O Idiota
Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
7a.
Quando o príncipe acabou de falar, elas todas estavam olhando para ele, jovialmente: mesmo Agláia e, de um modo todo especial, Lizavéta Prokófievna.
- Bem, elas o submeteram a um exame - exclamou a generala. - Bem, meninas, vocês pensaram que iam protegê-lo como a um parente pobre, mas ele apenas se digna tolerar vocês, e isso mesmo com a cláusula de que não virá muitas vezes não! Mistificou-nos todos, principalmente a Iván Fiódorovitch. Bem feito! Bravo príncipe! Meu marido ainda agora mandou que submetêssemos o senhor a um exame. E quanto ao que disse do meu rosto, está perfeitamente certo; sou uma criança, sei disso muito bem. Eu sabia antes, portanto falou por mim, pondo os meus pensamentos nas suas palavras. Creio que o seu caráter e o meu são iguais, exatamente, como duas gotas de água, e isso me alegra. A única diferença é que o senhor é um homem e eu sou uma mulher que nunca esteve na Suíça. Ora, aí está a única diferença.
- Não tire conclusões tão depressa, mamãe - disse Agláia. O príncipe confessou que em tudo isso tinha um motivo especial que não estava falando à toa.
- Foi, sim - riram as outras.
- Não o importunem, queridas. Ele é mais perspicaz do que vocês três juntas. Vão ver já. Mas por que foi que o senhor não falou nada a respeito de Agláia, príncipe? Agláia está esperando; e eu também.
- Não posso dizer nada por enquanto. Direi mais tarde.
- Por quê? Ela não tem nada que chame atenção?
- É isso mesmo. Vós sois inexcedivelmente bela, Agláia Ivánovna. Sois tão bela que se fica com medo de olhar-vos.
- Só isso? Não diz nada sobre as qualidades dela? - insistia a Sra. Epantchiná.
- É difícil julgar a beleza. Eu, pelo menos, ainda não sou capaz. A beleza é um enigma.
- Esplêndido, considerar Agláia como enigma. Esclareça o enigma, Agláia. Mas então ela é bonita?
- Muito!... - respondeu o príncipe, olhando com entusiasmo para Agláia. Tão bonita, decerto, como Nastássia Filíppovna, embora muito diferente de rosto. Todas se entreolharam, pasmadas.
- Como quem? - explodiu a Sra. Epantchiná. - Como Nastássia Filíppovna? Onde viu Nastássia Filíppovna? Qual Nastássia Filíppovna?
- Refiro-me a um retrato que Gavril Ardaliónovitch estava agora mesmo mostrando a Iván Fiódorovitch.
- Como? Ele trouxe o retrato dela para Iván Fiódorovitch?
- Só para mostrar. Nastássia Filíppovna, hoje, deu o seu retrato a Gavríl Ardaliónavitch, e ele, então, o trouxe para mostrar.
- Quero ver isso! - disse impetuosamente a Sra. Epantchiná. - Onde está essa fotografia? Se lhe foi dada, deve tê-la guardado com certeza: e como hoje é quarta-feira, dia de ficar trabalhando no gabinete, ainda deve estar lá. Não pode sair antes da hora. Chame-o, imediatamente. Não, não estou morrendo por vê-lo, não. Príncipe, quer me fazer um favor? Vá até ao escritório, peça a fotografia traga-a aqui. Diga-lhe que queremos ver; faça o favor.
Depois que o príncipe saiu. Adelaída disse:
- É tão agradável! Mas parece tão ingênuo...
- Sim, um tanto - concordou Aleksándra. - E isso o faz um pouco ridículo, deveras.
Nenhuma delas dissera direito o que tinha no pensamento.
- Mas se saiu muito bem a respeito de nossos rostos - considerou Agláia. - Adulou-nos bem; inclusive à mamãe.
- Deixem de fazer espírito. É favor! Ele não me lisonjeou; eu é que fiquei lisonjeada.
- Será que ele estava simulando?
- Adelaída parecia indecisa.
- Eu acho que ele não tem nada de ingênuo.
- Parem com isso - disse-lhes a mãe, ficando zangada. - No meu entender, vocês são mais ridículas do que ele. Acho que tem todas as faculdades em ordem, no sentido correto. Exatamente como eu.
“Fiz mal em falar nessa fotografia”... ia pensando Míchkin enquanto se dirigia ao escritório, sentindo uma pancada na consciência.
“Mas falei, está falado, e quem sabe até se não foi bom?”
Uma compreensão ainda difusa se estava aclarando em seu espírito.
Encontrou Gavril Ardaliónovitch ainda no escritório, absorvido com os seus papéis. É lógico que não recebia salário da Companhia para não fazer nada. Quando o príncipe lhe pediu a fotografia ficou desconcertado, tendo sido preciso que o príncipe lhe contasse como é que elas tinham ouvido falar nisso.
- Arre! Mas que necessidade tinha o senhor de dar com a língua? - exclamou desapontadíssimo. - Que tem o senhor que se imiscuir?
E sussurrou por entre os dentes: “Idiota!”
- Desculpe-me. Fiz isso inadvertidamente. É que as coisas se encaminharam de tal maneira! Eu estava dizendo que Agláia era tão bonita como Nastássia Filíppovna .. e aí... Gánia pediu-lhe que lhe contasse exatamente como o fato havia se passado. E o príncipe o fez.
Gánia olhava-o com desdém e sarcasmo.
- O senhor .. encasquetou-se-lhe Nastassia Filippovna no cérebro...
Mas, refletindo, parou de falar, porque uma ideia lhe veio subitamente.
O príncipe tornou a pedir o retrato.
- Ouça, príncipe, eu queria lhe merecer um favor... mas, realmente, não sei... Calou-se, embaraçado. Parecia estar lutando consigo mesmo ensaiando refazer-se. O príncipe esperava calado. Gánia tornou a examiná-lo, com mais cautela, olhando-o demoradamente.
- Príncipe - recomeçou ele - elas lá dentro estão aborrecidas comigo, por causa de um incidente à-toa e ridículo, pelo qual aliás não mereço censura; e nem é preciso aqui me explicar porquê. Acho que estão um pouco sentidas comigo, de maneira que, por enquanto, não devo entrar lá a não ser sendo convidado. Mas eu precisava muito dizer uma coisa a Agláia Ivánovna. Até escrevi umas poucas palavras, à espera de uma oportunidade (segurava um papel dobrado) e não sei como lhe entregar. O senhor quer pegar nisto e entregar, mas quando ela estiver sozinha, de modo que ninguém veja? Compreendeu bem? Não se trata de nenhum segredo impróprio, nada disso... mas... Quer me fazer este favor?
- Não gosto muito de fazer isso - respondeu o príncipe.
- Oh! Mas, príncipe, é uma coisa importantíssima para mim- suplicou Gánia. - Ela naturalmente responderá. Acredite-me, foi só em último recurso, só por não haver outra fórmula que tive de recorrer a... E não tenho mais ninguém a não ser o senhor, é preciso ser já... é muito importante, o senhor nem pode imaginar...
Olhava-o com olhos de servil bajulação, terrivelmente receoso de que Míchkin se negasse.
- Está bem, levarei.
- Mas entregue de maneira que ninguém veja - rogou Gánia. mais aliviado. - E, outra coisa, posso eu, de fato, me fiar na sua palavra de honra, príncipe?
- Sossegue, que não mostrarei isto a ninguém - disse o príncipe.
- O bilhete não está fechado, mas... - recomeçou Gánia, com ansiedade, calando-se logo muito confuso.
- Oh. Não vou ler, não! - respondeu o príncipe, com muita simplicidade.
Apanhou também o retrato que lhe fora entregue e saiu do escritório. Gánia, mal se viu sozinho, pôs as mãos na cabeça e declamou para si mesmo:
- Uma palavra dela... e rompo com tudo, nem tem dúvida!
E, por causa da excitação e da dúvida, não havia meios de pôr a papelada em ordem. Começou então a passear pela sala, de um canto para outro. O príncipe saiu um pouco pensativo, pois tal missão o impressionava desagradavelmente. Além disso, esse fato de um bilhete de um homem como Gavril Ardaliónovitch para uma moça como Agláia Ivánovna, era qualquer coisa de desarmonioso. E estando duas peças ainda longe da sala de estar, parou porque só então lhe veio uma ideia: olhar, aproveitando bem a claridade (e para isso se aproximou da janela) o retrato de Nastássia Filíppovna. Parecia tentar decifrar qualquer mistério que antes já o havia impressionado naquele rosto. Impressão que não tinha ainda passado; entretinha-se assim, pois, a verificar mais uma vez o que seria. E aquele rosto ainda o impressionou mais, não só por sua extraordinária beleza, como por qualquer coisa que existia escondida nele. Era uma expressão de ilimitado orgulho ou desdém, quase ódio em que se diluía, ao mesmo tempo, algo de confiante e de prodigiosamente enternecedor. O contraste entre esses dois elementos despertava um sentimento próximo da compaixão. Aquela deslumbrante beleza era de arrebatar. A beleza de um rosto pálido, cujas faces eram quase fundas e os olhos mais que brilhantes. Uma estranha e perturbadora beleza.
O príncipe esteve a contemplar o retrato durante um minuto e, depois, olhando apressadamente em volta, em sobressalto, o aproximou dos lábios e o beijou. Quando, porém, surgiu na sala de jantar já estava perfeitamente calmo. A sala de jantar era, por sua vez, separada da sala de estar por uma outra peça, e foi aí que, inesperadamente, deu com Agláia que vinha sozinha.
- Gavril Ardaliónovitch pediu-me que lhe entregasse isto.
E lhe estendeu o bilhete.
Agláia parou, pegou o bilhete e olhou de modo estranho para o príncipe, sem uma sombra sequer de embaraço. Apenas talvez houvesse uma expressão de admiração em seus olhos, expressão que parecia se referir ao gesto de Míchkin, esses olhos parecendo interrogá-lo, com calma e altivez, de que maneira se misturara nessa combinação com Gánia. E então, algo de irônico ou desdenhoso apareceu em seu rosto. Com imperceptível sorriso, saiu.
A generala contemplou em silêncio, demoradamente, o retrato de Nastássia Filíppovna, esticando afetadamente os braços, para o afastar.
- Sim, é linda - pronunciou, afinal. - Realmente, muito linda. Só a vi de longe, duas vezes. Então esta é a espécie de beleza que o senhor aprecia?
- É sim senhora - respondeu o príncipe, com certo esforço.
- Esta aqui, não é?
- É, essa sim, senhora. Justamente.
- Porquê?
- Neste rosto há muito sofrimento... - respondeu o príncipe como se estivesse refletindo consigo mesmo e não respondendo uma pergunta.
- Creio que o senhor está falando no ar... ao acaso - conclui a Sra. Epantchiná; e atirou o retrato sobre a mesa, com um gesto altivo.
Aleksándra pegou-o; Adelaída aproximou-se da irmã e se puseram as duas a contemplá-lo. Nisto, Agláia voltou à sala.
- Que força! - exclamou impetuosamente Adelaída, sem conter, olhando o retrato por cima do ombro da irmã.
- Onde?... Força? - perguntou a Sra. Epantchiná de modo cáustico.
- Uma beleza assim é força! Com uma beleza como esta se pode virar o mundo de cima para baixo, afirmou calorosamente Adelaída, encaminhando-se com ar pensativo para o cavalete de pintura. Agláia apenas olhou o retrato de esguelha, superficialmente, apertando um pouco as pálpebras; amuou e foi sentar-se, juntando as mãos.
A Sra. Epantchiná tocou a campainha. E disse ao criado que atendeu:
- Chame Gavril Ardaliónovitch aqui. Ele está no escritório.
- Mas, mamãe... - exclamou significativamente Aleksándra.
- Quero dizer umas palavras a esse indivíduo. Basta - interveio, interrompendo o protesto. Estava evidentemente irritada. - Nós aqui só temos mistérios, está vendo, príncipe, mistérios e mais nada. Tem sido sempre assim, até parece um protocolo já estabelecido. Como isso enerva!... E se trata exatamente de uma questão que exige acima de tudo franqueza, lealdade e retidão. Casamentos.. estão sendo arranjados...
- Mamãe, que é que a senhora está dizendo?!
Aleksándra tentava contê-la outra vez.
- Que é, querida filha? E agrada-lhe então tal atmosfera? Não se incomode do príncipe estar ouvindo, já somos amigos, os dois pelo menos, ele e eu nos entendemos. Deus quer homens bons, sim. claro que os há de querer direitos, não tolerando os fracos e manhosos. Isso então de manhosos não os suporta, a esses que hoje dizem uma coisa e amanhã declaram outra. Está compreendendo. Aleksándra Ivánovna? Dizem, príncipe, que sou espinoteada, mas eu é que sei que espécie de gente é essa. Sim, pois o coração é que conta, tudo o mais sendo tolice. É lógico, que urge ter também um pouco de sensatez.., talvez até o senso venha de fato a ser a grande coisa necessária. Agláia?! Está rindo de sua mãe?! Não estou me contradizendo, não! Uma boba com coração e sem senso é tão infeliz quanto uma boba com senso e sem coração. Esta é uma verdade bastante antiga. Eu sou uma boba com muito coração e quase nenhum senso, você é uma boba com muito senso e quase sem coração... Portanto, somos ambas infelizes e dignas de dó.
- Infeliz e digna de dó a senhora, mamãe? Por causa de quê? - não pôde Adelaída deixar de perguntar. Parecia a única do grupo que não perdera a boa disposição.
- Antes de tudo, vocês são umas filhas que tenho na conta de muito atiladas - redarguiu categoricamente a generala - e como isso por si só já é mais que suficiente, não é preciso entrarmos em outras coisas. Palavras demais já foram gastas. Veremos de que maneira vocês duas (com Agláia não conto!) saberão se servir do critério e das palavras... E só quero ver de que forma você deslindará o caso que lhe querem armar com o tal cavalheiro esplêndido, minha admirabilíssima Aleksándra Ivánovna. Há... - exclamou a generala vendo entrar Gánia - eis que entra um outro termo destacado de uma aliança matrimonial... Bom dia! - disse ela em resposta à saudação e às mesuras de Gánia, não lhe dizendo que se sentasse. - Com que então, na iminência de contrair núpcias, hein?
- Núpcias? Como? Quais núpcias? - tartamudeou Gavríl Ardaliónovitch, completamente zonzo.
Estava terrivelmente vexado.
- Bem, já vejo que prefere uma pergunta direta: então, vai casar?
- Eu... n... não senhora! - mentiu Gavril Ardaliónovitch; e uma onda de vergonha lhe subiu ao rosto.
Ainda assim conseguiu ver Agláia. de viés, sentada um pouco longe da mãe. E apressadamente retirou o olhar porque sentiu que ela o examinava com uma atenção firme, vigiando-lhe a confusão.
- Não? Respondeu que não? - persistiu a implacável senhora. - Chega. Vou marcar bem o dia de hoje. Em uma quinta-feira, pela manhã, isto é, hoje, o senhor disse “Não” como resposta à minha pergunta. Não é quinta-feira hoje?
- Acho que sim, mamãe - respondeu Adelaída.
- Vocês não sabem nunca que dia é da semana. E que dia hoje, do mês?
- Vinte e sete - prontificou-se Gánia.
- Vinte e sete. Em todos os sentidos, bem. Pode ir. Até à vista. Parece-me que o senhor, hoje, ainda tem muito que fazer. E já está na hora de me vestir para sair. Leve a sua fotografia. Recomende-me à sua infeliz mãe. Quanto ao senhor, príncipe, adeus, por hoje. Venha ver-nos mais vezes. Hei de visitar a velha Princesa Bielokónskaia de propósito para falar sobre o senhor. E quer saber de uma coisa, meu caro, estou convencida que foi simplesmente por minha causa que Deus o trouxe da Suíça aqui para Petersburgo. Decerto que o senhor veio por outros motivos, mas foi principalmente por minha causa. Deus dispõe... Adeus, queridas. Aleksándra, venha ao meu quarto, querida.
A generala retirou-se. Sucumbido, confuso, atarantado, Gánia pegou o retrato de sobre a mesa e se voltou com um sorriso crispado para o príncipe.
- Príncipe, vou agora mesmo para casa. Se o senhor não mudou de opinião quanto a residir conosco, poderei levá-lo, visto o senhor não saber o endereço.
- Fique mais um pouco, príncipe - pediu Agláia, levantando-se logo da cadeira. - Quero que o senhor escreva no meu álbum. Papai gabou tanto a sua caligrafia! Vou buscá-lo, não demoro.
E saiu.
continua página 075...
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