sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Dostoiévski - O Idiota: Primeira Parte (7a.) Quando o príncipe acabou de falar...

O Idiota



Fiódor Dostoiévski


Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira


Primeira Parte


7a.



Quando o príncipe acabou de falar, elas todas estavam olhando para ele, jovialmente: mesmo Agláia e, de um modo todo especial, Lizavéta Prokófievna.

- Bem, elas o submeteram a um exame - exclamou a generala. - Bem, meninas, vocês pensaram que iam protegê-lo como a um parente pobre, mas ele apenas se digna tolerar vocês, e isso mesmo com a cláusula de que não virá muitas vezes não! Mistificou-nos todos, principalmente a Iván Fiódorovitch. Bem feito! Bravo príncipe! Meu marido ainda agora mandou que submetêssemos o senhor a um exame. E quanto ao que disse do meu rosto, está perfeitamente certo; sou uma criança, sei disso muito bem. Eu sabia antes, portanto falou por mim, pondo os meus pensamentos nas suas palavras. Creio que o seu caráter e o meu são iguais, exatamente, como duas gotas de água, e isso me alegra. A única diferença é que o senhor é um homem e eu sou uma mulher que nunca esteve na Suíça. Ora, aí está a única diferença.

- Não tire conclusões tão depressa, mamãe - disse Agláia. O príncipe confessou que em tudo isso tinha um motivo especial que não estava falando à toa.

- Foi, sim - riram as outras.

- Não o importunem, queridas. Ele é mais perspicaz do que vocês três juntas. Vão ver já. Mas por que foi que o senhor não falou nada a respeito de Agláia, príncipe? Agláia está esperando; e eu também.

- Não posso dizer nada por enquanto. Direi mais tarde.

- Por quê? Ela não tem nada que chame atenção?

- É isso mesmo. Vós sois inexcedivelmente bela, Agláia Ivánovna. Sois tão bela que se fica com medo de olhar-vos.

- Só isso? Não diz nada sobre as qualidades dela? - insistia a Sra. Epantchiná.

- É difícil julgar a beleza. Eu, pelo menos, ainda não sou capaz. A beleza é um enigma.

- Esplêndido, considerar Agláia como enigma. Esclareça o enigma, Agláia. Mas então ela é bonita?

- Muito!... - respondeu o príncipe, olhando com entusiasmo para Agláia. Tão bonita, decerto, como Nastássia Filíppovna, embora muito diferente de rosto. Todas se entreolharam, pasmadas.

- Como quem? - explodiu a Sra. Epantchiná. - Como Nastássia Filíppovna? Onde viu Nastássia Filíppovna? Qual Nastássia Filíppovna?

- Refiro-me a um retrato que Gavril Ardaliónovitch estava agora mesmo mostrando a Iván Fiódorovitch.

- Como? Ele trouxe o retrato dela para Iván Fiódorovitch?

- Só para mostrar. Nastássia Filíppovna, hoje, deu o seu retrato a Gavríl Ardaliónavitch, e ele, então, o trouxe para mostrar.

- Quero ver isso! - disse impetuosamente a Sra. Epantchiná. - Onde está essa fotografia? Se lhe foi dada, deve tê-la guardado com certeza: e como hoje é quarta-feira, dia de ficar trabalhando no gabinete, ainda deve estar lá. Não pode sair antes da hora. Chame-o, imediatamente. Não, não estou morrendo por vê-lo, não. Príncipe, quer me fazer um favor? Vá até ao escritório, peça a fotografia traga-a aqui. Diga-lhe que queremos ver; faça o favor.

Depois que o príncipe saiu. Adelaída disse:

- É tão agradável! Mas parece tão ingênuo...

- Sim, um tanto - concordou Aleksándra. - E isso o faz um pouco ridículo, deveras.

Nenhuma delas dissera direito o que tinha no pensamento.

- Mas se saiu muito bem a respeito de nossos rostos - considerou Agláia. - Adulou-nos bem; inclusive à mamãe.

- Deixem de fazer espírito. É favor! Ele não me lisonjeou; eu é que fiquei lisonjeada.

- Será que ele estava simulando?

- Adelaída parecia indecisa.

- Eu acho que ele não tem nada de ingênuo.

- Parem com isso - disse-lhes a mãe, ficando zangada. - No meu entender, vocês são mais ridículas do que ele. Acho que tem todas as faculdades em ordem, no sentido correto. Exatamente como eu.

“Fiz mal em falar nessa fotografia”... ia pensando Míchkin enquanto se dirigia ao escritório, sentindo uma pancada na consciência.
“Mas falei, está falado, e quem sabe até se não foi bom?”

Uma compreensão ainda difusa se estava aclarando em seu espírito.

Encontrou Gavril Ardaliónovitch ainda no escritório, absorvido com os seus papéis. É lógico que não recebia salário da Companhia para não fazer nada. Quando o príncipe lhe pediu a fotografia ficou desconcertado, tendo sido preciso que o príncipe lhe contasse como é que elas tinham ouvido falar nisso.

- Arre! Mas que necessidade tinha o senhor de dar com a língua? - exclamou desapontadíssimo. - Que tem o senhor que se imiscuir?

E sussurrou por entre os dentes: “Idiota!”

- Desculpe-me. Fiz isso inadvertidamente. É que as coisas se encaminharam de tal maneira! Eu estava dizendo que Agláia era tão bonita como Nastássia Filíppovna .. e aí... Gánia pediu-lhe que lhe contasse exatamente como o fato havia se passado. E o príncipe o fez.

Gánia olhava-o com desdém e sarcasmo.

- O senhor .. encasquetou-se-lhe Nastassia Filippovna no cérebro...

Mas, refletindo, parou de falar, porque uma ideia lhe veio subitamente.

O príncipe tornou a pedir o retrato.

- Ouça, príncipe, eu queria lhe merecer um favor... mas, realmente, não sei... Calou-se, embaraçado. Parecia estar lutando consigo mesmo ensaiando refazer-se. O príncipe esperava calado. Gánia tornou a examiná-lo, com mais cautela, olhando-o demoradamente.

- Príncipe - recomeçou ele - elas lá dentro estão aborrecidas comigo, por causa de um incidente à-toa e ridículo, pelo qual aliás não mereço censura; e nem é preciso aqui me explicar porquê. Acho que estão um pouco sentidas comigo, de maneira que, por enquanto, não devo entrar lá a não ser sendo convidado. Mas eu precisava muito dizer uma coisa a Agláia Ivánovna. Até escrevi umas poucas palavras, à espera de uma oportunidade (segurava um papel dobrado) e não sei como lhe entregar. O senhor quer pegar nisto e entregar, mas quando ela estiver sozinha, de modo que ninguém veja? Compreendeu bem? Não se trata de nenhum segredo impróprio, nada disso... mas... Quer me fazer este favor?

- Não gosto muito de fazer isso - respondeu o príncipe.

- Oh! Mas, príncipe, é uma coisa importantíssima para mim- suplicou Gánia. - Ela naturalmente responderá. Acredite-me, foi só em último recurso, só por não haver outra fórmula que tive de recorrer a... E não tenho mais ninguém a não ser o senhor, é preciso ser já... é muito importante, o senhor nem pode imaginar...

Olhava-o com olhos de servil bajulação, terrivelmente receoso de que Míchkin se negasse.

- Está bem, levarei.

- Mas entregue de maneira que ninguém veja - rogou Gánia. mais aliviado. - E, outra coisa, posso eu, de fato, me fiar na sua palavra de honra, príncipe?

- Sossegue, que não mostrarei isto a ninguém - disse o príncipe.

- O bilhete não está fechado, mas... - recomeçou Gánia, com ansiedade, calando-se logo muito confuso.

- Oh. Não vou ler, não! - respondeu o príncipe, com muita simplicidade.

Apanhou também o retrato que lhe fora entregue e saiu do escritório. Gánia, mal se viu sozinho, pôs as mãos na cabeça e declamou para si mesmo:

- Uma palavra dela... e rompo com tudo, nem tem dúvida!

E, por causa da excitação e da dúvida, não havia meios de pôr a papelada em ordem. Começou então a passear pela sala, de um canto para outro. O príncipe saiu um pouco pensativo, pois tal missão o impressionava desagradavelmente. Além disso, esse fato de um bilhete de um homem como Gavril Ardaliónovitch para uma moça como Agláia Ivánovna, era qualquer coisa de desarmonioso. E estando duas peças ainda longe da sala de estar, parou porque só então lhe veio uma ideia: olhar, aproveitando bem a claridade (e para isso se aproximou da janela) o retrato de Nastássia Filíppovna. Parecia tentar decifrar qualquer mistério que antes já o havia impressionado naquele rosto. Impressão que não tinha ainda passado; entretinha-se assim, pois, a verificar mais uma vez o que seria. E aquele rosto ainda o impressionou mais, não só por sua extraordinária beleza, como por qualquer coisa que existia escondida nele. Era uma expressão de ilimitado orgulho ou desdém, quase ódio em que se diluía, ao mesmo tempo, algo de confiante e de prodigiosamente enternecedor. O contraste entre esses dois elementos despertava um sentimento próximo da compaixão. Aquela deslumbrante beleza era de arrebatar. A beleza de um rosto pálido, cujas faces eram quase fundas e os olhos mais que brilhantes. Uma estranha e perturbadora beleza.

O príncipe esteve a contemplar o retrato durante um minuto e, depois, olhando apressadamente em volta, em sobressalto, o aproximou dos lábios e o beijou. Quando, porém, surgiu na sala de jantar já estava perfeitamente calmo. A sala de jantar era, por sua vez, separada da sala de estar por uma outra peça, e foi aí que, inesperadamente, deu com Agláia que vinha sozinha.

- Gavril Ardaliónovitch pediu-me que lhe entregasse isto.

E lhe estendeu o bilhete.

Agláia parou, pegou o bilhete e olhou de modo estranho para o príncipe, sem uma sombra sequer de embaraço. Apenas talvez houvesse uma expressão de admiração em seus olhos, expressão que parecia se referir ao gesto de Míchkin, esses olhos parecendo interrogá-lo, com calma e altivez, de que maneira se misturara nessa combinação com Gánia. E então, algo de irônico ou desdenhoso apareceu em seu rosto. Com imperceptível sorriso, saiu.

A generala contemplou em silêncio, demoradamente, o retrato de Nastássia Filíppovna, esticando afetadamente os braços, para o afastar.

- Sim, é linda - pronunciou, afinal. - Realmente, muito linda. Só a vi de longe, duas vezes. Então esta é a espécie de beleza que o senhor aprecia?

- É sim senhora - respondeu o príncipe, com certo esforço.

- Esta aqui, não é?

- É, essa sim, senhora. Justamente.

- Porquê?

- Neste rosto há muito sofrimento... - respondeu o príncipe como se estivesse refletindo consigo mesmo e não respondendo uma pergunta.

- Creio que o senhor está falando no ar... ao acaso - conclui a Sra. Epantchiná; e atirou o retrato sobre a mesa, com um gesto altivo.

Aleksándra pegou-o; Adelaída aproximou-se da irmã e se puseram as duas a contemplá-lo. Nisto, Agláia voltou à sala.

- Que força! - exclamou impetuosamente Adelaída, sem conter, olhando o retrato por cima do ombro da irmã.

- Onde?... Força? - perguntou a Sra. Epantchiná de modo cáustico.

- Uma beleza assim é força! Com uma beleza como esta se pode virar o mundo de cima para baixo, afirmou calorosamente Adelaída, encaminhando-se com ar pensativo para o cavalete de pintura. Agláia apenas olhou o retrato de esguelha, superficialmente, apertando um pouco as pálpebras; amuou e foi sentar-se, juntando as mãos.

A Sra. Epantchiná tocou a campainha. E disse ao criado que atendeu:

- Chame Gavril Ardaliónovitch aqui. Ele está no escritório.

- Mas, mamãe... - exclamou significativamente Aleksándra.

- Quero dizer umas palavras a esse indivíduo. Basta - interveio, interrompendo o protesto. Estava evidentemente irritada. - Nós aqui só temos mistérios, está vendo, príncipe, mistérios e mais nada. Tem sido sempre assim, até parece um protocolo já estabelecido. Como isso enerva!... E se trata exatamente de uma questão que exige acima de tudo franqueza, lealdade e retidão. Casamentos.. estão sendo arranjados...

- Mamãe, que é que a senhora está dizendo?!

Aleksándra tentava contê-la outra vez.

- Que é, querida filha? E agrada-lhe então tal atmosfera? Não se incomode do príncipe estar ouvindo, já somos amigos, os dois pelo menos, ele e eu nos entendemos. Deus quer homens bons, sim. claro que os há de querer direitos, não tolerando os fracos e manhosos. Isso então de manhosos não os suporta, a esses que hoje dizem uma coisa e amanhã declaram outra. Está compreendendo. Aleksándra Ivánovna? Dizem, príncipe, que sou espinoteada, mas eu é que sei que espécie de gente é essa. Sim, pois o coração é que conta, tudo o mais sendo tolice. É lógico, que urge ter também um pouco de sensatez.., talvez até o senso venha de fato a ser a grande coisa necessária. Agláia?! Está rindo de sua mãe?! Não estou me contradizendo, não! Uma boba com coração e sem senso é tão infeliz quanto uma boba com senso e sem coração. Esta é uma verdade bastante antiga. Eu sou uma boba com muito coração e quase nenhum senso, você é uma boba com muito senso e quase sem coração... Portanto, somos ambas infelizes e dignas de dó.

- Infeliz e digna de dó a senhora, mamãe? Por causa de quê? - não pôde Adelaída deixar de perguntar. Parecia a única do grupo que não perdera a boa disposição.

- Antes de tudo, vocês são umas filhas que tenho na conta de muito atiladas - redarguiu categoricamente a generala - e como isso por si só já é mais que suficiente, não é preciso entrarmos em outras coisas. Palavras demais já foram gastas. Veremos de que maneira vocês duas (com Agláia não conto!) saberão se servir do critério e das palavras... E só quero ver de que forma você deslindará o caso que lhe querem armar com o tal cavalheiro esplêndido, minha admirabilíssima Aleksándra Ivánovna. Há... - exclamou a generala vendo entrar Gánia - eis que entra um outro termo destacado de uma aliança matrimonial... Bom dia! - disse ela em resposta à saudação e às mesuras de Gánia, não lhe dizendo que se sentasse. - Com que então, na iminência de contrair núpcias, hein?

- Núpcias? Como? Quais núpcias? - tartamudeou Gavríl Ardaliónovitch, completamente zonzo.

Estava terrivelmente vexado.

- Bem, já vejo que prefere uma pergunta direta: então, vai casar?

- Eu... n... não senhora! - mentiu Gavril Ardaliónovitch; e uma onda de vergonha lhe subiu ao rosto.

Ainda assim conseguiu ver Agláia. de viés, sentada um pouco longe da mãe. E apressadamente retirou o olhar porque sentiu que ela o examinava com uma atenção firme, vigiando-lhe a confusão.

- Não? Respondeu que não? - persistiu a implacável senhora. - Chega. Vou marcar bem o dia de hoje. Em uma quinta-feira, pela manhã, isto é, hoje, o senhor disse “Não” como resposta à minha pergunta. Não é quinta-feira hoje?

- Acho que sim, mamãe - respondeu Adelaída.

- Vocês não sabem nunca que dia é da semana. E que dia hoje, do mês?

- Vinte e sete - prontificou-se Gánia.

- Vinte e sete. Em todos os sentidos, bem. Pode ir. Até à vista. Parece-me que o senhor, hoje, ainda tem muito que fazer. E já está na hora de me vestir para sair. Leve a sua fotografia. Recomende-me à sua infeliz mãe. Quanto ao senhor, príncipe, adeus, por hoje. Venha ver-nos mais vezes. Hei de visitar a velha Princesa Bielokónskaia de propósito para falar sobre o senhor. E quer saber de uma coisa, meu caro, estou convencida que foi simplesmente por minha causa que Deus o trouxe da Suíça aqui para Petersburgo. Decerto que o senhor veio por outros motivos, mas foi principalmente por minha causa. Deus dispõe... Adeus, queridas. Aleksándra, venha ao meu quarto, querida.

A generala retirou-se. Sucumbido, confuso, atarantado, Gánia pegou o retrato de sobre a mesa e se voltou com um sorriso crispado para o príncipe.

- Príncipe, vou agora mesmo para casa. Se o senhor não mudou de opinião quanto a residir conosco, poderei levá-lo, visto o senhor não saber o endereço.

- Fique mais um pouco, príncipe - pediu Agláia, levantando-se logo da cadeira. - Quero que o senhor escreva no meu álbum. Papai gabou tanto a sua caligrafia! Vou buscá-lo, não demoro.

E saiu.



continua página 075...


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terça-feira, 25 de janeiro de 2022

D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L2 Capitulo XII: Do que referiu um cabreiro aos que estavam com D. Quixote..

D. Quixote de la Mancha



Miguel de Cervantes

Vol 1



O Engenhoso Fidalgo 
D. Quixote de la Mancha 

Miguel de Cervantes



PRIMEIRA PARTE

LIVRO SEGUNDO

CAPÍTULO XII


Do que referiu um cabreiro aos que estavam com D. Quixote.


Quando estavam nisto, chegou outro moço dos que lhes traziam da aldeia os provimentos, e disse:
— Sabeis o que vai no lugar, companheiros?
— Como havemos de sabê-lo?
— respondeu um deles.
— Pois sabei — prosseguiu o moço — que morreu esta manhã aquele famoso pastor estudante, chamado Crisóstomo; e rosnam que morreu de amores por aquela endiabrada moça Marcela, a filha de Guilherme, o rico, a que anda em trajo de pastora por esses andurriais.
— Por Marcela?! — disse um.
— Por essa mesma — respondeu o cabreiro — e o bonito é que determinou no testamento que o enterrassem no campo, como se fora algum mouro, e que seja ao pé da penha, onde está a fonte do carvalho, porque, segundo é fama (e dizem que ele mesmo o declarou), ali é que ele a viu pela primeira vez, e também mandou outras coisas de tal feitio, que os padres do lugar dizem não se poderem cumprir, nem é bem que cumpram, porque parecem de gentios. A tudo responde aquele seu grande amigo Ambrósio, o estudante, que também assim como ele se vestiu de pastor, que se há-de cumprir tudo sem faltar nada, como o determinou Crisóstomo. Anda com isto o povo todo alvorotado; mas, pelo que se diz, sempre afinal se há-de fazer como Ambrósio e todos os pastores seus amigos querem, e amanhã o hão-de ir enterrar com grande pompa onde já disse. Para mim tenho que há-de ser coisa mui de ver; pelo menos eu não hei-de lá faltar, ainda que soubesse não tornar amanhã ao povo.
— O mesmo faremos nós todos — responderam à uma os cabreiros — e deitaremos sortes, a ver quem há-de ficar guardando as cabradas todas juntas.
— Dizes bem, Pedro — disse um deles — mas não é preciso isso; ofereço-me eu a ficar por todos, e não o atribuas a virtude, nem a menos curiosidade minha: é porque não posso andar com o graveto que noutro dia meti neste pé.
— Mesmo assim, agradecemos-to — disse Pedro.
Pediu D. Quixote ao mesmo Pedro lhe declarasse que morto era aquele, e que pastora a tal, de que se falava.
Respondeu Pedro que o que sabia era só que o morto era um fidalgo rico, morador num lugar naquelas serras, o qual tinha sido estudante muitos anos em Salamanca, e ao cabo deles se recolhera ao seu povo, com fama de mui sábio e lido. Principalmente dizia que sabia a ciência das estrelas, e do que fazem lá pelo céu o sol e a lua, porque pontualmente declarava as crises do sol e da lua.
— Eclipse se chama, e não cris, o escurecerem-se esses dois luminares maiores — disse D. Quixote. Pedro, sem fazer caso de ninharias, prosseguiu o seu conto, dizendo:
— Até adivinhava se o ano havia de ser sáfaro ou estil.
— Estéril quereis dizer, amigo — acudiu D. Quixote.
— Estéril ou estil tudo vem a dar na mesma — respondeu Pedro — e digo que por aquelas coisas que ele entendia se fizeram seu pai, e seus amigos, que nele se fiavam, muito ricos, porque executavam os seus conselhos, dizendo-lhes: este ano semeai cevada e não trigo; neste podeis semear grãos de bico e não cevada; o que vem será de óleo de linhaça, e nos três seguintes não haverá nem gota.
— Ciência é essa que se chama Astrologia — disse D. Quixote.
— Como se chama não sei — replicou Pedro — o que sei é que tudo isto sabia ele, e muito mais ainda. Finalmente, não passaram muitos meses depois de vir de Salamanca, sem o verem um dia aparecer vestido de pastor com o seu cajado e pelico, sem a roupeta que dantes envergava como estudante. Outro, chamado Ambrósio, seu grande amigo, também juntamente se vestiu de zagal, assim como dantes havia sido seu companheiro dos estudos. Já me ia esquecendo dizer que o defunto, o Crisóstomo, foi grande homem em compor coplas; tanto assim que era ele que fazia os vilancicos para a noite de Natal, e os autos para a festa do Corpus-Christi, que os representavam os rapazes do nosso povo, e todos diziam que não havia mais que desejar. Admirados ficaram os do lugar, vendo tão a súbitas vestidos de pastores os dois estudantes; e não podiam adivinhar a causa de tão estranha mudança. Já a esse tempo se era finado o pai do nosso Crisóstomo, deixando-lhe um poderio de fazenda, tanto em móveis, como em bens de raiz, e quantidade não pequena de gado miúdo e grosso, e dinheiro que farte; do que tudo ficou o moço senhor absoluto; e verdade, verdade, que tudo isso merecia ele, que era muito bom companheiro, caritativo e amigo dos bons, e tinha uma cara de abençoado. Depois é que se veio a alcançar que a mudança do trajo nenhuma outra razão tinha tido, senão o andar-se por estes despovoados atrás daquela pastora Marcela, que o nosso pegureiro já nomeou, e da qual se tinha namorado o pobre defunto do Crisóstomo. E agora vos quero dizer, porque é bem que o saibais, quem seja esta cachopa; coisa semelhante, nunca talvez em dias de vida a ouvísseis, nem ouvireis, ainda que vivais mais anos que Sarna.
— Dizei Sara — replicou D. Quixote, não podendo sofrer ao cabreiro a troca de palavras.
— A sarna vive por desespero — respondeu Pedro; — se me haveis de andar remordendo a cada passo as palavras, nem num ano concluiremos.
— Perdoai, amigo — disse D. Quixote — mas tão diferentes coisas são sarna e Sara, que por isso vos fui à mão; mas vós respondestes muito bem, porque mais vive no mundo a sarna do que viveu Sara. E prossegui a vossa história, que vos não tornarei a atalhar em coisa alguma.
— Digo pois, senhor meu da minha alma — continuou o cabreiro — que houve em nossa aldeia um lavrador ainda mais rico do que o pai de Crisóstomo, e que se chamava Guilherme, e a quem Deus, ainda por cima das muitas e grandes riquezas, concedeu uma filha, que logo ao nascedouro ficou sem a mãe, que fora a mais honrada mulher que houve por todos estes arredores. Parece-me que ainda a estou vendo, com aquela cara, que de uma banda tinha o sol, e da outra a lua; e, além de tudo mais, grande arranjadeira, e ao mesmo tempo muito amiguinha dos pobres; pelo que entendo que a estas horas deve estar a sua alma a gozar-se de Deus no outro mundo. Com pesar da morte de tão boa mulher, morreu o marido Guilherme, deixando a filha Marcela, pequena e rica, em poder de um tio sacerdote, Beneficiado no nosso lugar. Cresceu a menina tanto em formosura, que nos fazia lembrar da de sua mãe, que também nisso se extremara; e já se futurava que a herdeira a excederia. E assim sucedeu que aos catorze ou quinze anos ninguém a via, que não desse graças a Deus de ter criado tamanha lindeza. Quase todos ficavam enamorados e perdidos por ela. Guardava-a seu tio com muito recato e recolhimento; mas, apesar disso, a fama da sua muita beleza se estendeu de maneira que, assim por ela como por suas muitas riquezas, não somente pelos do nosso povo, senão até pelos de muitas léguas em redondo, e dos melhores dentre eles, era rogado, solicitado e importunado o tio para lha dar em casamento. Ele porém, que era bom cristão às direitas, ainda que desejava casá-la cedo, não queria efetuá-lo sem consentimento dela, vendo-a na idade de acertar na escolha. Ele por si nenhum caso fazia dos interesses que poderia dar-lhe o administrar os haveres da sobrinha enquanto solteira; e à fé que assim se dizia muitas vezes em louvor do bom sacerdote nos serões da aldeia (que há-de saber, senhor andante, que nisto dos lugarejos pequenos, de tudo se trata, e de tudo se murmura; e fazei de conta, como eu, que muitíssimo bom devia de ser o clérigo, que assim obrigava os fregueses a dizerem bem dele em terrinhas como estas).
— Isso é verdade — disse D. Quixote — e prossegui a narrativa, que vai muito bem; e vós, bom Pedro, que a fazeis com muita graça.
— Não me falte a de Nosso Senhor, que é o que mais importa. Pelo que toca ao sucesso, heis-de saber que, ainda que o tio propunha à sobrinha, e lhe dizia as qualidades de cada um dos muitos que por mulher a pediam, para ela escolher a seu gosto, nunca ela lhe respondeu senão que por então não queria casar-se, e que, por ser ainda tão nova, se não sentia com forças para a carga do matrimônio. Ouvindo estas desculpas que dava, ao parecer tão atendíveis, já o tio deixava de importuná-la, e ia esperando que fosse entrando mais em idade, para bem escolher companhia do seu gosto; porque dizia ele (e dizia muito bem) que os pais não deviam dar estado aos filhos contra vontade. Mas eis que um dia, quando ninguém de tal se precatava, aparece feita pastora a mimosa Marcela; e, sem vênia do tio, nem aprovação de pessoa alguma do lugar, deu em ir-se ao campo com as mais guardadoras de gado, pastoreando também o seu. Tanto como ela saiu a público daquela maneira, e se viu a descoberto a sua formosura, não vos posso dizer à justa quantos ricos mancebos, fidalgos e lavradores tomaram o trajo de Crisóstomo, e a andam requebrando por esses campos. Um deles, como já se disse, foi o nosso defunto, de quem diziam que não lhe queria, senão que a adorava. E não se cuide que, por ela se ter posto naquela liberdade, e vida tão solta, e de tão pouco ou de nenhum recolhimento, dava indícios (nem por sombras) de coisa que desdissesse da sua honestidade e recato; antes é tanta a vigilância com que olha por sua honra, que de quantos a servem e solicitam nenhum ainda se gabou, nem com verdade se poderá jamais gabar, de haver dela obtido alguma pequena esperança de lograr os seus desejos. Não é que fuja nem se esquive da companhia e convivência dos pastores, senão que os trata cortês e amigavelmente; mas em qualquer deles chegando a descobrir-lhe a sua intenção, ainda que seja tão justa e santa como a do matrimônio, afugenta-o que nem trabuco. Com estes procederes, faz mais dano nesta terra do que se por ela entrara a peste, porque a sua afabilidade e formosura atrai os corações dos que tratam com ela a que se lhe rendam e a amem; e o seu desdém e desengano os conduzem a termos de desesperação; e assim não sabem que lhe dizer, senão chamá-la a vozes cruel e desagradecida, com outros títulos semelhantes a estes, que bem manifestam qual seja a sua condição. Se aqui estivésseis algum dia ouviríeis ressoar estas serras e estes vales com os lamentos dos desprezados que a seguem. Não está muito longe daqui um sítio, onde há quase duas dúzias de faias altas, e nenhuma que deixe de ter gravado na casca o nome de Marcela, e em algumas uma coroa gravada por cima do nome, como se expressamente assim declarara o amante, que Marcela a merece e a alcança de toda a formosura humana. Aqui suspira um pastor; ali se queixa outro; acolá se ouvem amorosas canções; para outra parte desesperadas endechas. Tal há, que passa todas as horas da noite sentado ao pé de alguma azinheira ou penha; e ali, sem pregar os chorosos olhos, embevecido e transportado em seus pensamentos, o acha de manhã o sol. E tal há também que, sem dar vaga nem trégua aos seus suspiros, no meio do ardor da mais enfadosa sesta do verão, estendido sobre a ardente areia, envia suas queixas ao piedoso céu. Destes e daqueles, e daqueles e destes, livre e desenfadadamente vai triunfando a formosa Marcela. Todos nós outros, que a conhecemos, estamos à espera de ver em que virá a parar sua altiveza, e quem será o ditoso que domine ao cabo condição tão rigorosa, e se goze de lindeza tão perfeita. Por ser tudo que deixo contado verdade tão averiguada, entendo que também o é o que o nosso zagal ouviu que se dizia da causa da morte de Crisóstomo. E assim vos aconselho, senhor, não deixeis de assistir amanhã ao enterro, que há-de ser muito para ver, porque os amigos de Crisóstomo são muitos, e daqui ao lugar onde ele mandou que o enterrassem não dista meia légua.
— Não me hei-de descuidar — disse D. Quixote — e agradeço-vos o gosto que me haveis dado com a narração de tão saboroso conto.
— E ainda eu não sei a metade dos casos sucedidos aos amantes de Marcela — replicou o cabreiro — mas não era impossível encontrarmos amanhã pelo caminho algum pastor que no-los dissesse. E por agora bem será que vos vades dormir debaixo de telha, porque o sereno vos poderia fazer mal à ferida, posto que o meu remédio é tal, que não tendes muito de que vos arrecear.
Sancho Pança, que já dava ao diabo o tão estirado falar do cabreiro, fez por sua parte diligência para que o amo fosse pernoitar na choca de Pedro. Assim o fez D. Quixote; e o mais da noite o levou em memórias de sua senhora Dulcinéia, à imitação dos namorados de Marcela.
Sancho Pança lá se acomodou entre Rocinante e o seu jumento, e dormiu, não como amante desfavorecido, senão como homem moído a coices.




continua página 71...

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D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L1 Capitulo VI
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L1 Capitulo VII
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L1 Capitulo VII
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D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L2 Capitulo XII
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D. QUIXOTE 
VOL. I 
Cervantes 
D. Quixote de La Mancha — Primeira Parte 
(1605) 
Miguel de Cervantes [Saavedra] 
(1547-1616)
Tradução: 
Francisco Lopes de Azevedo Velho de Fonseca Barbosa Pinheiro Pereira e Sá Coelho (1809- 1876) Conde de Azevedo 
Antônio Feliciano de Castilho (1800-1875) 
Visconde de Castilho


Edição 
eBooksBrasil www.ebooksbrasil.com 
Versão para eBook 
eBooksBrasil.com 

Fonte Digital 
Digitalização da edição em papel de Clássicos Jackson, Vol. VIII Inclusões das partes faltantes confrontadas com a edição em espanhol da eBooksBrasil.com 
(1999, 2005)
Copyright 
Autor: 1605, 2005 Miguel de Cervantes 
Tradução Francisco Lopes de Azevedo Velho de Fonseca Barbosa Pinheiro Pereira e Sá Coelho 
António Feliciano de Castilho 
Capa: Honoré-Victorin Daumier (1808-1879) 
Retrato de Cervantes: Eduardo Balaca (1840-1914) 
Edição: 2005 eBooksBrasil.com


segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Flusser : Filosofia da Caixa Preta (1 - A Imagem)

 Filosofia da Caixa Preta




VILÉM FLUSSER




Ensaios para uma futura filosofia da fotografia




1 - A Imagem


Imagens são superfícies que pretendem representar algo. Na maioria dos casos, algo que se encontra lá fora no espaço e no tempo. As imagens são, portanto, resultado do esforço de se abstrair duas das quatro dimensões espacio-temporais , para que se conservem apenas as dimensões do plano. Devem sua origem à capacidade de abstração específica que podemos chamar de imaginação. No entanto, a imaginação tem dois aspectos: se de um lado, permite abstrair duas dimensões dos fenômenos, de outro permite reconstituir as duas dimensões abstraídas na imagem. Em outros termos: imaginação é a capacidade de codificar fenômenos de quatro dimensões em símbolos planos e decodificar as mensagens assim codificadas. Imaginação é a capacidade de fazer e decifrar imagens.

O fator decisivo no deciframento de imagens é tratar-se de planos. O significado da imagem encontra-se na superfície e pode ser captado por um golpe de vista. No entanto, tal método de deciframento produzirá apenas o significado superficial da imagem. Quem quiser “aprofundar” o significado e restituir as dimensões abstraídas, deve permitir à sua vista vaguear pela superfície da imagem. Tal vaguear pela superfície é chamado scanning.

O traçado do scanning segue a estrutura da imagem, mas também impulsos no íntimo do observador. O significado decifrado por este método será, pois, resultado de síntese entre duas “intencionalidades”: a do emissor e a do receptor. Imagens não são conjuntos de símbolos com significados inequívocos, como o são as cifras: não são “denotativas”. Imagens oferecem aos seus receptores um espaço interpretativo: símbolos “conotativos”.

Ao vaguear pela superfície, o olhar vai estabelecendo relações temporais entre os elementos da imagem: um elemento é visto após o outro. O vaguear do olhar é circular: tende a voltar para contemplar elementos já vistos. Assim, o “antes” se torna “depois”, e o “depois” se torna o “antes”. O tempo projetado pelo olhar sobre a imagem é o eterno retorno. O olhar diacroniza a sincronicidade imaginística por ciclos.

Ao circular pela superfície, o olhar tende a voltar sempre para elementos preferenciais. Tais elementos passam a ser centrais, portadores preferenciais do significado. Deste modo, o olhar vai estabelecendo relações significativas. O tempo que circula e estabelece relações significativas é muito específico: tempo de magia. Tempo diferente do linear, o qual estabelece relações causais entre eventos. No tempo linear, o nascer do sol é a causa do canto do galo; no circular, o canto do galo dá significado ao nascer do sol, e este dá significado ao canto do galo. Em outros termos: no tempo da magia, um elemento explica o outro, e este explica o primeiro. O significado das imagens é o contexto mágico das relações reversíveis.

O caráter mágico das imagens é essencial para a compreensão das suas mensagens. Imagens são códigos que traduzem eventos em situações, processos em cenas. Não que as imagens eternalizem eventos; elas substituem eventos por cenas. E tal poder mágico, inerente à estruturação plana da imagem, domina a dialética interna da imagem, própria a toda mediação, e nela se manifesta de forma incomparável.

Imagens são mediações entre homem e mundo. O homem “existe”, isto é, o mundo não lhe é acessível imediatamente. Imagens têm o propósito de representar o mundo. Mas, ao fazê-lo, entrepõem-se entre mundo e homem. Seu propósito é serem mapas do mundo, mas passam a ser biombos. O homem, ao invés de se servir das imagens em função do mundo, passa a viver em função de imagens. Não mais decifra as cenas da imagem como significados do mundo, mas o próprio mundo vai sendo vivenciado como conjunto de cenas. Tal inversão da função das imagens é idolatria. Para o idólatra – o homem que vive magicamente -, a realidade reflete imagens. Podemos observar, hoje, de que forma se processa a magicização da vida: as imagens técnicas, atualmente onipresentes, ilustram a inversão da função imaginística e remagicizam a vida.

Trata-se de alienação do homem em relação a seus próprios instrumentos. O homem se esquece do motivo pelo qual imagens são produzidas: servirem de instrumentos para orientá-lo no mundo. Imaginação torna-se alucinação e o homem passa a ser incapaz de decifrar imagens, de reconstituir as dimensões abstraídas. No segundo milênio A. C., tal alucinação alcançou seu apogeu. Surgiram pessoas empenhadas no “relembramento” da função originária das imagens, que passaram a rasgá-las, a fim de abrir a visão para o mundo concreto escondido pelas imagens. O método do rasgamento consistia em desfiar as superfícies da imagens em linhas e alinhar os elementos imaginísticos . Eis como foi inventada a escrita linear. Tratava-se de transcodificar o tempo circular em linear, traduzir cenas em processos. Surgia assim a consciência histórica, consciência dirigida contra as imagens. Fato nitidamente observável entre os filósofos présocráticos e sobretudo entre os profetas judeus.

A luta da escrita contra a imagem, da consciência histórica contra a consciência mágica caracteriza a História toda. E terá consequências imprevistas. A escrita se funda sobre a nova capacidade de codificar planos em retas e abstrair todas as dimensões, com exceção de uma: a da conceituação, que permite codificar textos e decifrá-los. Isto mostra que o pensamento conceitual é mais abstrato que o pensamento imaginativo, pois preserva apenas uma das dimensões do espaço-tempo. Ao inventar a escrita, o homem se afastou ainda mais do mundo concreto quando, efetivamente, pretendia dele se aproximar. A escrita surge de um passo para aquém das imagens e não de um passo em direção ao mundo. Os textos não significam o mundo diretamente, mas através de imagens rasgadas. Os conceitos não significam fenômenos, significam ideias. Decifrar textos é descobrir as imagens significadas pelos conceitos. A função dos textos é explicar imagens, a dos conceitos é analisar cenas. Em outros termos: a escrita é meta-código da imagem.

A relação texto-imagem é fundamental para a compreensão da história do Ocidente. Na Idade Média, assume a forma de luta entre o cristianismo textual e o paganismo imaginístico; na Idade Moderna, luta entre a ciência textual e as ideologias imaginísticas. A luta, porém, é dialética. À medida que o cristianismo vai combatendo o paganismo, ele próprio vai absorvendo imagens e se paganizando; à medida que a ciência vai combatendo ideologias, vai ela própria absorvendo imagens e se ideologizando . Por que isso ocorre? Embora textos expliquem imagens a fim de rasgá-las, imagens são capazes de ilustrar textos, a fim de remagicizá-los. Graças a tal dialética, imaginação e conceituação que mutuamente se negam, vão mutuamente se reforçando. As imagens se tornam cada vez mais conceituais e os textos, cada vez mais imaginativos. Atualmente o maior poder conceitual reside em certas imagens, e o maior poder imaginativo, em determinados textos da ciência exata. Deste modo, a hierarquia dos códigos vai se perturbando: embora os textos sejam metacódigo de imagens, determinadas imagens passam a ser metacódigo de textos.

No entanto, a situação se complica ainda mais devido à contradição interna dos textos. São eles mediações tanto quanto o são as imagens. Seu propósito é mediar entre homem e imagens. Ocorre, porém, que os textos podem tapar as imagens que pretendem representar algo para o homem. Ele passa a ser incapaz de decifrar textos, não conseguindo reconstituir as imagens abstraídas. Passa a viver não mais para se servir dos textos, mas em função destes.

Surge textolatria, tão alucinatória como a idolatria. Exemplo impressionante de textolatria é “fidelidade ao texto”, tanto nas ideologias ( cristã, marxista, etc.), quanto nas ciências exatas. Tais textos passam a ser inimagináveis, como o é o universo das ciências exatas: não pode e não deve ser imaginado. No entanto, como são imagens o derradeiro significado dos conceitos, o discurso científico passa a ser composto de conceitos vazios; o universo da ciência torna-se universo vazio. A textolatria assumiu proporções críticas no percurso do século passado.

A crise dos textos implica o naufrágio da História toda, que é, estritamente, processo de recodificação de imagens em conceitos. História é explicação progressiva de imagens, desmagiciação, conceituação. Lá, onde os textos não mais significam imagens, nada resta a explicar, e a história para. Em tal mundo, explicações passam a ser supérfluas: mundo absurdo, mundo da atualidade.

Pois é precisamente em tal mundo que vão sendo inventadas as imagens técnicas. E em primeiro lugar, as fotografias, a fim de ultrapassar a crise dos textos.





continua pág 10



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SOBRE O AUTOR 
na edição brasileira de 1985


Nascido em Praga em 1920, Vilém Flusser iniciou seus estudos de Filosofia na Universidade Carolíngia de Praga, em 1933. Emigrou para Londres em 1940 e para São Paulo em 1941. Seus primeiros ensaios sobre Linguística e Filosofia foram publicados 1957 no “Suplemento Literário” d’O Estado de São Paulo, do qual passou a ser colaborador constante. Em 1962 tornou-se membro do Instituto Brasileiro de Filosofia e professor de Filosofia da Comunicação na Faculdade Armando Álvares Penteado (FAAP), em São Paulo. Tornou-se co-editor da Revista Brasileira de Filosofia em 1964 tendo sido nomeado delegado especial do Ministério das Relações Exteriores para cooperação cultural com os Estados Unidos e a Europa, em 1966. Entre 1965 e 1970, organizou seminários e conferências no Departamento de Humanidades do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) sobre a Filosofia da Linguagem e abriu espaço em jornal par escrever crônicas diárias sobre filosofia do cotidiano (“Posto Zero”, da Folha de São Paulo). Em 1972, mudou-se para a Itália e, em 1976, para a França, onde reside atualmente, publicando principalmente na Alemanha e França. Publicou os livros: Língua e Realidade (São Paulo, Herder, 1963); A História do Diabo (São Paulo, Martins, 1965); Da Religiosidade (São Paulo, Comissão Estadual de Cultura, 1967); La Force du Quotidien (Paris, Mame, 1972); Le Monde Codifié (Paris, Institut de l’Enviroment, 1972); Naturalmente (São Paulo, Duas Cidades, 1979); Pós – História (São Paulo, Duas Cidades, 1982); Für eine Philosophie der Fotografie (Göttingen, European Photography, 1983); Ins Universum der technischen Bilder (Göttingen, European Photography, 1985).




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Flusser, Vilém, 1920 – 
Filosofia da caixa preta – São Paulo : Hucitec, 1985. - 92 p. 

EDITORA HUCITEC
São Paulo, 1985
Direitos autorais 1983 de Vilém Flusser. Título do original alemão: Für eine Philosophie der Fotografie. Tradução do autor. Direitos de publicação em língua portuguesa reservados pela Editora de Humanismo, Ciência e Tecnologia “Hucitec” Ltda., Rua Comendador Eduardo Saccab, 344 – 04602 – São Paulo, Brasil. Tel.: (011) 61-6319. 
Projeto gráfico: Estúdio Hucitec. 
Capa: Fred Jordan. 
Foto da contracapa: Sakae Tajima.

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Leia também:

Flusser : Filosofia da Caixa Preta (Prefácio e Glossário)
Flusser : Filosofia da Caixa Preta (1 - A Imagem)
Flusser : Filosofia da Caixa Preta (2 - A Imagem Técnica)


parábolas de uma professora: atrás do rabo

parábolas de uma professora



atrás do rabo
Ensaio 018B – 3ª.ed



baitasar e paulus e marko e kamilá




o professor Rodolfo levanta a fórmica verde, exaltado, danado, a voz alterada, fazendo alvoroço, olhar assombrado, desarticulado, Povinho inculto com cara de fome. Rui Barbosa deve estar se revirando no túmulo. Gente preguiçosa e com má vontade de suportar privações. Quem passa fome é o vagabundo, quem trabalha não passa fome. Haja zoológico para enfiar tanto vileiro.

qual a razão para palavras tão preconceituosas, desumanas, tanto desprezo e ódio, gente cafajeste e canalha, experimento o ódio e a impotência, sei que não é somente o Rodolfo, outros e outras, nesta sala, pensam e sentem assim, apenas não falam, silêncio conveniente

com raras exceções, as comunidades das nossas escolas reconhecem a necessidade de trabalhar e estudar, compreendem que esses são interesses mútuos, Professor.. por favor, não fale assim. Não diga isso, essa sua postura agressiva assume um caráter primitivo, desqualifica a escola, reduz o nosso trabalho em doença e morte.

E todos não iremos morrer um dia, Marko? Por que não hoje?

nunca sei quando a crueldade é apenas crueldade ou ignorância, Colega, parece-me que o cotidiano da nossa comunidade é algo desconhecido e distante para você e, pelo qual, nutre um profundo desprezo.

tristeza e desespero brotavam silenciosamente em meu coração, precisava salvar-me a todo custo deste ódio deprimente e desesperado, mas é preciso estranhar e reagir contra, fazer esse infeliz retornar ao seu papel vazio costumeiro no rebanho

não é o medo que vai nos salvar e nos manter na linha justa, só nos faz definhar até virarmos zumbis de nós mesmas, não existindo, desaparecendo nas prateleiras de cimento e flores de plástico

parecia inútil tentar conversar, mas mesmo assim voltei-me para o colega, Não faz muito sentido o colega usar o nome de Rui Barbosa no seu raciocínio sobre OSPB e Moral e Cívica...

E o que faz sentido para a colega?

Eu posso lhe dizer com mais certeza o que não faz sentido.

E o que não faz sentido?

uma parte das pessoas daquela reunião evitava encarar-me, e se pudessem me calariam, estava cercada por sentimentos clandestinos, sabia que seria preciso fustigar quem estava estava ali sem estar, uma presença sem entusiasmo e olhar baixo, um comparecimento de fachada, fisionomias suspeitas, sem curiosidade, sem desejo, dispersas num desprezo generalizado, essa reunião, por exemplo, caro colega, não faz sentido, fiz uma pequena pausa, um pouco de pose, talvez, gargalhava e me preparava para arreganhar os dentes, para mim não faz sentido ficarmos aqui, neste calorão do inferno, derretendo e escutando essa merda toda que sai da boca do colega.

Anita!

o desafio estava aceito, precisamos avançar na prática dialética da reflexão e do debate, encontrar pontos para motivar a discussão, superar compromissos machistas, racistas, preconceitos que não libertam e não transformam a realidade, mas também precisamos arreganhar os dentes e cerrar os punhos, E as outras vidas possíveis, professor? Continuaremos contando histórias de lagartas e borboletas? A lagarta não se vê borboleta, a borboleta não se sabe lagarta, é isso? Uma depende da morte da outra para voar? É isso que queremos contar? E as outras vidas possíveis? Vidas no casulo autoritário da escola que inviabiliza a criticidade, a conscientização, a aceitação das outras vidas possíveis. Chega, professor, meus ouvidos não são esgoto.

nunca haverá na escola que se submete a ser domicílio das relações verticais militares espaço para transformar as relações sociais que estabelecem e fixam as desigualdades de moradia, saúde, alimentação, transporte, emprego, a raiz do analfabetismo é o medo que as pessoas se descubram

Anita, por favor...

O que foi? Eu disse algo mais estúpido que o colega? Ah, o colega é mestre em alguma coisa... aham, o diploma diz cada vez menos sobre as nossas competências pessoais de empatia, gentileza e compromisso com as vidas.

Anita, a escola se transformou num centro de mediação com o mercado...

Quanta merda, Cabayba! Esse deus mercado, o deus da prosperidade, são pessoas manipuladoras, gente atrás de estratégias e estatísticas que lucra com o meu trabalho, o teu, o nosso, o trabalho dos jovens desta escola. E quem não se adapta é eliminada no paredão da vila. Olha aí, é o meu guri!

o silêncio se espalha em pânico e o mais furioso se cala, esconde os dentes, desfaz seu olhar assombrado, relaxa os punhos, não vai se engalfinhar comigo, estou fervendo clara e espontaneamente, eu sei que essa selvageria não acaba aqui

gente burra e surda

o silêncio começa a pesar sobre nossa reunião pedagógica – ou seria... a reunião administrativa da altíssima?

sei lá, já pouco me importa, parecemos em círculos tentando agarrar o rabo



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Leia também:

parábolas: ensaio 001A / Camarada, Ofélia!
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parábolas: ensaio 004A / uma carreta de bois
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parábolas: ensaio 010A / o medo no cardápio pedagógico
parábolas: ensaio 011A / o futuro não é eterno
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Moby Dick: 3.1- A Estalagem do Jato

Moby Dick



Herman Melville




3.1 - A estalagem do jato


Entrando pelo frontão da Estalagem do Jato, chegava-se a um vestíbulo espaçoso, baixo e estranho, com lambris antiquados, que lembrava a amurada de uma velha embarcação condenada. De um lado pendia um enorme quadro a óleo, tão inteiramente manchado de fumaça e tão apagado, que, pelas luzes cruzadas e desiguais em que era visto, só depois de uma análise minuciosa e uma série de visitas sistemáticas, além de uma cuidadosa pesquisa com os vizinhos, se poderia chegar a alguma compreensão de sua proposta. Havia um volume tão grande de tons e sombras inexplicáveis que, a princípio, quase se podia achar que um jovem artista ambicioso, da época das bruxas da Nova Inglaterra, tinha tentado desenhar o caos sob feitiço. Mas à força de muita e séria contemplação, meditação exaustiva, e, especialmente, abrindo a janelinha no fundo da recepção, chegava-se enfim à conclusão de que, ainda que exagerada, tal ideia não era de todo injustificada.

Mas o que mais intrigava e confundia era a massa alongada, difusa e negra de uma coisa que pairava no centro do quadro, por sobre três linhas azuis, indistintas e perpendiculares, que flutuava numa espuma indefinível. Um quadro verdadeiramente molhado, enlameado e alagado, capaz de perturbar um homem doente dos nervos. Contudo, havia nele uma espécie de sublimidade indefinida, incompleta, inimaginável, que congelava sua atenção, até que involuntariamente você jurasse a si mesmo desvendar o significado daquela pintura extraordinária. Vez por outra uma ideia brilhante, mas, ai, ilusória, o atingia. – É o Mar Negro, durante uma tormenta, à meia-noite. – É o combate sobrenatural dos quatro elementos da natureza. – Uma charneca arruinada. – É uma cena do inverno hiperbóreo. – É o degelo do rio do Tempo. Mas todas essas fantasias convergiam para algo portentoso no centro do quadro. Se aquilo fosse revelado, todo o resto seria simples. Mas pare; não há uma vaga semelhança com um peixe gigantesco? Com o próprio Leviatã?

De fato, segundo minha tese definitiva, baseada em parte nas opiniões conjuntas de várias pessoas idosas com quem conversei sobre o assunto, o propósito do artista parecia ser o seguinte: o quadro representa um navio no cabo Horn em meio a um grande furacão; veem-se apenas os três mastros destruídos de uma embarcação semiafundada; e uma baleia exasperada, pretendendo saltar por cima do barco, aparece sob o grandioso ato de empalar-se sobre os três mastros.

A parede oposta da recepção estava inteiramente coberta por uma selvagem exposição de clavas e espadas monstruosas. Algumas eram pesadamente decoradas com dentes resplandecentes que lembravam serras de marfim; outras traziam tufos de cabelo humano; e uma delas tinha forma de foice, com um cabo enorme arqueado, como o desenho produzido na grama recém-cortada por um ceifador de braços compridos. Você estremeceria ao vê-la e ficaria pensando que canibal selvagem e monstruoso poderia ter usado na colheita da morte um instrumento tão cortante e tão horripilante. Misturados a essas havia umas lanças e arpões velhos e enferrujados, todos quebrados e deformados. Algumas dessas armas eram famosas. Com esta lança outrora comprida, agora drasticamente encurtada, Nathan Swain matou há cinquenta anos quinze baleias entre o amanhecer e o anoitecer. E aquele arpão – agora tão parecido com um saca-rolha – fora atirado nos mares javaneses e carregado por uma baleia, que muitos anos depois foi morta na região do cabo Branco. O ferro original penetrou-a junto à cauda e, como uma agulha agitada que se instala no corpo de um homem, viajou por mais de doze metros, quando foi finalmente encontrado dentro da corcova.

Atravessando a recepção tenebrosa e continuando por uma passagem baixa em forma de arco – construído a partir do que outrora deve ter sido uma grande chaminé central com lareiras em volta –, você chegará ao salão. Este é um lugar ainda mais tenebroso, com um teto de vigas tão pesadas e baixas, e um assoalho de tábuas tão velhas e deformadas, que se tem quase a impressão de estar andando na cabine de uma velha embarcação, especialmente numa noite assombrada como aquela, em que esta velha arca ancorada num canto balançava tão furiosamente. De um lado havia uma mesa comprida e baixa, parecida com uma prateleira coberta por caixas de vidro quebrado, cheias de curiosidades empoeiradas, vindas dos recantos mais remotos deste vasto mundo. Projetando-se do ângulo mais afastado do salão há um cubículo escuro – o bar –, uma imitação malfeita de uma cabeça de baleia. Seja como for, ali fica um enorme osso arqueado de mandíbula de baleia, tão grande que uma carroça quase poderia passar por debaixo dele. Dentro ficavam prateleiras em mau estado, sobre as quais pousavam garrafas, frascos e outros recipientes velhos; e dentro daquela mandíbula de destruição instantânea, como outro Jonas maldito (nome pelo qual o chamavam), apressava-se um velhinho enrugado, que, por um alto preço, vendia o delírio e a morte aos marinheiros.

Abomináveis são os copos nos quais ele derrama seu veneno. Embora verdadeiros cilindros por fora – por dentro, os copos vis, feitos de um verde ostensivo, afunilavam enganosos em direção a um fundo falso. Linhas paralelas eram porcamente picadas à volta desses copos gatunos. Encha até esta marca e sua conta será de um centavo; até esta, mais um centavo; e assim por diante, até encher o copo – ou seja, até o cabo Horn, que você traga por um xelim.

Ao entrar no lugar encontrei uns jovens marinheiros reunidos em volta de uma mesa, examinando sob uma luz fraca diferentes tipos de artesanato em osso de baleia. Procurei o estalajadeiro, e ao dizer-lhe que queria ser acomodado em um quarto recebi como resposta que sua casa estava cheia, nenhuma cama desocupada. “Mas… alto lá!”, acrescentou, batendo na testa, “‘cê tem alguma coisa contra dividir o cobertor com um arpoador, hein? Imagino que ‘cê ‘tá indo atrás de baleia, então é melhor ir se acostumando com essas coisas.”

Eu lhe disse que jamais gostei de dormir com alguém na mesma cama; mas que se tivesse que fazê-lo, dependeria do tipo de pessoa que o tal arpoador era, e se ele (o estalajadeiro) não tivesse mesmo outro lugar para mim, e se o tal arpoador não fosse de todo desagradável, então, em vez de andar mais em uma cidade estranha numa noite tão lúgubre, eu ficaria com meio cobertor de um homem decente.

“Logo imaginei. Pois bem; sente-se. Jantar? Quer jantar? O jantar logo fica pronto.

” Sentei-me num velho banco de madeira, entalhado como um banco de Battery. Numa ponta, um marinheiro fazia mais adornos com seu canivete, trabalhando debruçado e com afinco no espaço entre suas pernas. Tentava fazer um navio a toda vela, mas não me parecia que estivesse progredindo muito.

Por fim, uns quatro ou cinco de nós fomos chamados para a refeição numa sala vizinha. Estava frio como na Islândia – não havia nenhum fogo –; disse o estalajadeiro que não tinha dinheiro para isso. Nada além de duas velas de sebo melancólicas, com gotas de graxa. Resignadamente abotoamos nossas jaquetas e levamos aos lábios as xícaras de chá quente com os nossos dedos quase congelados. Mas a comida era substanciosa – não apenas carne e batatas como também bolinhos; valha-me Deus! Bolinhos no jantar! Um jovem rapaz, de capote verde, atacou esses bolinhos do modo mais horrível.

“Meu jovem”, disse o estalajadeiro, “com certeza ‘cê vai ter um pesadelo de matar.”

“Senhor”, sussurrei, “esse não é o arpoador, é?”

“Ah, não!”, disse ele, parecendo divertir-se diabolicamente. “O arpoador é um cara de pele escura. Não, ele nunca come bolinho – só come bife, e ainda gosta malpassado.”

“Que diabos!”, disse eu. “Onde está esse arpoador? Está aqui?”

“Vai chegar logo”, foi a sua resposta.

Não pude evitar, e comecei a suspeitar desse arpoador de “pele escura”. De qualquer modo, tinha decidido que, se tivéssemos que dormir juntos, ele teria que se despir e entrar na cama antes de mim.

Acabado o jantar, o grupo voltou ao bar, e eu, não tendo nada melhor a fazer, resolvi passar o resto da noite como espectador.

Dali a pouco, ouviu-se um barulho de uma rixa na rua. Levantando-se, o estalajadeiro exclamou:

“É a tripulação do Orca. Vi hoje de manhã um comunicado dizendo que estava chegando; uma viagem de quatro anos, com o navio cheio. Hurra! Vamos saber as últimas notícias de Fiji.”

Na recepção ouviu-se um tropel de botas, a porta se abriu com violência e um bando turbulento de marinheiros atirou-se para dentro. Enfiados em seus casacos grosseiros de sentinelas, com as cabeças protegidas por cachecóis de lã, remendados e esfarrapados, e as barbas duras com pedaços de gelo, eles pareciam uma invasão de ursos de Labrador. Tinham acabado de desembarcar do navio, e esta era a primeira casa onde entravam. Por isso, não é de se admirar que fossem direto para a boca da baleia – o bar – onde o enrugado e mirrado velho Jonas, que lá oficiava, rapidamente lhes serviu copos cheios a todos. Um reclamou de um resfriado, ao que Jonas lhe preparou uma poção cor de piche de gim e melado, que jurou ser um remédio infalível para todos os resfriados e catarros, fossem eles crônicos ou apanhados, quer na costa de Labrador, quer a barlavento de uma geleira.

O álcool lhes subiu rapidamente à cabeça e, como acontece com os mais notórios beberrões recém-chegados do mar, eles começaram uma algazarra sem tamanho.

Observei, contudo, que um deles se mantinha um tanto arredio e, embora não quisesse estragar a festividade de seus companheiros com sua expressão sóbria, abstinha-se de fazer tanto barulho quanto os outros. Este homem despertou meu interesse de imediato; e já que os deuses do mar ordenaram que ele fosse em breve meu companheiro de bordo (se bem que apenas dividindo um quarto, no que concerne a esta narrativa) vou me aventurar a fazer uma breve descrição dele. Tinha mais de um metro e oitenta de altura, com ombros nobres, e o peito como o de uma ensecadeira. Raras vezes vi tanta força muscular num homem. Seu rosto profundamente melancólico e queimado fazia um contraste deslumbrante com seus dentes brancos, enquanto nas sombras profundas de seus olhos flutuavam reminiscências que pareciam não lhe trazer muita alegria. Sua voz denunciava imediatamente que vinha do sul, e seu porte elegante me fez pensar que ele devia ser um dos montanheses altos que vêm da serra de Allegany, na Virgínia. Quando a festança de seus companheiros alcançou o auge, o homem fugiu despercebido, e só tornei a vê-lo como companheiro de bordo no mar. Mas dentro em pouco seus companheiros sentiram sua falta e, sendo ele, como parecia, por algum motivo, bastante popular entre eles, começaram uma gritaria de “Bulkington! Bulkington! Onde está Bulkington?”, precipitando-se para fora da casa, a procurá-lo.

Agora eram cerca de nove horas e, como o salão parecia estar sobrenaturalmente quieto após essas orgias, eu me congratulei por um pequeno plano que me ocorrera um pouco antes da entrada dos homens do mar.

Homem nenhum prefere dormir a dois numa cama. A bem da verdade, a gente prefere não dormir nem mesmo com um irmão. Não sei bem a razão, mas as pessoas gostam de privacidade para dormir. E quando se trata de dormir com um estranho, numa estalagem estranha, numa cidade estranha, sendo esse estranho um arpoador, então as objeções se multiplicam. Também não havia nenhum motivo terrestre para que eu, um marinheiro, mais do que qualquer outro, dormisse a dois numa cama; pois os marinheiros não dormem juntos em alto-mar, como tampouco os Reis solteiros dormem a dois em terra. É claro que todos dormem juntos num mesmo compartimento, mas você tem sua própria rede, cobre-se com seu próprio cobertor, e dorme em sua própria pele.

Quanto mais eu pensava sobre este arpoador, mais eu abominava a ideia de dormir com ele. Era justo presumir que, em se tratando de um arpoador, seu linho ou lã não seria dos mais limpos e certamente não seria dos melhores. Comecei a ficar todo crispado. Além disso, estava ficando tarde e um arpoador que prestasse deveria estar em casa, indo para a cama. Imagine se ele caísse em cima de mim à meia-noite. Como eu saberia de que buraco imundo ele estaria chegando?

“Senhor! Mudei de ideia sobre o arpoador. Não vou dormir com ele. Vou experimentar este banco aqui.”

“Como quiser. Sinto não poder oferecer uma toalha pra você usar de colchão, e esta maldita tábua é muito ruim” – disse, mexendo nos nós e nas fendas. “Mas espere aí, entalhador de ossos; tem uma plaina de carpinteiro no bar – espere um pouco, vou deixá-la bem confortável para você.” Dizendo isto, trouxe a plaina; tirou o pó do banco com seu velho lenço de seda e começou a aplainar vigorosamente minha cama, sorrindo como um macaco. As aparas voavam para a esquerda e para a direita; até que, por fim, o ferro se chocou contra um nó indestrutível. O estalajadeiro estava quase torcendo o pulso, e pedi-lhe que parasse, pelo amor de Deus – a cama estava bastante confortável para mim, e eu não sabia como todo o aplainamento do mundo poderia fazer de uma placa de pinho um edredom. Juntou então as aparas com mais um sorriso, jogou-as no fogão do centro do salão e foi cuidar de seus afazeres, deixando-me numa meditação profunda.

Tomei ali as medidas do banco e descobri que era curto demais para mim; mas isso poderia ser remediado com uma cadeira. Mas também era estreito demais, e o outro banco do salão era cerca de dez centímetros mais alto do que o aplainado – por isso não havia como emparelhá-los. Coloquei então o primeiro banco ao comprido no único espaço vazio junto à parede, deixando um pequeno intervalo para que minhas costas se acomodassem. Mas logo percebi que havia uma corrente de ar frio que vinha do peitoril da janela e que esse plano não daria certo, ainda mais que uma outra corrente, vinda da frágil porta, se encontrava com a da janela, e as duas juntas formavam uma série de pequenos redemoinhos na imediata vizinhança do local onde eu havia pensado passar a noite.

O diabo que carregue o arpoador, pensei, mas não, eu não poderia tomar-lhe a dianteira – trancar a porta por dentro e pular em sua cama, sem ser acordado sequer pelas batidas mais violentas? Não me pareceu uma má ideia; mas, pensando melhor, descartei-a. Pois quem podia me garantir que na manhã seguinte, assim que eu pulasse fora do quarto, o arpoador não estaria de pé na recepção, pronto para me arrebentar!

Todavia, olhando à minha volta, não vendo nenhuma possibilidade de passar uma noite tolerável senão na cama de outra pessoa, comecei a achar que, afinal de contas, eu poderia estar cultivando preconceitos absurdos contra esse arpoador desconhecido. Pensei comigo, vou esperar um pouco; ele deve estar chegando logo. Vou dar uma boa olhada nele, e talvez nos tornemos bons companheiros de cama – nunca se sabe.

Mas embora os outros hóspedes continuassem chegando sozinhos, de dois em dois, ou de três em três, e indo se deitar, ainda não havia sinal do meu arpoador.

“Senhor!”, perguntei, “que tipo de sujeito é esse – ele sempre chega assim tão tarde?” Já era quase meia-noite.

O estalajadeiro riu de novo, seu riso magro, e parecia divertir-se extraordinariamente com algo que estava além da minha compreensão. “Não!”, disse, “esse aí acorda co’as galinha’ – deita cedo e levanta cedo – eh, é o passarinho que encontra a minhoca primeiro. Mas hoje ele saiu a negócio, entendeu, e não sei por que diabos ‘tá demorando, a não ser, talvez, que não tenha conseguido vender sua cabeça.”

“Vender a cabeça? – Que história de louco é essa que o senhor está me contando?”, meu sangue começava a esquentar. “O senhor quer dizer, estalajadeiro, que esse arpoador está mesmo envolvido, nesta abençoada noite de sábado, ou melhor, nesta manhã de domingo, com a tarefa de vender a sua cabeça na cidade?”




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Moby Dick é um romance do escritor estadunidense Herman Melville, sobre um cachalote (grande animal marinho) de cor branca que foi perseguido, e mesmo ferido várias vezes por baleeiros, conseguiu se defender e destruí-los, nas aventuras narradas pelo marinheiro Ishmael junto com o Capitão Ahab e o primeiro imediato Starbuck a bordo do baleeiro Pequod. Originalmente foi publicado em três fascículos com o título "Moby-Dick, A Baleia" em Londres e em Nova York em 1851,


O livro foi revolucionário para a época, com descrições intrincadas e imaginativas do personagem-narrador, suas reflexões pessoais e grandes trechos de não-ficção, sobre variados assuntos, como baleias, métodos de caça a elas, arpões, a cor do animal, detalhes sobre as embarcações, funcionamentos e armazenamento de produtos extraídos das baleias.

O romance foi inspirado no naufrágio do navio Essex, comandado pelo capitão George Pollard, que perseguiu teimosamente uma baleia e ao tentar destruí-la, afundou. Outra fonte de inspiração foi o cachalote albino Mocha Dick, supostamente morta na década de 1830 ao largo da ilha chilena de Mocha, que se defendia dos navios que a perturbavam.

A obra foi inicialmente mal recebida pelos críticos, assim como pelo público por ser a visão unicamente destrutiva do ser humano contra os seres marinhos. O sabor da amarga aventura e o quanto o homem pode ser mortal por razões tolas como o instinto animal, sendo capaz de criar seus fantasmas justamente por sua pretensão e soberba, pode valer a leitura. 


E você com que se identifica?


Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (4.1) - ... O CORONEL AURELIANO BUENDÍA

Cem Anos de Solidão


Gabriel Garcia Márquez


(4.1)



para jomí garcía ascot 

e maría luisa elío






O CORONEL AURELIANO BUENDÍA promoveu trinta e duas revoluções armadas e perdeu todas. Teve dezessete filhos varões de dezessete mulheres diferentes, que foram exterminados um por um numa só noite, antes que o mais velho completasse trinta e cinco anos. Escapou de quatorze atentados, setenta e três emboscadas e um pelotão de fuzilamento. Sobrevive u a uma dose de estricnina no café que daria para matar um cavalo. Recusou a Ordem do Mérito que lhe outorgou o Presidente da República. Chegou a ser comandante geral das forças revolucionárias, com jurisdição e mando de uma fronteira à outra, e o homem mais temido pelo governo, mas nunca permitiu que lhe tirassem uma fotografia. Dispensou a pensão vitalícia que lhe ofereceram depois da guerra e viveu até a velhice dos peixinhos de ouro que fabricava na sua oficina de Macondo. Embora lutasse sempre à frente dos seus homens, a única ferida que recebeu foi produzida por ele mesmo, depois de assinar a capitulação da Neerlândia, que pôs fim a quase vinte anos de guerras civis. Desfechou um tiro de pistola no peito e o projétil saiu-lhe pelas costas sem ofender nenhum centro vital. A única coisa que ficou de tudo isso foi uma rua com o seu nome em Macondo. Entretanto, conforme declarou poucos anos antes de morrer de velho, nem mesmo isso ele esperava, na madrugada em que partiu com os seus vinte e um homens, para se reunir às forças do General Victorio Medina.

— Nós deixamos Macondo aí para você — foi tudo quanto disse a Arcadio antes de partir. — Nós o deixamos bem, faça com que o encontremos melhor.

Arcadio deu uma interpretação muito pessoal à recomendação. Inventou para si mesmo um uniforme com galões e dragonas de marechal, inspirado nas gravuras de um livro de Melquíades, e pendurou no cinto o sabre com borlas douradas do capitão fuzilado. Colocou as duas peças de artilharia na entrada do povoado, uniformizou os seus antigos alunos, inflamados pelos seus pronunciamentos incendiários, e deixou-os vagar armados pelas ruas, para dar aos forasteiros uma impressão de invulnerabilidade. Foi uma faca de dois gumes, porque o governo não se atreveu a atacar a praça durante dez meses, mas quando o fez, descarregou contra ela uma força tão desproporcional que liquidou com a resistência em meia hora. Desde o primeiro dia de seu mandato Arcadio revelou ser partidário dos decretos. Chegou a baixar até quatro por dia, para ordenar e determinar o que lhe passava pela cabeça. Implantou o serviço militar obrigatório a partir dos dezoito anos, declarou de utilidade pública os animais que transitavam pelas ruas depois das seis da tarde e impôs aos homens maiores de idade a obrigação de usar uma faixa vermelha na manga. Enclausurou o Padre Nicanor na casa paroquial, sob a ameaça de fuzilamento, e proibiu-o de dizer missa e tocar os sinos, se não fosse para celebrar as vitórias liberais. Para que ninguém pusesse em dúvida a severidade dos seus propósitos, mandou que um pelotão de fuzilamento treinasse em praça pública atirando contra um espantalho. No começo, ninguém o levou a sério. Eram, afinal de contas, os rapazes da escola brincando de gente grande. Mas certa noite, ao entrar na taberna, o trompetista da banda saudou Arcadio com um toque de fanfarra que provocou o riso da clientela, e Arcadio o mandou fuzilar por falta de respeito à autoridade. Aos que protestaram pôs a pão e água, com os tornozelos num tronco que instalara num quarto da escola. “Você é um assassino! “, gritavalhe Úrsula cada vez que sabia de alguma nova arbitrariedade. “Quando Aureliano souber disso, vai fuzilar é você mesmo, e eu vou ser a primeira a me alegrar!” Mas tudo foi inútil. Arcadio continuou apertando as cravelhas com um rigor desnecessário, até se converter no mais cruel dos governantes que passaram por Macondo. “Agora sofram a diferença”, disse o Sr. Apolinar Moscote em certa ocasião. “Isto é paraíso liberal.”

Arcadio soube. A frente de uma patrulha, assaltou a casa, quebrou os móveis, açoitou as filhas e levou de rastros o Sr. Apolinar Moscote. Quando Úrsula irrompeu no pátio do quartel, depois de ter atravessado o povoado miando de vergonha e brandindo de raiva um rebenque cheio de alcatrão, o próprio Arcadio se dispunha a dar a ordem de ao pelotão de fuzilamento.

— Atreva-se, bastardo! — gritou Úrsula.

Antes que Arcadio tivesse tempo de reagir, descarregou a primeira vergastada.

“Atreva-se, assassino”, gritava. “E me mate também, seu filho da mãe. Assim não vou ter olhos para chorar a vergonha de ter criado um monstro.” Açoitando-o sem misericórdia, perseguiu-o até o fundo do pátio, onde Arcadio se enrolou como um caracol. O Sr. Apolinar Moscote estava inconsciente, amarrado no poste onde tinham antes o espantalho arrebentado pelos tiros de treinamento. Os rapazes do pelotão se dispersaram, temerosos de que Úrsula terminasse de se desafogar neles. Mas ela nem sequer lhes dirigiu o olhar. Deixou Arcadio com o uniforme espedaçado, bramando de dor e de raiva, e desamarrou o Sr. Apolinar Moscote para levá-lo em casa. Antes de abandonar o quartel, soltou os presos do tronco.

A partir de então, foi ela quem passou a mandar no povoado. Restabeleceu a missa dominical, suspendeu o uso das insígnias vermelhas e invalidou os decretos atrabiliários. Mas apesar da sua força, continuou chorando a infelicidade do seu destino. Sentiu-se tão sozinha que procurou a inútil companhia do marido, esquecido debaixo do castanheiro. “Olha só onde fomos parar”, dizia a ele, enquanto as chuvas de junho ameaçavam derrubar a coberta de sapé. “Olhe só a casa vazia, nossos filhos espalhados pelo mundo, e nós dois sozinhos outra vez como no princípio.” José Arcadio Buendía, afundado num abismo de inconsciência, era surdo aos seus lamentos. No começo da sua loucura, anunciava com latinórios agoniantes as suas urgências cotidianas. Em fugazes clarões de lucidez, quando Amaranta trazia a comida, ele lhe comunicava os seus pesares mais desagradáveis e se prestava com docilidade às suas ventosas e sinapismos. Mas na época em que Úrsula foi se lamentar ao seu lado, já tinha perdido todo o contato com a realidade. Ela o banhava por partes, sentado no banquinho, enquanto lhe dava notícias da família. “Aureliano foi para a guerra, faz mais de quatro meses, e não soubemos mais dele”, dizia, esfregando-lhe as costas com uma bucha ensaboada. “José Arcadio voltou, feito um homenzarrão mais alto que você e todo bordado em ponto de cruz, mas só veio trazer vergonha para a nossa casa.”

Acreditou observar, entretanto, que o marido se entristecia com as más notícias. Então, optou por mentir para ele. “Não acredite no que eu digo”, dizia, enquanto jogava cinzas sobre os excrementos, para recolhê-los com a pá. “Deus quis que José Arcadio e Rebeca se casassem, e agora são muito felizes.” Chegou a ser tão sincera no engano que ela mesma acabou se consolando com as suas próprias mentiras. “Arcadio já é um homem sério”, dizia, “e muito valente, e muito bonito com o seu uniforme e o seu sabre.” Era como falar a um morto, porque José Arcadio Buendía já estava fora do alcance de qualquer preocupação. Mas ela insistiu. Via-o tão manso, tão indiferente a tudo, que decidiu soltá-lo. Ele nem sequer se mexeu do banquinho. Continuou exposto ao sol e à chuva, como se as cordas fossem desnecessárias, porque um domínio superior a qualquer prisão visível o mantinha amarrado ao tronco do castanheiro. Pelo mês de agosto, quando o inverno começava eternizar, Úrsula pôde por fim lhe dar uma notícia que parecia verdade.

— Veja que a boa sorte continua nos perseguindo — disse a ele. — Amaranta e o italiano da pianola vão se casar.

Amaranta e Pietro Crespi, na verdade, tinham aprofundado a amizade, amparados pela confiança de Úrsula, que desta vez não pensou ser necessário vigiar as visitas. Era um namoro crepuscular. O italiano chegava ao entardecer, com uma gardênia na lapela, e traduzia para Amaranta os sonetos de arca. Permaneciam na varanda sufocada pelo orégão e pelas rosas, ele lendo e ela fazendo renda de bilros, indiferentes aos sobressaltos e às más notícias da guerra, até que os mosquitos os obrigassem a se refugiar na sala. A sensibilidade de Amaranta, sua discreta mas envolvente ternura, foram urdindo volta do namorado uma teia invisível que ele tinha que afastar materialmente com os dedos pálidos e sem anéis, para abandonar a casa às oito. Tinham feito um lindo álbum com os postais que Pietro Crespi recebia da Itália. Eram imagens de apaixonados em parques solitários, com vinhetas de corações flechados e fitas douradas sustentadas por pombinhos. “Eu conheço este parque em Florença”, dizia Pietro Crespi repassando os postais. “A gente estende a mão e os pássaros descem para comer.” As vezes, diante de uma aquarela de Veneza, a saudade transformava em suaves aromas de flores o cheiro de limo e mariscos podres dos canais. Amaranta suspirava, sonhava com uma segunda pátria de homens e mulheres formosos que falavam uma língua que parecia de crianças, com cidades antigas de cuja passada grandeza restavam apenas os gatos entre os escombros. Depois de atravessar o oceano na sua busca, depois de tê-lo confundido com a paixão nas carícias veementes de Rebeca, Pietro Crespi tinha encontrado o amor. A felicidade trouxe consigo a prosperidade. A sua loja ocupava agora quase um quarteirão, e era um refúgio de fantasia, com reproduções do campanário de Florença, que davam as horas num concerto de carrilhões, e caixinhas de música de Sorrento, e de pó-de-arroz da China que cantavam, se abrir a tampa, toadas de cinco notas, e todos os instrumentos musicais que se podiam imaginar e todos os artifícios de corda que se podiam conceber. Bruno Crespi, seu irmão mais novo, estava à frente da loja, porque ele já não chegava para atender à escola de música. Graças a ele, a Rua dos Turcos, com a sua deslumbrante exposição de quinquilharias, transformou-se num remanso melódico, para esquecer as arbitrariedades de Arcadio e o pesadelo remoto da guerra. Quando Úrsula determinou a retomada da missa dominical, Pietro Crespi presenteou o templo com um harmônio alemão, organizou um coro infantil e preparou um repertório gregoriano que deu uma nota esplêndida ao ritual taciturno do Padre Nicanor. Ninguém punha em dúvida que faria de Amaranta uma esposa feliz. Sem apressar os sentimentos, deixando-se arrastar pela fluidez natural do coração, chegaram a um ponto em que só faltava marcar a data do casamento. Não encontrariam obstáculos. Úrsula se acusava intimamente de ter torcido com adiamentos repetidos o destino de Rebeca, e não estava disposta a acumular remorsos. O rigor do luto pela morte de Remedios tinha sido relegado a segundo plano em favor da mortificação da guerra, da ausência de Aureliano, da brutalidade de Arcadio e da expulsão de José Arcadio e Rebeca. Diante da iminência do casamento, o próprio Pietro Crespi insinuara que Aureliano José, em favor de quem desenvolveu um carinho quase paternal, fosse considerado como seu filho mais velho. Tudo fazia crer que Amaranta se orientava para uma felicidade sem tropeços. Mas ao contrário de Rebeca, ela não revelava a menor ansiedade. Com a mesma paciência com que sarapintava toalhas de mesa, e tecia primores de passamanaria, e bordava pavões em ponto de cruz, esperou que Pietro Crespi não suportasse mais as urgências do coração. Sua hora chegou com as chuvas aziagas de outubro. Pietro Crespi tirou-lhe do colo o cesto de costura e apertou-lhe a mão entre as suas. “Não agüento mais esta espera”, disse a ela.

“Nós casamos no mês que vem.” Amaranta não tremeu ao contato das suas mãos de gelo. Retirou a sua, como um animalzinho em fuga e voltou ao trabalho.

— Não seja ingênuo, Crespi — sorriu — nem morta eu me caso com você. Pietro Crespi perdeu o domínio de si mesmo.

Chorou sem dor, quase quebrando os dedos de desespero, mas não conseguiu comovê -la. “Não perca tempo”, foi tudo quanto disse Amaranta. “Se realmente você me ama tanto, não volte a pisar nesta casa.”

Úrsula pensou enlouquecer de vergonha. Pietro Crespi esgotou os recursos da súplica. Chegou a incríveis exemplos de humilhação. Chorou uma tarde inteira no colo de Úrsula, que teria vendido a alma para consolálo. Em noites chuva, foi visto vagando nas proximidades da casa, com guarda-chuva de seda, tentando surpreender uma luz no quarto de Amaranta. Nunca andou tão bem vestido quanto nessa época. A sua augusta cabeça de imperador atormentado adquiriu um estranho ar de grandeza. Importunou as amigas de Amaranta, as que iam bordar na varanda, para que tentassem persuadi-la. Descuidou dos negócios. Passava o dia nos fundos da loja, escrevendo bilhetes desatinados, que fazia chegar a Amaranta com membranas de pétalas e borboletas embalsamadas, e que ela devolvia sem abrir. Trancava-se durante horas e horas tocando cítara. Certa noite cantou. Macondo acordou numa espécie de êxtase, angelizado por uma cítara que não podia ser deste mundo e uma voz que não se dia conceber que existisse na terra, tão cheia de amor. Pietro Crespi viu então a luz acesa em todas as janelas do povoado, menos na de Amaranta. A dois de novembro, dia de todos os mortos, seu irmão abriu a loja e encontrou todas as luzes acesas e todas as caixas de músicas abertas e todos os relógios travados numa hora interminável, e no meio daquele concerto disparatado encontrou Pietro Crespi no escritório dos fundos da loja com os pulsos cortados a navalha e as duas mãos metidas numa bacia de benjoim.

Úrsula ordenou que ele fosse velado na sua casa. O Padre Nicanor se opunha aos ofícios religiosos e à sepultura no campo santo. Úrsula enfrentou-o. “De uma maneira que nem senhor nem eu podemos entender, esse homem era um santo”, disse. “De modo que vou enterrá-lo, contra a sua vontade, junto à tumba de Melquíades.” Fê-lo, com o apoio de todo o povo, em funerais magníficos. Amaranta não saiu do quarto. Ouviu de sua cama o pranto de Úrsula, os passos e murmúrios da multidão que invadiu a casa, os uivos das carpideiras, e depois um profundo silêncio cheirando a flores pisadas. Durante muito tempo continuou a sentir o aroma da lavanda de Pietro Crespi ao entardecer, mas teve forças para não sucumbir ao delírio. Úrsula abandonou-a. Nem sequer levantou os olhos para se apiedar dela, na tarde em que Amaranta entrou na cozinha e pôs a mão nas brasas do fogão, até doer tanto que não sentiu mais a dor, e sim o fedor da sua própria carne chamuscada. Foi uma dose cavalar para o remorso. Durante vários dias andou pela casa com a mão metida numa caneca cheia de claras de ovo, e quando sararam as queimaduras era como se as claras de ovo tivessem cicatrizado também as úlceras do coração. A única marca externa que lhe deixou a tragédia foi a atadura de gaze negra que pôs na mão queimada, e que haveria, de usar até a morte.

Arcadio deu uma rara prova de generosidade, ao proclamar, mediante um decreto, o luto oficial pela morte de Pietro Crespi. Úrsula interpretou o fato como a volta do cordeiro extraviado. Mas se enganou. Tinha perdido Arcadio, não desde que vestiu o uniforme militar, mas desde sempre. Acreditava tê-lo criado como um filho, como criou Rebeca, sem privilégios nem discriminações. Entretanto, Arcadio era um menino solitário e assustado durante a peste da insônia, em meio à febre utilitária de Úrsula, aos delírios de José Arcadio Buendía, ao hermetismo de Aureliano, à rivalidade mortal entre Amaranta e Rebeca. Aureliano ensinou-o a ler e escrever, pensando em outra coisa, como o teria feito um estranho. Presenteava-o com a sua roupa, para que Visitación a diminuísse, quando já estava boa para jogar fora. Arcadio sofria com os seus sapatos grandes demais, com as suas calças remendadas, com as suas nádegas de mulher. Nunca conseguiu se comunicar com ninguém melhor do que o fizera com Visitación e Cataure, na língua deles. Melquíades foi o único que na realidade se ocupou dele, que lhe fazia escutar os seus textos incompreensíveis e lhe dava instruções sobre a arte da daguerreotipia. Ninguém imaginava o quanto chorara a sua morte em segredo e com que desespero tentou revivê-lo no estudo inútil dos seus papéis. A escola, onde lhe prestavam atenção e o respeitavam, e depois o poder, com os seus decretos peremptórios e o seu uniforme de glória, livraram-no do peso de uma antiga amargura. Uma noite, na taberna de Catarino, alguém se atreveu a lhe dizer:

“Você não merece o sobrenome que usa.” Ao contrário do que todos esperavam, Arcadio não mandou fuzilá-lo.

— Com muita honra — disse — não sou um Buendía.

Os que conheciam o segredo da sua filiação pensaram por aquela réplica que também ele estava a par, mas na realidade não o esteve nunca. Pilar Ternera, sua mãe, que lhe tinha feito ferver o sangue no gabinete de daguerreotipia, foi para ele uma obsessão tão irresistível como tinha sido primeiro para José Arcadio e depois para Aureliano. Apesar de ela haver perdido os encantos e o esplendor do riso, ele a procurava e a encontrava no rastro do seu cheiro de fumo. Pouco antes da guerra, num meio-dia em que ela foi mais tarde que de costume buscar o seu filho mais novo na escola, Arcadio a estava esperando no quarto onde costumava fazer a sesta, e onde depois instalou o tronco. Enquanto o menino brincava no pátio, ele esperou na rede, tremendo de ansiedade, sabendo que Pilar Temera tinha que passar por ali. Chegou. Arcadio agarrou-a pelo braço e tentou metê-la na rede. “Não posso, não posso”, disse Pilar Temera horrorizada. “Você não imagina como eu gostaria de lhe dar prazer, mas Deus é testemunha de que não posso.” Arcadio agarrou-a pela cintura com a sua tremenda força hereditária, e sentiu que o mundo se apagava ao contato da sua pele.

“Não se faça de santa”, dizia. “Afinal, todo mundo sabe que você é uma puta.” Pilar se refez do nojo que lhe inspirava o seu miserável destino.

— As crianças vão perceber — murmurou. — E melhor que esta noite você deixe a porta sem trancar.

Arcadio esperou-a naquela noite, tiritando de febre na rede. Esperou sem dormir, ouvindo os grilos alvoroçados da madrugada sem fim e o horário implacável dos socós, cada vez mais convencido de que o haviam enganado. De repente, quando a ansiedade já se havia decomposto em raiva, a porta se abriu. Poucos meses depois, diante do pelotão de fuzilamento, Arcadio haveria de reviver os passos perdidos na sala de aula, os tropeções contra os bancos, e por último a densidade de um corpo nas trevas do quarto e as batidas do ar bombeado por um coração que não era o seu. Estendeu a mão e encontrou outra mão com dois anéis num mesmo dedo, que estava a ponto de naufragar na escuridão. Sentiu a nervação das suas veias, o pulso do seu infortúnio e sentiu a palma úmida com a linha da vida cortada na base do polegar pela estocada da morte. Então compreendeu que não era essa a mulher que esperava, porque não cheirava a fumo, mas a brilhantina de florzinha, e tinha os seios inchados e cegos com mamilos de homem, e o sexo pétreo e redondo como uma noz, e a ternura caótica da inexperiência exaltada. Era virgem e tinha o nome inverossímil de Santa Sofía de la Piedad. Pilar Ternera lhe havia pago cinquenta pesos, a metade de suas economias de toda a vida, para que fizesse o que estava fazendo. Arcadio a vira muitas vezes, atendendo na lojinha de comestíveis dos pais, e nunca tinha prestado atenção nela, porque tinha a rara virtude de não existir por completo, a não ser no momento oportuno. Mas a partir daquele dia, enroscou-se como um gato no calor da sua axila. Ela ia à escola na hora da sesta, com o consentimento dos pais, a quem Pilar Ternera havia pago a outra metade das suas economias. Mais tarde, quando as tropas do Governo os desalojaram do local, amavam-se entre as latas de manteiga e os sacos de milho do depósito. Na época em que Arcadio foi nomeado chefe civil e militar, tiveram uma filha.



continua página 73...


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