quinta-feira, 24 de março de 2022

Dostoiévski - O Idiota: Primeira Parte (7b.) - Por agora adeus, príncipe...

O Idiota



Fiódor Dostoiévski


Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira


Primeira Parte


7b.



- Por agora adeus, príncipe; também me vou - despedia-se Adelaída, apertando a mão de Míchkin, com toda a deferência, sorrindo gentilmente, antes de sair. Não olhou para Gánia, embora não modificasse o ar cordial. Mal as outras tinham saído, Gánia rosnou, virando-se com grosseria para o príncipe, com um olhar de fúria.

- Belo trabalho, hein? Tudo coisa sua! Por que esteve a tagarelar sobre meu casamento? O senhor não passa de um reles alcoviteiro!

- Dou-lhe a minha palavra que o senhor está enganado - explicou o príncipe, com toda a calma, polidamente. Eu nem sabia que o senhor ia se casar.

- O senhor bem que ouviu, ainda agora. Iván Fiódorovitch dizer que tudo ficaria arranjado esta noite, em casa de Nastássia Filíppovna. E veio para aqui repetir. Não minta. Por intermédio de quem poderiam elas vir a saber? Ora bolas! Quem podia ter dito senão o senhor? Já se esqueceu de que a Sra. Epantchiná insinuou isso.

- O senhor é quem deve saber. melhor do que eu, quem disse.. se, realmente, acha que insinuaram alguma coisa. Eu não disse uma palavra a respeito.

- E o bilhete? Entregou o bilhete? Que é da resposta? - interrompeu-o Gánía, com impaciência. Mas, bem nesse momento, Agláia voltou e o príncipe não teve tempo de responder.

- Aqui está o álbum, príncipe - disse ela, depondo-o aberto sobre a mesa. - Escolha uma página e escreva alguma coisa. Aqui está uma pena, e bem nova. Não se importa que ela seja de aço? Ouvi dizer que os calígrafos não empregam penas de aço.

Falava com o príncipe como se nem notasse a presença de Gánia. Mas, enquanto o príncipe arrumava a pena e escolhia a folha, preparando-se, Gánia se aproximou da lareira para onde se retirara Agláia, à direita de Míchkin e, com voz trêmula e torturada, balbuciou:

- Uma palavra! Apenas uma palavra e estarei salvo.

Prontamente se virando, o príncipe os encarou. O desespero estampado na cara de Gánia era verdadeiro; tinha o ar de ter dito aquilo sem pensar. Agláia olhou-o por alguns segundos, exatamente com aquele mesmo espanto calmo com que tinha examinado antes, na saleta, o príncipe. Para Gánía, nesse momento, essa surpresa admirada, que quase era perplexidade, foi mais terrível do que o mais desdenhoso desprezo.

- Que é que vou escrever? - perguntou Míchkin, vacilando.

- Vou lhe ditar - acalmou-o Agláia, voltando-se para ele. -Posso começar? Escreva: “Não sou mercadoria” (Sublime mercadoria!). Agora date. Dia e mês. Deixe ver.

O príncipe estendeu-lhe o álbum.

- Excelente! Como o senhor escreveu isso maravilhosamente! Que caligrafia esquisita! Obrigada. Adeus, príncipe. Ou antes, fique - acrescentou, porque um pensamento lhe veio inesperadamente. - Venha comigo. vou lhe dar uma coisa como lembrança.

O príncipe seguiu-a até à sala de jantar onde, parando, Agláia lhe estendeu o bilhete de Gánia, ordenando:

- Leia isso.

Olhando espantado para ela, o príncipe segurou o bilhete.

- Eu sei que o senhor não leu. Assim como sei que o senhor não é o confidente deste homem. Leia! Quero que leia. Era um bilhete evidentemente escrito às pressas: “Hoje, a minha sorte deve ser decidida, sabeis a que respeito. Tenho de dar, irrevogavelmente, hoje, a minha palavra. Sei que não tenho direito algum à vossa simpatia. Não ouso ter esperança alguma. Mas, certa vez, pronunciastes uma palavra. E essa palavra iluminou a negra noite da minha vida, tornando-se o meu fanal para sempre. Dizei essa palavra mais uma vez e me tereis salvo da ruína. Dizei apenas “Rompe com tudo” e eu romperei, hoje mesmo, com tudo. Oh! Não vos custa nada dizer isso! Dizei essa palavra ao menos como um sinal de vossa simpatia e compaixão por mim. Só isso. Nada mais, nada! Não ouso sonhar com esperança, porque não mereço. Mas, depois de uma palavra vossa, aceito outra vez a pobreza! Alegremente suportarei a minha situação desesperançada. E enfrentarei a luta. E me alegrarei com ela. E me reerguerei com renovada força. Mandai-me essa palavra de simpatia. Somente de simpatia. juro! Não lanceis ao desprezo um homem desesperado e submerso. e não considereis audácia o que apenas é esforço para me salvar da perdição. G. I.”

- Este homem me assegura - disse Agláia abruptamente, quando viu que Míchkin tinha acabado de ler – que as palavras “Rompe com tudo” não me comprometem e não me obrigam a nada! E me dá uma garantia escrita disso, conforme o senhor está vendo nesse bilhete. Repare como ele se apressou ingenuamente a sublinhar certas palavras, e de que modo grosseiro mostra, através delas, o seu pensamento e intenção. Todavia ele há de pelo menos calcular que se rompesse com tudo, por si só, sem nenhuma palavra minha, sem mesmo me falar fosse o que fosse, sem esperar nada de mim, eu teria dele uma impressão diferente e talvez, até, pudesse vir a lhe conceder uma certa amizade. Está farto de saber disso Mas a sua alma é imunda. Sabe, mas não se pode conduzir senão assim. Sabe, mas me pede uma garantia. Não sabe o que seja agir por confiança. Quer antes que lhe dê esperança da minha mão, para então renunciar aos cem mil! E quanto a qualquer palavra minha. no passado, de que fala no bilhete, dizendo que lhe iluminou a vida. trata-se de uma insolente mentira. Eu simplesmente tive pena dele, naquela ocasião, e foi isso apenas que lhe signifiquei. Mas é atrevido e despudorado. Não sei por que teve, então, a audácia de uma esperança a meu respeito. Não sei como lhe veio essa noção. Bem que imediatamente reparei. E não se cansa de tentar colher-me, mesmo agora. Mas, basta. Faça o favor de lhe devolver o bilhete logo que o senhor sair daqui de casa. Não antes. Compreende, não é?

- E que resposta lhe devo dar?

- Nenhuma. Evidentemente será essa a melhor resposta. Vai viver, então, na casa dele?

- Foi o próprio Iván Fiódorovitch quem me aconselhou isso, esta manhã.

- Então fique de guarda contra ele. Um aviso meu. Ele não lhe perdoará nunca lhe ter levado um bilhete devolvido. - Apertando-lhe ligeiramente a mão, Agláia saiu. Nem mesmo sorriu quando o príncipe se curvou. Tinha o rosto contraído e sério.

De volta à sala, o príncipe foi explicar a Gánia que ia só apanhar o seu embrulho e que já vinha, acrescentando: - Partiremos já.

Gánia batia com o pé, impaciente. Tinha o rosto sombreado de raiva. Até que por fim saíram para a rua, o príncipe com o seu embrulho debaixo do braço.

- A resposta? A resposta? - exclamou Gánia, fazendo-o parar, abalroando-o. - Que foi que ela mandou dizer? Entregou-lhe o bilhete?

Sem responder, o príncipe lhe devolveu a carta, o que pôs o outro petrificado.

- Como? A minha carta? Não entregou? Por quê? Ah! Eu logo vi. Que é que eu podia esperar do senhor? Ora bolas! Agora é que estou entendendo por que foi que ela não me compreendeu ainda agora. Mas, por que deixou de entregar? Oh, que inferno!...

- Perdão. Muito pelo contrário. Consegui entregá-la menos de um minuto depois que a recebi do senhor. E fiz tudo exatamente conforme o senhor me preveniu. Estou com ela, outra vez, porque Agláia devolveu-a agora mesmo.

- Quando? Mas... quando?
- Não viu quando eu acabei de escrever no álbum e ela me chamou lá dentro? Ao chegarmos à sala de jantar ela me devolveu a carta, me obrigou a lê-la e mandou que lhe entregasse de novo.

- Obrigou o senhor a ler? - gritou Gánia. - E o senhor leu?

Ele parou, pasmado, no meio da calçada. Estava tão admirado que ficou com a boca aberta.

- Sim, acabei lendo... Foi agora mesmo, lá...

- E ela, quando lhe entregou, disse que a lesse? Disse ela isso?

- Disse sim, e lhe asseguro que não li senão depois que ela insistiu. E antes de a entregar a ela, também não tinha lido.

Gánia ficou calado, um longo minuto, refletindo, com angustiado esforço. E só depois é que exclamou:

- Impossível! Ela não lhe poderia ter dito que lesse. O senhor está mentindo! O senhor leu por curiosidade!

- O senhor fique sabendo que eu não minto - respondeu o príncipe com voz imperturbável. - E sinto sinceramente, pode crer, sinto muito que isso lhe tenha sido tão desagradável.

- Mas, há criatura desenxabida! Diga, ela não falou nada. naquela hora? É lógico que tinha de dizer qualquer coisa. É lógico que deve ter dado qualquer resposta!

- Ah! Sim, é lógico.

- Então? Diga! Que inferno!... E Gánia bateu com o pé direito duas vezes, nas lajes.

- Quando eu acabei de ler, ela me disse que o senhor estava tentando armar-lhe um laço, pretendendo comprometê-la com a promessa de sua mão, não querendo perder, sem essa garantia, os cem mil rublos. Que se o senhor tivesse feito tudo isso, sem pedir compromisso algum e tivesse rompido com tudo, sem exigir prévia garantia, que ela até se sentiria na obrigação de lhe dedicar um pouco de amizade. E eu também acho. Ah!... E outra coisa ainda: quando lhe perguntei, já com a carta devolvida, qual era a resposta que eu devia trazer, ela retrucou que a ausência de resposta era a resposta que o senhor merecia. Penso que foi exatamente assim; em todo o caso me perdoará o senhor se esqueci as palavras exatas e por isso apenas estou repetindo conforme o que depreendi.

Subjugado por uma angústia incomensurável. Gánia desencadeou a sua fúria sem restrições.

- Ah! Então é assim, hein? rosnou ele. - Então ela joga pela janela afora os meus bilhetes! Com que então não quer fazer barganhas! Pois eu quero! E vamos ver! Ainda tenho umas coisas para outras cartadas! Veremos! Ela vai se arrepender. Vou fazê-la ficar fina, se vou!

Tinha as faces lívidas e rijas e espumava pela boca. Apertava os punhos. Andaram alguns passos. Comportava-se exatamente como se estivesse sozinho no quarto, sem mais ninguém, não guardando as aparências perante o príncipe, absolutamente não o considerando motivo para se conter ou para se exceder. Até que refletiu e se dominou.

- Ora, aí está uma coisa que não entendo... Como foi que o senhor (um idiota, ajuntou mentalmente) se tornou de repente depositário da confiança dela, com menos de duas horas de conhecimento?


A inveja, que era o que ainda estava faltando para lhe completar o sofrimento, desencadeou-se então, imediatamente lhe pungindo o peito.

- Realmente, não lhe sei explicar - respondeu Míchkin.

Gánia rebateu com cólera:

- Foi, portanto, para lhe dar uma prova de confiança que o chamou até à sala de jantar? Disse que era para lhe dar uma coisa!

- Entendo que foi para isso.

- Mas, raios me partam! Que foi que o senhor fez para a agradar? Como foi que o senhor fez para conquistar o coração delas todas? Escute - estava horrivelmente agitado e em terrível tumulto íntimo; todos os seus cálculos se haviam dissipado - escute: não poderá o senhor se lembrar do que esteve conversando com elas? As palavras, uma por uma, desde o começo? Fazer uma espécie de relato disso tudo? Não se recorda de ter notado qualquer coisa?

- Um relato? Posso, sim - prometeu o príncipe - Logo no começo, quando entrei, e nos ficamos conhecendo melhor, pusemo-nos a falar da Suíça.

- A Suíça que se dane!

- Depois, então, falamos da pena capital.

- Pena... capital?

- Sim, na conversa, qualquer coisa trouxe isso à baila, por qualquer analogia ou associação de ideias... Depois contei como passei três anos lá: narrei a história dessa pobre rapariga de aldeia...

- Para o diabo a tal rapariga. Adiante.

Gánia estava enfurecido e a sua impaciência não tinha limites

- Depois de como Schneider me deu a sua opinião sobre meu caráter e como me forçou a...

- Raios partam Schneider e a opinião dele que se dane! Que mais?

- E aí, não sei o que me levou a falar sobre fisionomias, melhor, sobre a expressão que cada rosto tem e... coisa vai, eu disse que Agláia decerto era tão bonita quanto Nastássia Filíppovna. Aí está como foi que vim a fazer menção do retrato...

- Mas, diante delas, o senhor não repetiu o que ouviu esta manhã no escritório? Não? Não mesmo?

- Repito-lhe que não.

- Como demônio então... Ai! Ai! Ai! Será que ela mostrou a carta à velha?

- Com toda a segurança lhe garanto que não. Estive lá todo tempo e ela, ou não teve ocasião, ou não quis.

- Veja bem! Não terá o senhor omitido alguma coisa?... Que raio de idiota! - sussurrou completamente alucinado. “Não sabe nem contar as coisas direito.”

Gánia, uma vez tendo começado a abusar de alguém sem encontrar resistência, perdia o senso da restrição, como se dá sempre no caso de certas pessoas. Pelo caminho que ia, não estava longe de se exaltar, até ficar cego de fúria. E foi isso que sucedeu, do contrário teria compreendido que esse “idiota”, que estava sendo tratado tão grosseiramente, era, no mais dás vezes, penetrante e atilado na compreensão das coisas, e que o relato que pôde dar de tudo fora extremamente satisfatório. E aconteceu o que ele não esperava, pois o príncipe lhe disse, de repente:

- Em boa hora lhe confesso, Gavríl Ardaliónovitch, que em tempos estive tão doente, que realmente fiquei quase um idiota. Mas já há muito tempo que me restabeleci, e portanto não admito que me chamem de idiota no rosto. Conquanto eu, em consideração à sua má sorte de hoje, lhe possa perdoar isso, pois compreendo o que seja confusão, lhe faço sentir que o senhor foi muito mal-educado para comigo, já por duas vezes. Não gosto disso, absolutamente, e de mais a mais, logo a seguir a uma apresentação e a um conhecimento tão recente! Assim, pois, como estamos justamente em uma esquina e em um cruzamento, não será melhor nos separarmos? O senhor toma a direita, para a sua residência, e eu vou por aqui, pela esquerda. Tenho comigo vinte e cinco rublos e acho que isso dá para uma hospedaria.

Gánia ficou mortalmente desconcertado e vermelho de vergonha diante de tão inesperada recusa.

- Perdoe-me, príncipe! - e substituiu o tom ofensivo por um outro de extrema polidez: - Peço-lhe, por misericórdia, que me desculpe! O senhor bem está vendo o meu atarantamento. O senhor só sabe muito por alto... mas se soubesse de tudo, estou certo que concordaria que eu mereço alguma desculpa. Muito embora, naturalmente, seja indesculpável que eu...

- Oh! Não é preciso o senhor se desculpar tanto! - apressou-se o príncipe em adverti-lo. - Eu entendo bem quanto tudo isso lhe é terrível! Sei que foi por isso que o senhor se tornou grosseiro. Bem, vamos então para a sua casa. E o faço com prazer.

A caminho, olhando ressentido para o príncipe, Gánia ia pensando ocultamente: “Não! Isso não fica assim, tu me pagas! O velhaco extraiu-me tudo que lhe convinha e agora tirou a máscara... Atrás disso tem coisa. Mas veremos. Tudo se decidirá! Tudo! E tem de ser hoje!”

Estavam agora parados, em frente da casa.



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