e bondade. São formas espontâneas, que se ligam, ainda, à vida simples dos primeiros tempos, à própria vida da tribo no seu comunismo de coração. Se dadas tais condições naturais, o Brasil tivesse tido a formação democrática da América inglesa, por exemplo, seríamos hoje, certamente, um povo bem próximo da legítima liberdade política. Em vez disto, tivemos, na quadra decisiva, o asfixiante absolutismo bragantino, até atingir, como excelência, a aura política do prepotente, cruel e pretensioso Pombal, coveiro dos vestígios de liberdade política da colônia. E o Brasil teve de ligar, desde sempre, os seus anseios de liberdade à extinção do inexorável regime em que era governado. Sim: abrindo os olhos para a vida política, o Brasil teve de ver o Estado – ordem, sob a férula de um algoz, o inimigo, o exator. O natural patriotismo ungiu-se de ódio, e foi nativismo intransigente, a desejar a destruição de tudo que era estabilidade, confundida em domínio. Veio a burla da Independência. Com José Bonifácio, a política tendia a nacionalizar-se, mas nunca foi ensaio de liberdade. Por isso mesmo, afastando-se o velho Andrada, o príncipe lusitano não teve consigo a nação brasileira que a ele se impôs em gesto de rebeldia, e o eliminou – em 1831. Por todo esse período – de 1823 a 31, viveu esta pátria subjugada ao trono, tão antinacional como antipático à liberdade. Mas, como a nação brasileira aspirava instantemente por ser livre e senhora dos seus destinos, apesar do prestígio imperial, chamada a dar representantes seus, elegeu uma maioria que se apresentava como liberal, brasileira, e, assim, oposicionista ao príncipe, Foi uma prova de que podíamos ter regime democrático. Se os dirigentes fossem capazes de realizá-lo, bastaria que deixassem a nação continuar a manifestar- -se, limitando-se, eles, a serem os executadores da política consagrada na opinião. Mas todos aqueles políticos, mentalidades já tomadas pela tradição, realizando os processos que desde sempre os amoldaram, fizeram-se mandões, sem outra atividade que a do arbítrio... ou do servilismo. O próprio Feijó, com tantas virtudes políticas, tão convencido da necessidade de um regime de opinião, tão nacionalmente brasileiro: foi incapaz de realizar a liberdade, e, em nome da ordem, sacrificou a liberdade, subjugando definitivamente a exaltação, taxada de desordem, e que nos daria democracia livre. Nesse momento se anulou o longo esforço do Brasil para remir-se das acumuladas tiranias. A ordem passou a fazer o motivo essencial, exclusivo, da política, justificando todos os ataques à liberdade, e as seguidas injúrias à justiça.
Dessa ordem, em que impa a incapacidade dos nossos mandões, eles inçaram-se ao dogma da autoridade, justificação do culto ao prestígio da autoridade... Já não há, no caso, nenhuma preocupação de bem geral, senão garantir o privilégio no usufruto do poder, a vaidade de onipotência. Se perscrutamos para achar o ideal em que se elevam, é esse mesmo: ordem, expressão incontestada do governo – significação de domínio, eliminação da liberdade... Nem se lhes fale de uma ordem viva, fecunda harmonia ativa através das necessárias transmutações em que as sociedades se renovam. Não entendem disso, os nossos dirigentes. Para que a sociedade lhes pareça ordenadamente organizada, é preciso que a sintam subordinada, imóbil, petrificada, ou podre na estagnação. Poder só tem significação, na consciência deles, como domínio e arbítrio. Inúteis para o bem, não podem compreender que haja ordem, isto é, disciplina social em atividades livres, e que a autoridade só exista como proteção contra a tirania, em fórmula explícita de solidariedade. Como esperar que, numa tal ideologia, haja lugar para legitimidade das mutações, a que eles chamam de desordens? O que sabem da cinemática, da vida e do universo, não lhes dá para reconhecer que não há realização, orgânica, social, ou cósmica, nessa forma de ordem, passiva e fixa. A natureza se multiplica, os mundos persistem, em movimentos de ostensiva desordem. Assim desabrocha a flor, e se derramam as sementes, e vem para a vida cada novo ser em que ela se enriquece e se propaga. O próprio amor tem de passar do carinho à veemência, até os transes do espasmo. O oceano palpita e vive na fúria dos vagalhões, na tormenta das tempestades. A terra freme e se refaz na convulsão dos terremotos, que deslocam e arrasam, com o jorro das lavas, os milenários estratos acamados; a atmosfera depura-se e equilibra-se na desordem das procelas e dos vendavais; o nosso mundo gira em torno do eterno e sublime dardejar das tumultuosas chamas solares. Pelo resto dos espaços, cataclismos estelares reformam repetidamente as paisagens celestes. Pois que vida é incessante transformação, nunca será – nem simples desenvolvimento uniforme, nem queda para a paralisia, nem a desordem caótica, mas uma fatal evolução, por entre crises de aparente desordem, onde se extinguem as formas esgotadas, e se definem as novas formas.
Sempre incapazes, são eles, dirigentes, que na realização de ordem passiva, pura subordinação, provocam a desordem. Só há uma possibilidade, na vida social, de ordem durável – a inteira liberdade democrática, a coberto da tirania das classes, e que garanta as propagandas de reforma, com plena manifestação de opiniões. Toda outra ordem, na imposição cativadora, será provocação à rebeldia das revoluções sangrentas, ou o declínio por asfixia, para a morte em que se sumiram grandes Estados e gloriosas tradições. E com isso, num caso ou no outro, estorva-se, ou anula-se, a evolução humanizante em que se organizam as concepções de progresso social. Se há um índice de superioridade política, entre os regimes atuais, é este: a essência da justiça está em buscar formas de expansão, sem admitir restrições de liberdade, a não ser contra o crime, e não reconhecer distinções perante a lei, além dos deveres em prol do bem comum. Então, verifica-se que nos povos mais cultos e bem organizados, há, por necessidade de resistência, as campanhas sociais. E ainda quando a democracia integral não se realize, impõe-se como inferior necessidade de forma política. Nos povos, hoje, mais cultos e mais aproximadores da justiça, o Estado é, de fato, o instrumento de domínio, de uma burguesia fortificada nas posições de mando e privilegiada no capitalismo. Todavia, é tal a evidente necessidade de instituições liberais que à classe dominante transige com a democracia, apela para as propagandas, corteja a opinião, e, na prática, aparenta religioso respeito à expressão das urnas. Os espoliadores nem sempre iludem: todavia, defendem intransigentemente essa miragem de democracia, possibilidade para as massas – de elevarem os olhos e de soltar as vozes, para a conquista da legítima democracia na eliminação de todo domínio de classes.
Haverá muita miséria na política; a organização do poder é tal que a classe dirigente se sente garantida contra as justas reivindicações dos espoliados; mas a verdade eleitoral existe, e o governo reflete a opinião dos que têm meios de pronunciá-la. O direito se institui, então, como conciliação entre a liberdade – dos que formam a opinião e as necessidades sociais mais patentes. E a justiça, se não é perfeita, tem pelo menos mais possibilidades do que nos regimes fechados na tirania. Destarte, explica-se que: sendo a democracia o contrassenso, pois que a maioria não está em condições de bem escolher os seus representantes, ainda assim, é o regime mais próximo da justiça, o mais consentâneo com o progresso social... Entre os indivíduos humanos há, bem sabemos, semelhanças e diferenças: a sociedade, que é generalização de relações, assenta nas semelhanças, e progride em virtude das diferenças. As semelhanças consistem nessa absoluta analogia de consciências, que permite aos homens entenderem-se e solidarizarem-se para realizações comuns. E nisto sintetiza-se a vida social. Então, instintivamente, têm os povos procurado, como fórmula substancial de organização política nacional, a estrita igualdade de direitos, com a soberania democrática, e que contém um ânimo da liberdade política. A igualdade atende às necessidades íntimas de afirmação pessoal, e permite a plena expansão da solidariedade; a realização democrática dá possibilidades de reforma parcial e de propaganda para a renovação integral, sem atentar contra a mesma condição de igualdade: todos os valores individuais se podem revelar e produzir efeitos; mas as reformas só se fazem mediante propaganda, com o franco exame nas consciências. É a tirania do número, a submissão à maioria... sofisma o despotismo essencial. Maioria e tirania são condições absolutamente antagônicas. Por definição tirania é o peso do poder sobre a maioria e a única tirania admissível é a do grande número, feita necessariamente dos que eram espoliados, e que se rebelam em justas reivindicações. E não será tirania, desde que se consagre a franca manifestação das maiorias como propaganda dos seus ideais.
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"Manoel Bomfim morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."
Cecília Costa Junqueira
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Bomfim, Manoel, 1868-1932
O Brasil nação: vol. II / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 392 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 31).
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