quinta-feira, 2 de maio de 2024

dor de cotovelo - cornitude

Lupicínio Rodrigues


"Vingança" (1972)´
Lupicínio Rodrigues canta uma música que ele próprio compôs, "Vingança", num programa da TV Cultura de 1972. (Fonte: "Arquivo N" da Globo News)




Eu gostei tanto
Tanto quando me contaram
Que a encontraram
Bebendo e chorando
Na mesa de um bar
E que quando os amigos do peito
Por mim perguntaram
Um soluço cortou sua voz
Não lhe deixou falar
Mas eu gostei tanto
Tanto, quando me contaram
Que tive mesmo de fazer esforço
Para ninguém notar

O remorso talvez seja a causa
Do seu desespero
Ela deve estar bem consciente
Do que praticou
Me fazer passar esta vergonha
Com um companheiro
E a vergonha
É a herança maior que meu pai me deixou
Mas, enquanto houver força no meu peito
Eu não quero mais nada
E pra todos os santos
Vingança, vingança
Clamar
Ela há de rolar qual as pedras
Que rolam na estrada
Sem ter nunca um cantinho de seu
Para poder descansar


Lupicínio Rodrigues (1914–1974) foi um importante compositor e cantor brasileiro. Suas composições o consagram como um nome referencial na formação da música popular brasileira da primeira metade do século XX, destacando-o como um dos principais representantes do samba-canção.


"Nervos de aço"
Lupicínio & Paulinho da Viola 

O samba-canção "Nervos de Aço", de Lupicínio Rodrigues, foi lançado originalmente em 1947 pelo cantor e compositor Francisco Alves, conhecido como O Rei da Voz e falecido em 1952 num acidente de carro na via Dutra. Em pouco tempo, a canção se tornaria um clássico de seu repertório e da própria música popular brasileira. Vale lembrar que Chico Alves foi o primeiro a gravar, em 1948, "Esses moços" (Pobres moços), outro clássico de Lupicínio.




Você sabe o que é ter um amor, meu senhor?
Ter loucura por uma mulher
E depois encontrar esse amor, meu senhor
Nos braços de um tipo qualquer?

Você sabe o que é ter um amor, meu senhor
E por ele quase morrer
E depois encontrá-lo em um braço
Que nem um pedaço do meu pode ser?

Há pessoas de nervos de aço
Sem sangue nas veias e sem coração
Mas não sei se passando o que eu passo
Talvez não lhes venha qualquer reação

Eu não sei se o que trago no peito
É ciúme, é despeito, amizade ou horror
Eu só sinto é que quando a vejo
Me dá um desejo de morte ou de dor

Você sabe o que é ter um amor, meu senhor?
Ter loucura por uma mulher
E depois encontrar esse amor, meu senhor
Nos braços de um tipo qualquer?

Você sabe o que é ter um amor, meu senhor
E por ele quase morrer
E depois encontrá-lo em um braço
Que nem um pedaço do meu pode ser?



Lupicínio Rodrigues nasceu em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, no dia 16 de setembro de 1914. Ele compôs marchinhas de carnaval e sambas-canção, músicas que expressam muitos sentimentos, principalmente a melancolia por um amor perdido. Foi o inventor do termo “dor-de-cotovelo”, que se refere à prática de quem crava os cotovelos em um balcão ou mesa de bar, pede um uísque duplo e chora pela perda da pessoa amada.


"Cadeira vazia"
Elis Regina - (Lupicínio Rodrigues / Alcides Gonçalves)




Lupicínio buscou inspiração em sua própria vida, onde a traição e o amor andavam sempre juntos. Ele frequentemente foi abandonado pelas mulheres, e essa experiência pessoal refletiu em suas canções.

Durante sua vida, Lupicínio Rodrigues nunca morou fora do Rio Grande do Sul e raramente se afastava de seu estado por períodos prolongados. Ele viveu na antiga Ilhota, um núcleo de concentração da população negra em Porto Alegre. Boêmio, ele foi proprietário de diversos bares, churrascarias e restaurantes com música.


"Felicidade" (1974)
Caetano Veloso 





Como torcedor do Grêmio, Lupicínio compôs o hino tricolor em 1953:

Até a pé nós iremos, para que der e vier. Mas o certo é que nós estaremos com o Grêmio onde o Grêmio estiver.

Seu retrato está na Galeria dos Gremistas Imortais, no salão nobre do clube. Lupicínio deixou cerca de uma centena e meia de canções editadas, além de outras centenas que compôs e foram perdidas, esquecidas ou estão à espera de quem as resgate. Ele está sepultado no Cemitério São Miguel e Almas em Porto Alegre.


"Esses moços
Gilberto Gil e Rildo Hora - (Lupicínio Rodrigues)





Em 21 de agosto de 1974, Lupicínio foi internado no Hospital Ernesto Dornelles devido a uma insuficiência cardíaca, doença que provocou sua morte pouco menos de uma semana depois, no dia 27.

Em 4 de novembro de 2014, a Câmara Municipal de Porto Alegre concedeu o título in memoriam de Cidadão Emérito de Porto Alegre a Lupicínio Rodrigues.


Especial Lupicínio Rodrigues - O Amor deve ser Sagrado

   O cantor Zé Renato é quem comanda a atração. Ele recebe músicos renomados e jovens talentos da MPB: Ney Matogrosso, João Bosco, Dori Caymmi, Léo Gandelman, Júlia Vargas, Iara Ferreira e João Cavalcanti.
   Intimista, o especial conta com os clássicos sambas do tipo "dor de cotovelo", como o próprio Lupicínio os chamava: Quem há de dizer; Esses moços; Nervos de aço; Nunca; Vingança; Se acaso você chegasse; Cadeira vazia; Volta; Maria Rosa; Aves daninhas; Exemplo; Fuga; e uma das mais famosas, a canção Felicidade. As gravações aconteceram no teatro do Centro Municipal de Referência da Música Carioca Artur da Távola, no Rio de Janeiro.
   Para Zé Renato, “Lupicínio é um grande melodista. Ele tem esse jeito de contar a vida dele através da música e consegue transformar tudo isso em poesia com um refinamento melódico muito grande. E cada artista, no show, vai passar com sensibilidade essa história de Lupicínio.”
   Intérpretes como Jamelão, Elza Soares, Elis Regina, Paulinho da Viola, Ciro Monteiro, Francisco Alves, Caetano Veloso, e Gal Costa já gravaram canções de Lupicínio Rodrigues, que saiu de cena em 27 de agosto de 1974.
   Nascido em Porto Alegre, em 16 de setembro de 1914, Lupicínio preferiu os temas soturnos da desilusão, da saudade e do abandono. Seu centenário é a celebração da vida de um dos mais inquietos e originais criadores do Brasil, que, para compor, utilizava-se de assovios e casos de amor.





Direção e Criação: Locca Faria
Direção Musical: Zé Renato
Arranjos: João Carlos Coutinho e Zé Renato
Produção: Visom Digital
Realização: TV Brasil

Repertório e intérpretes:
Esses moços, Quem há de dizer, Fuga, Exemplo: Zé Renato
Nervos de Aço: Ney Matogrosso
Se acaso você chegasse: João Bosco
Ave Daninhas: Júlia Vargas
Maria Rosa: João Cavalcanti
Cadeira vazia: Ney Matogrosso e Zé Renato
Volta: Iara Ferreira
Nunca: Dori Caymmi
Vingança: João Bosco
Felicidade: todos os cantores
http://tvbrasil.ebc.com.br/especiaist...


LUPICÍNIO RODRIGUES - CONFISSÕES DE UM SOFREDOR 
| Trailer Oficial





LUPICÍNIO RODRIGUES: CONFISSÕES DE UM SOFREDOR 
| Entrevista com diretor




  O cineasta Alfredo Manevy conta histórias do compositor Lupicínio Rodrigues presentes no documentário biográfico que leva o nome do músico e o subtítulo "Confissões de um Sofredor"

Ulisses - Parte 2 (4c): Ele acomodou o livro

Ulisses

James Joyce

Parte 2

4

continuando...

   Ele acomodou o livro de qualquer jeito no seu bolso interior e, dando uma topada com os dedos dos pés contra a cômoda quebrada, saiu apressadamente em direção ao cheiro, descendo rapidamente a escada com pernas de uma cegonha agitada. Uma fumaça pungente se elevou com um jato raivoso de um lado da panela. Cutucando com um dente do garfo por baixo do rim ele o destacou e o virou de borco. Só um pouco queimado. E jogou-o então da panela num prato e deixou que o molho marrom reduzido gotejasse sobre ele.
   Uma xícara de chá agora. Ele se sentou, cortou uma fatia de pão e passou manteiga nela. Separou a superfície queimada e a jogou para a gata. Em seguida pôs uma garfada na boca, mastigando com discernimento a carne maleável e saborosa. No ponto exato. Um gole de chá. Então ele cortou fora pedacinhos de pão, embebeu um no molho e o pôs na boca. Que história era aquela de um jovem estudante e de um piquenique? Desamassou a carta ao seu lado e a leu lentamente enquanto mastigava, embebendo um outro pedacinho de pão no molho e o levando à boca.

Meu querido paizinho

Obrigadíssima pelo lindo presente de aniversário. Ele ficou esplêndido em mim. Todos dizem que eu fico uma beldade com o novo gorro escocês. Eu recebi a bonita caixa de bombons de chocolate de leite de mamãe e estou escrevendo. Eles são muito saborosos. Estou me saindo muito bem no negócio de fotografia agora. O Sr. Coghlan tirou uma foto de mim com a Sra. Vou mandar quando reproduzida. Ontem foi um dia ótimo para os negócios. Um dia bonito e todas as mulheres de pernas grossas estavam presentes. Na segunda-feira nós vamos com alguns amigos a um piquenique informal no lago Owel. Dê meu carinho a mamãe e para você um grande beijo e obrigada. Eu os ouço tocando piano lá embaixo. No sábado vai haver um concerto no Greville Arms. Há um jovem estudante chamado Bannon que vem algumas noites aqui seus primos ou coisa que o valha são da alta e ele canta a canção de Boylan (eu estava prestes a escrever Blazes Boylan) sobre as moças à beira da praia. Diga-lhe que a Silly-Milly lhe manda lembranças. Tenho que terminar agora com todo o meu amor.
A filha que o ama  
Milly
P.S. Desculpe a letra ruim estou apressada. Baibai.

M. 
   Quinze anos ontem. Curioso, dia quinze do mês também. Seu primeiro aniversário fora de casa. Separação. Eu me lembro da manhã de verão em que ela nasceu, correndo para bater na porta da Sra. Thornton em Denzille Street. Uma senhora idosa alegre. Ela deve ter contribuído para trazer ao mundo uma porção de bebês. Ela soube desde o início que o nosso pobre pequeno Rudy não viveria. Ora, Deus é bom, senhor. Ela soube imediatamente. Ele teria onze anos agora se tivesse vivido. 

   O rosto apático dele fixava compassivamente o pós-escrito. Desculpe a letra ruim. Pressa. Piano lá embaixo. Ela saindo da concha. A briga com ela no XLCafé sobre a pulseira. Não queria comer os bolos ou falar ou olhar. Atrevidinha. Ele embebeu outros pedacinhos de pão no molho e comeu pedaço por pedaço do rim. Doze shillings e seis por semana. Não muito. Assim mesmo ela podia estar em situação pior. Palco de musical. Jovem estudante. Ele tomou um gole de chá mais frio para banhar sua refeição. Em seguida leu a carta novamente: duas vezes. 
   Ó, tudo bem: ela sabe como se cuidar. Mas se não? Não, não aconteceu nada. Naturalmente que poderia. De qualquer jeito espere até que aconteça. Uma peça agreste de mercadoria. Suas pernas finas subindo correndo a escada. Destino. Amadurecendo agora. Vaidosa: muito. 
   Ele sorriu com uma preocupação afetiva para a janela da cozinha. O dia em que a peguei beliscando as bochechas para torná-las vermelhas. Um pouco anêmica. Foi-lhe dado leite tempo demais. Aquele dia no Rei de Erin em volta do Kish. Miserável barco velho jogando de popa a proa. Nem um pouco amedrontada. Sua echarpe azul-claro solta ao vento com o seu cabelo.  

Aquelas moças de se sonhar, 
Aquelas moças da beira-mar.

   Milly também. Beijos jovens: o primeiro. Bem longe agora o passado. Sra. Marion. Lendo, recostada agora, contando os fios de seus cabelos, sorrindo, trançando.
   Um suave receio, tristeza, percorreu sua espinha dorsal, num crescendo. Vai acontecer, sim. Impedir. Inútil: não posso alterar nada. Lábios delicados e doces de moça. Vai acontecer também. Sentiu o receio fluindo espalhar-se sobre ele. Inútil alterar agora. Lábios beijados, beijando, beijados. Lábios grossos e pegajosos de mulher.
   Melhor que esteja lá: longe. Ocupá-la. Queria um cachorro para passar o tempo. Podia viajar para lá. Feriado bancário de agosto, apenas duas e seis ida e volta. Seis semanas fora, no entanto. Podia cavar um passe de imprensa. Ou através de M’Coy.
   A gata, tendo limpado todo o seu pelo, voltou para o papel manchado de carne, cheirou-o e rastejou até a porta. Olhou de volta para ele, miando. Quer sair. Espere até que uma porta em determinado momento se abra. Que ela espere. Fica inquieta. Elétrica. Tempestade no ar. Estava lavando sua orelha com o dorso também voltado para a lareira.
   Ele se sentia pesado, cheio: então uma suave soltura de seus intestinos. Levantou-se, abrindo o cós da calça. A gata miou para ele.

– Miau – disse ele, em resposta. – Espere até eu terminar.

   Indolência: dia quente se aproximando. Trabalho demais se esfalfar subindo a escada até o patamar. 
   Um jornal. Ele gostava de ler na privada. Espero que nenhum chato venha bater na porta justo na hora em que eu estiver.
   Na gaveta da mesa ele encontrou um antigo número do Titbits. Dobrou-o e o pôs debaixo do braço, foi para a porta e a abriu. A gata subiu em saltos ágeis. Ah, queria ir lá para cima, enroscar-se como uma bola na cama.
   Escutando, ele ouviu a voz dela:

– Venha, venha, gatinha. Venha.

   Ele saiu pela porta dos fundos para o jardim: parou para escutar o que vinha do jardim vizinho. Nenhum som. Talvez estivesse pendurando roupas para secar. A empregada estava no jardim. Bela manhã.
   Ele se inclinou para contemplar uma magra fileira de hortelãs crescendo muro acima. Fazer um quiosque aqui. Feijões escarlates. Trepadeiras da Virgínia. É preciso estrumar todo o lugar, solo ingrato. Uma camada escura de potássio e enxofre. Todo solo seria assim se não se adubasse. Restos domésticos. Barro, o que é que é isso afinal? As galinhas do jardim vizinho: seus excrementos são adubo de primeira. No entanto o melhor é o do gado, especialmente quando eles são alimentados com torta de linhaça. Excremento arenoso. Melhor coisa para limpar luvas de senhoras de pele de cabra. A sujeira limpa. Cinza também. Reformar todo o lugar. Plantar ervilha naquele canto ali. Alface. Ter sempre então verduras frescas. Ainda assim os jardins têm seus inconvenientes. Aquela abelha ou mosca-varejeira aqui na segunda-feira de Páscoa. 
   Ele continuou a andar. Por falar nisso, onde está o meu chapéu? Devo tê-lo posto de volta no cabide. Ou deixado no chão. Engraçado, eu não me lembro disso. Cabideiro cheio demais. Quatro guarda-chuvas, capa de chuva dela. Pegando as cartas. A campainha da loja Drago tocando. Esquisito eu estava justamente pensando naquele momento. Cabelo castanho-escuro com brilhantina sobre o colarinho dele. Acabou de ser lavado e escovado. Eu me pergunto se vou ter tempo para um banho esta manhã. Tara Street. O camarada da caixa registradora ali ajudou James Stephens a escapar, dizem. O’Brien.
   Voz grave tem aquele camarada Dlugacz. Agendath o que é isso? Ora, minha senhorinha. Entusiasta.
   Chutando ele abriu a porta rachada do sanitário. É bom ter cuidado para não sujar esta calça para o enterro. Ele entrou, abaixando a cabeça sob o lintel baixo. Deixando a porta entreaberta, em meio ao mau cheiro de caiação mofada e teias de aranha bolorentas ele arriou o suspensório. Antes de se sentar deu uma olhadela através de uma fenda para a janela do vizinho. O rei estava no seu escritório de contabilidade. Ninguém.
   Acocorado no vaso sanitário ele abriu o jornal, virando as páginas sobre seus joelhos nus. Alguma coisa nova e fácil. Nada de muita pressa. Retenhamos um pouco. Nosso prêmio titbit: Golpe de mestre de Matcham. Escrito pelo Sr. Philip Beaufoy, Clube dos Aficionados do Teatro, Londres. Pagamento na base de um guinéu por coluna foi feito ao escritor. Três e meia. Três libras e três. Três libras, treze e seis.
   Tranquilamente ele leu, se contendo, a primeira coluna e, cedendo mas resistindo, começou a segunda. No meio do caminho, sua última resistência cedeu, ele permitiu que seus intestinos se esvaziassem tranquilamente enquanto ele lia, lendo ainda pacientemente aquela ligeira prisão de ventre da véspera tinha-se ido. Espero que não seja grande demais para não provocar novamente hemorroidas. Não, justo o tamanho. Assim. Ah! Prisão de ventre. Um tablete de cáscara-sagrada. A vida devia ser assim. Isso não o agitava nem o emocionava mas era alguma coisa rápida e limpa. Imprima qualquer coisa agora. Estação tola. Ele continuou a ler sentado calmamente sobre o seu próprio cheiro que se elevava. Limpo certamente. Matcham pensa frequentemente no golpe de mestre por meio do qual conquistou a feiticeira risonha com quem agora. Começa e termina moralmente. De mãos dadas. Esperto. Ele olhou para trás para o que tinha lido e, enquanto sentia a urina fluir tranquilamente, invejava brandamente o Sr. Beaufoy que tinha escrito isso e recebido pagamento de três libras, treze e seis.
   Podia arranjar um esquete. Pelo Sr. e a Sra. L. M. Bloom. Inventar uma história para algum provérbio. Qual? Houve tempo em que eu costumava tentar rabiscar no meu punho o que ela dizia ao se vestir. Não gosto que nos vistamos juntos. Me cortei ao me barbear. Ela mordendo o lábio inferior, ao enganchar a abertura de sua saia. Marcando o tempo dela. 9:15. Roberts já lhe pagou? 9:20. O que Gretta Conroy estava usando? 9:23. O que me fez comprar este pente? 9:24. Estou inchada depois daquele repolho. Um grão de pó na bota de verniz dela: esfregando vivamente de cada vez cada dobra da bota de encontro à barriga da perna com meia. Manhã depois da dança do bazar quando a banda de May tocou a dança das horas de Ponchielli. Explique-se isso: horas da manhã, meio-dia, então o entardecer chegando, então horas da noite. Ela lavando os dentes. Aquela foi sua primeira noite. Sua cabeça dançando. Seu leque clicando ao fechar. Esse tal de Boylan está bem de vida? Ele tem dinheiro. Por quê? Eu reparei que ele exala um cheiro bom da sua boca ao dançar. Não adianta cantarolar então. Aluda a isso. Tipo estranho de música naquela última noite. O espelho estava na sombra. Ela esfregou seu espelho de mão rapidamente na sua roupa de lã de encontro ao seio roliço e balouçante. Espreitando para dentro dele. Rugas nos seus olhos. De uma forma ou de outra não ia dar resultado.
   Horas crepusculares, moças em gaze cinza. Horas noturnas então: pretume com punhais e máscaras nos olhos. Ideia poética: rosa, e então dourado, e então cinza, e então preto. Ainda assim, fiel à realidade também. Dia: e então a noite.
   Ele rasgou com força metade da história premiada e se limpou com ela. Em seguida suspendeu a calça, pôs o suspensório e se abotoou. Puxou a porta desconjuntada do sanitário e saiu da penumbra para o ar livre.
   Na luz clara, com os membros frios e leves, ele olhou cuidadosamente para sua calça preta: as extremidades, os joelhos, os jarretes dos joelhos. A que horas é o enterro? Melhor verificar no jornal.
   Um rangido e um zunido sombrio bem alto no ar. Os sinos da igreja de São Jorge. Eles soaram a hora: elevado ferro escuro.

Haiho! Haiho! 
Haiho! Haiho! 
Haiho! Haiho!

   Um quarto para. Lá vai novamente: o som concomitante prosseguindo através do espaço. Um terceiro.
   Pobre Dignam!
 
continua na página 70...
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Ulisses - Parte 2 (4c): Ele acomodou o livro
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Joyce, James 
Ulisses [recurso eletrônico] / James Joyce ; tradução Bernardina da Silveira Pinheiro ; [seleção, elaboração e tradução das notas de capítulos Flavia Maria Samuda]. - Rio de Janeiro : Objetiva, 2010. Romance irlandês.

quarta-feira, 1 de maio de 2024

New York Jazz

Jazz Saxophone Instrumental Music


os corpos
a música
a dança

despiertan
ciúmes qui atormentan
es por ti
sax
tenor
soprano
es por ti
ouvi-lo 
me vem recordação
dessa paixão
havia luz 
e escuridão
loucura infinita
conforto e dor






🎧New York Jazz Playlist 🎧

00:00 Why Don’t You Do Right
04:12 Summertime
08:01 My Funny Valentine
14:37 It Had To Be You
18:38 The Girl From Ipanema
25:14 The Nearness Of You
32:04 Harlem Nocturne
37:32 Straighten Up & Fly Right
40:54 Barbados
45:40 Europa
51:37 Moonlight Serenade
57:41 Stranger On The Shore

O Apanhador no Campo de Centeio - 12 : O táxi que tomei era velho

 O Apanhador no Campo de Centeio


J.D. Salinger


12

   O táxi que tomei era velho pra chuchu e cheirava como se alguém tivesse acabado de vomitar ali mesmo. Sempre que tomo um táxi de madrugada, tem que estar fedendo a vômito. E o pior é que a rua estava um bocado silenciosa e deserta, embora fosse uma noite de sábado. Não se via quase ninguém. Aqui e ali tinha um homem e uma mulher atravessando a rua, abraçados pela cintura e tudo, ou um grupo de imbecis com as namoradas, todos rindo como umas hienas de qualquer coisa que, aposto, não tinha a menor graça. Nova York é terrível quando alguém ri de noite na rua; pode-se ouvir a gargalhada a quilômetros de distância. É o tipo do troço que faz a gente se sentir só e deprimido. Continuava com vontade de ir para casa e fazer um pouco de hora com a Phoebe. Mas afinal, depois de algum tempo no táxi, eu e o chofer começamos a conversar. O nome dele era Horwitz. Era um sujeito muito mais simpático do que o outro motorista com quem eu tinha andado antes. Seja como for, pensei que ele talvez soubesse alguma coisa sobre os patos.

- Êi, Horwitz. Você conhece aquele laguinho no Central Park? Aquele lá pro lado sul? 

- Conheço o quê

- O laguinho. Aquele lago pequeno que tem lá. Sabe qual é, onde ficam os patos... 

- Sei, mas quê que tem? 

- Bom, sabe aqueles patos que ficam nadando nele? Na primavera e tudo? Será que por acaso você sabe pra onde eles vão no inverno? 

- Pra onde vai quem

- Os patos. Será que você sabe, por um acaso? Será que alguém vai lá num caminhão ou sei lá o quê, e leva eles embora, ou será que eles voam sozinhos, pro sul ou coisa que o valha? 

   O tal do Horwitz virou para trás e me olhou. Era um sujeito do tipo impaciente pra burro. Mas não era má pessoa. 

- Como é que vou saber? Como é que vou saber um negócio idiota desses, pomba? 

- Tá bem, não precisa se aborrecer - falei. 

   Ele ficou danado com aquilo, sei lá por quê. 

- Quem é que está aborrecido? Ninguém tá aborrecido. 

   Se era para o sujeito ficar assim todo chateado, preferi suspender a conversa. Mas ele mesmo puxou assunto outra vez. Virou-se de novo para trás e disse: 

- Os peixes não vão pra lugar nenhum. Ficam lá mesmo onde estão, os peixes. Na droga do lago mesmo. 

- Com os peixes é diferente. Aí são outros quinhentos. Tou falando dos patos

- O quê que é diferente com eles? Não vejo nada de diferente - ele respondeu. 

   Tudo que ele falava parecia que estava aporrinhado com alguma coisa. E continuou: - É muito pior pros peixes, no inverno e tudo, do que pros patos, não vê logo? Usa a cabeça, pôxa! 

   Fiquei calado mais ou menos um minuto. Aí falei: 

- Tá bem. Então, o que é que os peixes fazem quando o laguinho vira um bloco de gelo e tem uma porção de gente patinando nele e tudo? 

   O Horwitz se virou para trás de novo. - O quê que os peixes fazem? - gritou para mim. 

- Pomba, ficam ali mesmo onde estão, ora essa! 

- Mas eles não podem simplesmente ignorar o gelo. Não podem só fazer de conta que não tem gelo. 

- Mas quem é que ignora o gelo? Ninguém tá ignorando nada!

   O sujeito estava tão excitado e tudo que pensei que ele ia se arrebentar em cima dum poste ou coisa parecida.

- Vivem ali mesmo, dentro da porcaria do gelo. Já são feitos assim mesmo, por natureza. Ficam congelados o inverno todo na mesma posição. 

- É? Então quê que eles comem, hem? Quer dizer, se ficam congelados, durinhos, então não podem nadar e procurar comida nem nada. 

- O corpo deles, pomba... Quê que há contigo? O corpo deles retira a nutrição e tudo da droga das algas e da merda toda que tem no gelo. Eles ficam com os poros abertos o tempo todo. São assim mesmo por natureza. Tá entendendo agora? - ele falou, e virou outra vez no banco para me olhar. 

- Tá bom - respondi. Deixei o assunto morrer. Estava com medo que ele arrebentasse a droga do táxi. Além disso, era um cara tão estourado que não dava prazer nenhum conversar com ele. 

- Você se incomoda de dar uma paradinha e tomar um trago comigo em algum lugar? - perguntei. 

   Mas não me respondeu. Acho que ainda estava pensando. De qualquer maneira, perguntei de novo. Era um sujeito um bocado simpático. Muito divertido e tudo.

- Não tenho tempo pra andar bebendo, ô meu. E, afinal, qual é a tua idade, hem? Por que é que você já não está dormindo a esta hora? 

- Não estou cansado. 

   Quando desci na frente do Ernie's e paguei a corrida, o tal Horwitz puxou o assunto do peixe outra vez. O troço não saía mesmo da cabeça do homenzinho.

- Escuta. Se você fosse um peixe, a Natureza ia tomar conta de você, não ia? É ou não é? Ou você acha que tudo quanto é peixe morre quando chega o inverno, hem? 

- Não, mas... 

- É claro que não, pomba - ele falou, e arrancou com o carro como se fosse o diabo fugindo da cruz. Era um dos sujeitos mais invocados que eu encontrei até hoje na minha vida. Tudo que a gente dizia deixava ele furioso.

   Embora já fosse um bocado tarde, o Ernie's estava entupido de gente. Na maioria eram esses palhações das universidades. Em quase todas as drogas dos colégios do mundo as férias de Natal começam antes do que nos colégios em que eu estou. A gente quase não podia pendurar o sobretudo, de tão cheio. Mas era um silêncio danado, porque o Ernie estava tocando. Parecia que era um troço sagrado, no duro, a hora em que ele sentava para tocar. Ninguém pode ser tão bom assim. Ao meu lado estavam três casais, esperando vagar mesa, e ficaram todos na ponta dos pés, se empurrando, só para dar uma olhada no Ernie, enquanto ele tocava. Tinha um baita espelho em frente do piano e um refletor bem em cima do Ernie, para que todo mundo pudesse ver a cara dele enquanto tocava. Não dava para ver os dedos, só a droga da cara do safado. Grande coisa. Não sei direito o nome da música que ele estava tocando quando entrei, mas só sei que ele estava esculhambando mesmo o troço pra valer. Dando uma porção de floreios imbecis nos agudos e outras palhaçadas que me aporrinham pra chuchu. Mas valia a pena ver os idiotas quando ele acabou. Era de vomitar. Entraram em órbita, igualzinho aos imbecis que riem como umas hienas, no cinema, das coisas sem graça. Juro por Deus que, se eu fosse um pianista, ou um autor, ou coisa que o valha, e todos aqueles bobalhões me achassem fabuloso, ia ter raiva de viver. Não ia querer nem que me aplaudissem. As pessoas sempre batem palmas pelas coisas erradas. Se eu fosse pianista, ia tocar dentro de um armário. Seja como for, na hora que ele acabou e todo mundo estava aplaudindo como uns alucinados, o safado do Ernie deu uma volta no banquinho e fez uma reverência fingida, bancando o humilde. Como se, além de ser um pianista bom pra burro, fosse também um sujeito um bocado humilde. Era um troço cretino pra diabo aquilo dele ser metido a besta e tudo. Mas, de um jeito meio engraçado, senti pena dele quando acabou a música. Acho que ele nem sabe mais quando está tocando bem ou não. A culpa não é toda dele. Em parte, os culpados são aqueles bobalhões que batem palmas como uns alucinados: eles são capazes de enganar qualquer um, se tiverem uma chance. De qualquer maneira, o troço me fez sentir deprimido e podre outra vez, e quase apanhei meu casaco e voltei para o hotel, mas era cedo demais e eu não estava com muita vontade de ficar sozinho.
   Afinal me arranjaram uma mesa nojenta, encostada à parede e bem atrás de uma droga duma coluna, de onde não dava para ver nada. Era uma dessas mesinhas pequenininhas que, se o pessoal da mesa ao lado não se levanta para dar passagem - e os filhos da mãe nunca se levantam - a gente tem praticamente de fazer uma escalada para chegar na cadeira. Mandei vir um uísque e soda, que é o drinque que eu prefiro se não tiver daiquiri. Qualquer sujeito com uns seis anos de idade pode pedir bebida alcoólica no Ernie's. Primeiro, porque o lugar é tão escuro e tudo, e depois porque ninguém está mesmo dando a mínima bola para a idade da gente. O sujeito pode ser até viciado em entorpecente que ninguém se importa.
   Eu estava cercado de imbecis. Fora de brincadeira. Na outra mesinha, bem do meu lado esquerdo, praticamente em cima de mim, tinha um casal com umas caras feiosas pra burro. Tinham mais ou menos a minha idade, ou um pouquinho mais. Era engraçado. A gente via logo que eles estavam tomando um cuidado tremendo para não beber a consumação mínima muito depressa. Fiquei ouvindo algum tempo a conversa deles, porque não tinha mesmo mais nada para fazer. Ele estava contando a ela uma droga dum jogo de futebol que tinha visto naquela tarde. E descreveu todas as jogadas da droga da partida, da primeira à última! - fora de brincadeira. Era o sujeito mais chato que já encontrei em toda a minha vida. E dava para ver que a garota dele nem estava interessada na droga do jogo, mas ela era ainda mais feiosa do que ele, por isso eu acho que ela tinha mesmo de ouvir. O negócio não é mole para as garotas feias. Às vezes, elas me dão muita pena, nem gosto de olhar para elas, especialmente quando estão com um idiota que fica contando toda uma porcaria duma partida de futebol. Mas, à minha direita, a conversa ainda estava pior. Tinha um sujeito metido a besta, com um terno de flanela cinza e um desses coletes afrescalhados. Todos esses filhos da mãe das universidades se vestem igual. Meu pai quer que eu vá para uma dessas universidades metidas a bem, Yale ou talvez Princeton, mas juro que não me pegam nesses lugares cretinos nem morto, no duro mesmo. Seja como for, esse sujeito com pinta de aluno da Yale estava com uma garota espetacular. Puxa, ela era um estouro. Mas valia a pena ouvir a conversa dos dois. Em primeiro lugar, os dois já estavam meio altos. Ele estava passando a mão nas coxas dela, por baixo da mesa e tudo, e ao mesmo tempo contando a estória dum colega dele que tinha engolido um vidro inteiro de aspirina e quase se suicidou. Ela ficava só dizendo para ele: "Que horrível... Não, querido. Por favor. Não, aqui não..." Imagina só, passar a mão numa garota e ao mesmo tempo contar a ela o caso de um cara que tentou se suicidar! Era o máximo!
   Mas acabei me sentindo meio jogado fora, sentado ali sozinho. Não tinha nada para fazer senão fumar e beber. Acabei dizendo ao garçom para convidar o safado do Ernie para tomar um drinque comigo. Mandei dizer ao Ernie que eu era o irmão do D. B. Mas acho que nem deu o meu recado. Esses sacanas nunca dão os recados da gente a ninguém.
   De repente, uma garota veio andando na minha direção e disse:

- Holden Caulfield!

   O nome dela era Lillian Simmons. Meu irmão D. B. andou saindo com ela algum tempo. Tinha uns peitões enormes. 

- Como vai - respondi. Naturalmente, tentei me levantar, mas era impossível ficar em pé num lugar daqueles. Ela estava acompanhada de um oficial da Marinha que parecia ter engolido um cabo de vassoura. 

- Que maravilhoso encontrar com você! - ela falou. Puro fingimento. - Como vai teu irmão? - perguntou. Era só isso que ela queria saber.   

- Está bem. Ele está em Hollywood. 

- Em Hollywood! Que fabuloso! Que é que ele está fazendo? 

- Sei lá... Escrevendo - respondi. Não estava com vontade de discutir o troço. Era evidente que ela achava um negócio espetacular, aquilo dele estar em Hollywood. Quase todo mundo acha, principalmente as pessoas que nunca leram nenhum dos contos que ele escreveu. Mas a coisa me deixa furioso. 

- Que formidável - ela continuou. Aí me apresentou ao cara da Marinha, um tal de Comandante Blop ou coisa que o valha. Era um desses sujeitos que acham que vão parecer veados se não quebrarem uns quarenta dedos da mão da gente na hora de serem apresentados. Pôxa, eu tenho ódio desse tipo de troço. 

- Você está sozinho, meu querido? - a safada da Lillian perguntou. Ela estava interrompendo a droga do trânsito todo na passagem. A gente via logo que ela gostava um bocado de parar o trânsito. Tinha um garçom esperando que ela saísse da frente, mas ela nem reparou no sujeito. Era engraçado. Estava na cara que o garçom não gostava dela e que nem o cara da Marinha gostava muito dela, embora estivesse saindo com ela. E eu não gostava muito dela. Ninguém gostava. De certa maneira, a gente tinha que sentir pena da infeliz. 

- Você não está acompanhado, meu bem? - ela me perguntou. A essa altura eu já estava em pé e ela nem me disse para sentar. Era do tipo que deixa a gente de pé horas a fio. 

- Ele não é bonitão? - ela perguntou ao sujeito da Marinha. - Holden, você está ficando cada vez mais bonitão. 

   O cara da Marinha disse a ela para seguir em frente, que estava bloqueando a passagem toda.

- Holden, vem sentar conosco. Traz o teu drinque. 

- Não, obrigado. Já estava saindo - respondi. - Tenho um encontro marcado.

   Era claro que ela estava só querendo bancar a boazinha comigo para eu contar tudo depois ao D.B.

- Está bem, seu bandido. Divirta-se. Quando encontrar teu irmão, diz a ele que eu tenho ódio dele.

   Aí foi embora. O cara da Marinha e eu dissemos que tinha sido um prazer conhecer um ao outro. Esse é um troço que me deixa maluco. Estou sempre dizendo: "Muito prazer em conhecê-lo" para alguém que não tenho nenhum prazer em conhecer. Mas a gente tem que fazer essas coisas para seguir vivendo.
   Depois que eu disse a ela que tinha um encontro marcado, não podia mesmo fazer droga nenhuma senão sair. Nem podia ficar por lá para ouvir o Ernie tocar alguma coisa minimamente decente. Mas não ia de jeito nenhum sentar numa mesa com a Lillian Simmons e com aquele cara da Marinha e morrer de chateação. Por isso saí. Mas fiquei danado quando apanhei meu sobretudo. As pessoas estão sempre atrapalhando a vida da gente.

O Apanhador no Campo de Centeio - 12 : O táxi que tomei era velho
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“O Apanhador” narra um fim-de-semana na vida de Holden Caulfield, jovem de 17 anos vindo de uma família abastada de Nova York. Holden, estudante de um pomposo internato para rapazes, volta para casa mais cedo no inverno depois de ter levado bomba coletiva em quase todas as matérias. Na volta para casa, ao se preparar para enfrentar o inevitável esporro da família, Holden vai refletindo sobre tudo o que (pouco) viveu, repassa sua peculiar visão de mundo e tenta enxergar alguma diretriz para seu futuro. Antes de se defrontar com os pais, procura algumas pessoas importantes para si (um professor, uma antiga namorada, sua irmãzinha) e tenta lhes explicar a confusão que passa por sua cabeça.