quinta-feira, 28 de julho de 2022

Dostoiévski - O Idiota: Primeira Parte (9a.) - Fez-se silêncio completo na sala.

O Idiota



Fiódor Dostoiévski


Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira


Primeira Parte


9a.


Fez-se silêncio completo na sala. Todos pasmaram para o príncipe, como se não tivessem ouvido ou não conseguissem compreender. Gánia ficou hirto de terror. A chegada de Nastássia Filíppovna, e justamente naquela hora, causou a maior e mais desordenada surpresa em todos. O fato mesmo de Nastássia Filíppovna se ter lembrado de visitá-los, já era assombroso. Até então fora tão altiva que nem em conversa com Gánia expressara. uma vez sequer, o desejo de lhe conhecer a família, sendo que, de modo algum, ultimamente, fazia a menor alusão a ela, como se nem existisse. Muito embora, de certa maneira, isso ao menos lhe proporcionasse alívio, por assim evitar um assunto melindroso, armazenara, todavia, em seu coração, um ressentimento contra ela. Verdade é que preferiria expor-se a receber da parte dela observações ferinas e irônicas, quanto à sua família, a recebê-la em casa. Tinha certeza de que ela estava a par de que em casa o seu compromisso despertava discórdias, não ignorando a atitude de tal família a seu respeito. Essa visita agora, logo a seguir ao presente do retrato, e no dia mesmo do seu aniversário, dia em que prometera dar a sua decisão, equivalia indubitavelmente à decisão mesma. Mas não durou muito a estupefação com que todos fitavam o príncipe. E não durou porque Nastássia Fílíppovna apareceu, em pessoa, à porta da sala de estar, obrigando o príncipe a recuar outra vez para lhe dar passagem.

- Sempre consegui entrar. É de propósito que a campainha está travada? - foi dizendo, muito bem-humorada, estendendo a mão a Gánia que se precipitara ao seu encontro.

- Por que está assim tão transtornado? Faça o favor de me apresentar.

Gánia, completamente zonzo, a apresentou primeiro a Vária. As duas mulheres, antes de se cumprimentarem, se estudaram com os olhos, de modo estranho; mas como Nastássia Filíppovna ainda estava sorrindo, pôde mascarar os seus sentimentos sob essa amostra de expansibilidade. Mas Vária não escondeu os seus, fitando-a com uma intensidade esquisita. Não surgiu em seu semblante o sorriso sequer que a simples polidez exige.
Gánia estava em transe.
Era inútil intervir e nem haveria tempo e modo; mas conseguiu atirar à irmã um olhar de soslaio tal que ela bem se deu conta do que esse momento representava para ele. Decidiu ceder e sorriu afetadamente para a outra.
(Na família todos ainda gostavam bastante uns dos outros.)
Quem, afinal, salvou a situação foi Nina Aleksándrovna a quem Gánia logo a seguir a apresentou, embora já irremediavelmente confuso. E tão confuso que em vez de apresentar Nastássia Filíppovna apresentou a mãe a esta. Mas tão logo Nina Aleksándrovna começou a falar no “grande prazer etc.”, já Nastássia Filíppovna, sem lhe dar atenção, se virava apressadamente para Gánia, sentando-se, sem esperar que lhe dissessem, em um sofazinho, a um canto, perto da janela.

- O seu escritório onde é? - perguntou logo. - E onde estão os inquilinos? Você recebe inquilinos, não é?

Gánia enrubesceu terrivelmente, e ia tartamudear qualquer resposta quando ela prosseguiu, não lhe dando tempo:

- Em que lugar você os aloja? Você nem ao menos um escritório tem? Dá lucro? - perguntou, já agora se dirigindo a Nina Aleksándrovna.

- Só dá incômodos - respondeu esta. - Naturalmente sempre compensa um pouco, mas só aceitamos justamente aqueles que...

Novamente Nastássia Filíppovna deixava de prestar atenção, fitava Gánia, sorria; até que exclamou:

- Mas com que cara você está! Meu Deus! Você está engraçadíssimo, agora!

A sua risada ressoou por diversos segundos e o rosto de Gánia se contraiu terrivelmente. A sua estupefação, o abatimento cômico que o atarantava desaparecera; mas estava agora tão pavorosamente pálido, com os lábios tão crispados, e tão solenemente calado, com um olhar mau e duro fitando a sua visitante, que a fez rir ainda mais.
Havia um outro observador que mal se tinha restabelecido do espanto que Nastássia Filíppovna lhe produzira; mas, apesar de estarrecido no mesmo lugar, em plena sala, pôde notar o pavor e a transformação de Gánia. Esse observador era o príncipe. Instintivamente, mesmo intimidado como estava, deu um passo à frente e disse a Gánia:

- Beba um pouco de água. Não fique assim.

Dissera isso compelido pelas circunstâncias, sem nenhuma intenção ou motivo segundo. Mas o efeito dessas palavras em Gánia foi formidável. Todo o seu ódio se voltou para o príncipe. Segurou-o pelo ombro e o encarou, calado, com ódio e desejo de vingança, mas impossibilitado de lhe dizer qualquer desaforo. Isso causou uma emoção geral.
Nina Aleksándrovnaf soltou uma exclamação curta e fraca, enquanto Ptítsin dava uns passos à frente. Kólia e Ferdichtchénko, que tinham chegado à porta, estacaram, atônitos Apenas Vária, com aquele seu feitio teimoso, olhava em silêncio. provocadoramente, de propósito, em pé, como estava, ao lado da mãe, os braços cruzados sobre o peito.
Contendo-se, Gánia sorriu nervosamente. E tendo recuperado quase a naturalidade, disse:

- Ora essa. O senhor é médico, príncipe? Pois não é que nos surpreendeu? Nastássia Filíppovna, posso apresentá-lo? Trata-se de uma rara personalidade, embora eu só o conheça desta manhã para cá.

Nastássia Filíppovna olhou espantada para o príncipe.

- Príncipe? Ele é príncipe? Ora, imaginem que eu o tomei ainda agora por um criado, e até lhe disse que viesse participar a minha chegada. Ah! Ah! Ah!

- Não houve ofensa. Não houve ofensa! - entrou dizendo Ferdichtchénko, rapidamente se dirigindo para ela, aproveitando enquanto riam. - Não houve ofensa. Se non e vero...

- E eu que estive quase a descompô-lo, príncipe! Perdoe-me, por favor. Ferdichtchénko, que esteve você fazendo para chegar aqui a tal hora? Não contava de modo algum encontrá-lo aqui. Príncipe o quê? Míchkin? - perguntava ela a Gánia que com o príncipe ainda preso pelo ombro, forcejava por apresentá-lo.

- Nosso inquilino - esclareceu Gánia.

Era notório que o estava apresentando e quase o empurrando para cima de Nastássia Filíppovna como uma curiosidade, como um meio de fugir à situação falsa em que estava colocado. E ao príncipe foi fácil colher no ar a palavra “idiota” pronunciada às suas costas, provavelmente por Ferdichtchénko, à guisa de informação complementar para Nastássia Filíppovna.

- Diga-me por que não me corrigiu ainda agora quando cometi a seu respeito tão tremendo equívoco? - perguntou Nastássia Filíppovna, observando-o da cabeça aos pés, sem cerimônia alguma. E ficou à espera da resposta, impacientemente, certa de que seria um despautério qualquer e tão estúpido que os faria rirem.

- Porque fiquei surpreendido! Dei convosco tão inesperadamente! - balbucíou o príncipe.

- Como soube que era eu? Onde me viu antes? Mas, espere um pouco. Acho que realmente já o vi em qualquer parte... Mas diga por que foi, afinal, que ficou tão assombrado? Que é que há em mim, de mais, para causar espanto?

- Agora é que eu quero ver... - insistiu Ferdichtchénko, com um risinho afetado. - Ó Deus, as coisas que eu diria em resposta a isso! Vá, príncipe, não nos faça pensar que é um rematado paspalhão!

- No seu lugar, eu também diria o mesmo - observou o príncipe rindo para Ferdichtchénko. - É que hoje o vosso retrato me deixou muito impressionado. - dirigia-se finalmente a Nastássia Filíppovna. - Ainda por cima, acontece que estive falando com os Epantchín a vosso respeito. E, o que é mais, já esta manhã. no trem, antes mesmo de chegar a Petersburgo, Parfión Rogójin já me falara sobre vós... E eis que, ainda agora ao abrir a porta, juro que estava pensando em vós, não sei por quê... E não é que subitamente...

- E como reconheceu que era eu?

- Pela fotografia e...

- E o quê?

- Correspondeis exatamente ao que eu imaginara... Foi como se já vos tivesse visto também, não sei onde. Esta a sensação que tive.

- Onde? Onde?

- Senti como se tivesse visto os vossos olhos em alguma parte... Mas isso é impossível, é bobagem minha... Estive sempre ausente daqui. Talvez, em sonho!...

- Bravo, príncipe! - gritou Ferdichtchénko. - Agora retiro o meu se non é vero. - arrependendo-se, porém, do elogio, acrescentou: - Mas tudo isso não passa de inocência... As poucas frases pronunciadas pelo príncipe foram em voz perturbada, sendo obrigado a parar para tomar fôlego. A menor coisa lhe causava emoção.

Nastássia Filíppovna olhou-o com interesse e já sem rir. Nisto uma outra voz ruidosa ribombou por detrás do grupo, que se tinha fechado em volta do príncipe e de Nastássia Filíppovna, parecendo abrir uma passagem fendendo o grupo ao meio. E, diante de Nastássia Filíppovna, surgiu o chefe da casa, o General Ívolguin em pessoa. Vestia sobrecasaca e a camisa tinha um peitilho postiço alvíssimo. A bigodeira acabara de ser pintada.
Isso, para Gánia, era mais que insuportável. De que lhe valera, ambicioso e frívolo, além de hipersensitivo em grau mórbido, ter procurado durante aqueles dois últimos meses, a todo custo, alcançar um meio de vida mais apresentável e distinto? Faltando-lhe experiência, embarafustara errado pelo caminho que se propusera. Era o déspota do lar, tendo assumido em desespero de causa uma atitude de completo cinismo. Mas não pudera manter essa posição diante de Nastássia Filíppovna, que o deixara propositadamente na incerteza até ao derradeiro momento.
O “pobretão impaciente”, como depois viera a saber que ela o chamava, tinha jurado por quantas juras sabia que a faria pagar amargamente por isso: mas ao mesmo tempo. como uma criança, sonhara reconciliar todos esses equívocos. E por cúmulo, agora, tinha de beber mais esta taça amarga, e bem nesta hora, ainda por cima. Mais uma tortura não prevista, a mais terrível de todas para um homem fútil: a agonia de ter de corar diante dos parentes e por causa deles, e em sua própria casa. Este o cruel e último quinhão. E pelo seu espírito acima subiu esta pergunta íntima: “A recompensa valerá tudo isto?”
Estava justamente acontecendo, nesse momento, o que durante dois meses fora o seu pesadelo, que o enregelava de terror e abrasava de vergonha. Afinal estavam aí face a face os dois: o pai e ela! Quantas vezes não o atormentara a visão imaginada do velho no dia do casamento! Mas é sempre assim com essa gente fútil.
Não se fartara naqueles dois meses de considerar em um modo global a questão, tendo decidido, custasse o que custasse, afastar o pai, no mínimo, momentaneamente, mandando-o até, se necessário fosse, para fora de Petersburgo, com ou sem anuência materna.
Dez minutos antes, quando Nastássia Filíppovna entrou, ele ficara tão zonzo e embaraçado que nem lhe ocorreu a hipótese de tamanha possibilidade, isto é, de Ardalión Aleksándrovitch aparecer em cena. E não procurara um meio de impedir isso. E eis que, diante de todos, solenemente vestido e garboso para a ocasião o general irrompe na sua sobrecasaca, justamente na hora em que Nastássia Filíppovna estava “apenas procurando um motivo para cobri-lo de ridículo, mais à sua família”.
(Gánia estava mais convencido disso.)
E essa visita, que intento tivera, se não esse? Viera para fazer amizade com a mãe e a irmã, ou para insultá-los a domicilio? E pela atitude de ambas as partes não restavam dúvidas a respeito. Sua mãe e sua irmã estavam sentadas à parte, muito envergonhadas, ao passo que ela, Nastássia Filíppovna, parecia esquecer intencionalmente que elas estavam ali naquela mesma sala, com ela. E se assim se comportava era lógico que tinha um intento com isso.
Ferdichtchénko logo se assenhorou do general, manobrando-o.



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