segunda-feira, 2 de outubro de 2023

O Apanhador no Campo de Centeio - 8: Era muito tarde

O Apanhador no Campo de Centeio

J.D. Salinger

8


Era muito tarde para chamar um táxi ou coisa parecida, por isso fui mesmo a pé até a estação. Não era tão longe, mas fazia um frio danado, a neve dificultava a caminhada e as malas iam chacoalhando como umas desgraçadas de encontro a minhas pernas. Mas, de qualquer maneira, até que me sentia bem com o ar puro e tudo. O único problema era que o frio fazia meu nariz doer, e aumentava a dor que eu já estava sentindo na parte de dentro do meu lábio superior, onde o safado do Stradlater tinha me acertado. Ele tinha arrebentado meu lábio contra os dentes, e estava doendo pra chuchu. Mas minhas orelhas estavam bem quentinhas. Aquele chapéu que eu havia comprado tinha protetores de orelha, que eu tratei de abaixar. Estava pouco ligando para minha aparência.
Tive bastante sorte quando cheguei na estação, porque só precisava esperar uns dez minutos pelo próximo trem. Enquanto esperava, apanhei um bocado de neve e lavei minha cara, que ainda estava cheia de sangue.
Normalmente, eu gosto de andar de trem, principalmente de noite, com as luzes acesas e as janelas tão escuras, e um desses sujeitos passando pelo corredor, vendendo café, sanduíches e revistas. Normalmente eu compro um sanduíche de presunto e mais ou menos quatro revistas. Num trem, de noite, sou até capaz de ler uma dessas estórias imbecis sem vomitar de nojo. Uma dessas estórias com uma porção de machões de queixo ossudo, chamados David, e uma porção de garotas bestas, chamadas Linda ou Márcia, que estão sempre acendendo os cachimbos dos David para eles. Normalmente, consigo ler até mesmo uma dessas estórias cretinas se estou andando de trem, de noite. Mas dessa vez foi diferente. Pura e simplesmente, não estava no estado de espírito necessário. Fiquei só sentado, sem fazer nada. A única coisa que fiz foi tirar meu chapéu de caça e guardá-lo no bolso.
De repente, uma dona tomou o trem em Trenton e sentou ao meu lado. Já era um bocado tarde e tudo, e por isso o vagão estava praticamente vazio, mas ela sentou bem ao meu lado, e não em qualquer banco vazio, porque vinha carregando uma mala enorme e eu estava logo no primeiro banco. Deixou a mala bem no meio do corredor, onde o condutor ou qualquer um podia tropeçar nela. Estava usando umas orquídeas, como se tivesse acabado de sair de uma baita duma festa ou coisa parecida. Acho que ela devia ter uns quarenta ou quarenta e cinco anos, mas era um bocado bonita. Sou doido por mulher. No duro. Não que eu seja nenhum tarado nem nada, embora seja bastante macho. O negócio é que eu gosto mesmo das mulheres. Elas estão sempre deixando a porcaria das malas delas bem no meio dos corredores.
De qualquer modo, nós estávamos sentados lá e, de repente, ela me perguntou:

- Desculpe, mas essa etiqueta não é do Colégio Pencey?

Ela estava olhando para minhas malas, em cima da prateleira.

- É sim - respondi. Ela tinha razão. Havia mesmo uma droga duma etiqueta do Pencey em uma das minhas malas. Reconheço que era o tipo do negócio idiota de se usar.

- Ah, você estuda no Pencey? - perguntou. Ela tinha uma voz agradável. Era mais uma voz agradável de telefone. Ela bem que devia carregar uma porcaria dum telefone com ela por toda parte.

- É, eu estudo lá, sim - respondi.

- Ah, que interessante. Então talvez você conheça meu filho, o Ernest Morrow. Ele também está lá no Pencey.

- Conheço sim. Ele é da minha turma.

O filho dela era sem dúvida o maior sacana que já tinha passado pelo Pencey, em toda a infeliz história do colégio. Ele estava sempre andando pelo corredor, depois de tomar banho, batendo com a toalha encharcada na bunda dos outros. É esse o tipo de cara que ele era.

- Ah, que interessante! - ela disse, mas sem ser besta nem nada. Estava só querendo ser simpática. - Vou contar ao Ernest que nós nos encontramos - continuou ela. - Posso saber o seu nome, meu filho?

- Rudolph Schmidt - respondi. Não estava com a mínima vontade de contar a ela toda a história da minha vida. Rudolph Schmidt era o nome do zelador do nosso dormitório.

- Você gosta do Pencey? - ela perguntou.

- O Pencey? Não é de todo mau. Não é nenhum paraíso nem nada, mas é tão bom quanto a maioria dos colégios. Alguns professores são um bocado conscienciosos.

- O Ernest adora o Pencey.

- É, eu sei que ele gosta de lá - eu disse. Aí comecei a embromar um pouco. - Ele se adapta muito bem às coisas. No duro. Ele realmente sabe se adaptar ao meio.

- Você acha? - ela perguntou. Parecia interessada pra burro.

- O Ernest? Claro que sim.
Aí fiquei olhando enquanto ela tirava as luvas. Puxa, a mulherzinha estava coberta de pedraria.

- Acabei de quebrar uma unha saindo do táxi.

Olhou para e mim e sorriu. Ela tinha um sorriso tremendamente simpático. Verdade. A maioria das pessoas ou não sabem sorrir ou têm um sorriso pavoroso.

- Eu e o pai do Ernest às vezes nos preocupamos com ele. Às vezes pensamos que ele não faz amigos com facilidade.

- Como assim?

- Bem, ele é um rapaz muito sensível. Ele nunca foi de ter muitos amigos. Talvez porque encara as coisas com seriedade demais para a idade dele.

Sensível. Essa era a maior. O tal do Morrow tinha tanta sensibilidade quanto um assento de privada.
Olhei bem para ela. Não me parecia nenhuma imbecil. Parecia mesmo que era capaz de saber direitinho que bom sacana que era o filho dela. Mas não se sabe nunca, quando se trata da mãe de alguém. Todas as mães são um pouquinho amalucadas. Mas o fato é que eu estava simpatizando com a mãe do Morrow. Ela era cem por cento.

- A senhora aceita um cigarro?

Ela olhou em volta: - Acho que não se pode fumar neste carro, Rudolph - ela disse. Rudolph. Essa foi infernal!

- Não faz mal não. A gente pode fumar até eles começarem a reclamar - respondi.

Aceitou um cigarro, que eu acendi para ela. Fumava de uma maneira simpática. Tragava e tudo, mas não engolia a fumaça, como a maioria das mulheres da idade dela. Tinha um bocado de charme. Para dizer mesmo a verdade, ela era um bocado atraente sexualmente.
Ela estava me olhando de um jeito meio esquisito. – Pode ser que eu esteja enganada - ela disse, de repente - mas acho que seu nariz está sangrando, meu filho.
Acenei com a cabeça e apanhei meu lenço.

- Me acertaram uma bola de neve - falei. – Uma dessas bem geladas.

Eu provavelmente teria contado a ela tudo que tinha de fato acontecido, mas ia tomar muito tempo. Mas eu simpatizava com ela. Estava começando a me sentir chateado de haver dito que meu nome era Rudolph Schmidt.

- O Ernie - eu disse - ele é um dos sujeitos mais populares do Pencey. A senhora sabe disso?

- Não, não sabia.

Sacudi a cabeça afirmativamente.

- Na verdade, custou um bocado até o pessoal todo conhecer bem o Ernie. Ele é um sujeito engraçado. Um sujeito estranho, de certo modo - a senhora compreende? Por exemplo, a primeira vez que eu encontrei com ele. Nessa primeira vez, pensei que ele era um sujeito meio metido a besta. Foi o que eu pensei. Mas ele não é, não. O caso é que ele tem uma personalidade muito original, e a gente custa um pouco a conhecer ele bem.

A mãe dele não disse nada, mas, puxa, valia a pena ver a cara dela. Parecia colada na poltrona. É sempre assim, a gente fala com a mãe de alguém, e a única coisa que elas querem ouvir é como o filho delas é bacana pra chuchu.
Aí eu comecei a embromar mesmo.

- Ele falou à senhora sobre as eleições? - perguntei. - As eleições na turma?

Ela fez que não com a cabeça. Tinha posto a mulherzinha em transe. No duro.

- Bem, muitos de nós queríamos que o Ernie fosse o chefe da turma. Era realmente uma escolha unânime. Quer dizer, ele era o único sujeito realmente capaz de ocupar o cargo - eu disse. Puxa, agora ninguém me segurava mais. - Mas quem acabou sendo eleito foi outro cara, o Harry Fencer. E sabe por quê? Pela única e exclusiva razão de que o Ernie não quis ser candidato. Só porque ele é tão modesto, tão tímido e tudo. Ele recusou... Puxa, ele é modesto mesmo. A senhora deve procurar fazer com que ele se modifique um pouco nesse ponto.

Olhei para ela.

- Ele falou à senhora sobre isso?

- Não, não me disse nada.

Sacudi a cabeça. - O Ernie é assim mesmo. É evidente que não ia contar. Esse é o defeito dele - ser tão tímido e modesto. A senhora deve realmente tentar fazer com que ele seja um pouco mais desembaraçado.
Nesse exato instante, o condutor apareceu para conferir a passagem dela, e me deu uma chance de parar com a embromação. Mas até que eu estava satisfeito de ter dito aquelas besteiras. Um sujeito assim como o Morrow, que está sempre batendo com a toalha na bunda dos outros - pra machucar mesmo - não é safado só quando é garoto. É safado a vida toda. Mas aposto que, depois de toda aquela baboseira que eu falei, a mãe dele vai pensar sempre nele como o sujeito tímido e modesto pra burro, que não deixou a gente elegê-lo chefe da turma. Certamente vai pensar, não se sabe nunca. As mães não são lá muito espertas nesse tipo de coisa.

- A senhora aceita um drinque? - perguntei. Estava com vontade de beber um troço qualquer. - Podemos ir até o carro-restaurante. Vamos?

- Meu filho, você tem idade para pedir bebidas alcoólicas? - ela perguntou. Mas sem ser desagradável. Ela era simpática demais para ser desagradável.

- Poder não posso, lá isso é verdade, mas normalmente me servem por causa da minha altura - respondi. - E, além disso, eu tenho um bocado de cabelo branco.

Virei de lado e mostrei a ela os meus cabelos brancos. Ela ficou fascinada com o troço.

- Vamos, a senhora não quer me acompanhar? - insisti. Eu bem que gostaria que ela fosse comigo.

- Acho que não, mas muito obrigada, meu filho. E, de qualquer maneira, o carro-restaurante deve estar fechado. Já é muito tarde sabe?

Ela tinha razão. Eu já havia até esquecido da hora. Aí ela olhou para mim e perguntou aquilo que eu estava mesmo com medo que ela perguntasse.

- O Ernest me escreveu dizendo que voltava para casa na quarta-feira, que as férias de Natal iam começar na quarta-feira. Espero que você não tenha sido chamado para casa de repente por causa de doença na família.

Ela realmente parecia preocupada. Era evidente que não estava perguntando só porque era enxerida nem nada.

- Não, todo mundo vai bem lá em casa - respondi. - Sou eu mesmo. Tenho que fazer uma operação.

- Oh! Que pena! - disse ela. E estava com pena mesmo. Me arrependi imediatamente de ter dito aquilo, mas agora já era tarde demais.

- Não é nada sério, não. Estou só com um tumorzinho no cérebro.

- Ah, não! - ela falou. Levantou a mão até a boca e tudo.

- Ah, vai correr tudo bem. É bem perto da superfície, e é bem pequenininho e tudo. Eles podem tirar o troço em dois minutos.

Aí eu comecei a ler um horário de trem que tinha trazido no bolso. Só para parar de mentir. Quando eu começo, posso ficar mentindo horas a fio, se me dá vontade. Sem brincadeira. Horas.
Não conversamos muito depois disso. Ela começou a ler o Vogue que tinha trazido, e eu fiquei olhando algum tempo pela janela. Ela desceu em Newark. Desejou que tudo corresse bem na operação. Sempre me chamando de Rudolph. Aí me convidou para visitar o Ernie durante o verão em Gloucester, Massachussets. Disse que a casa deles era bem em frente da praia e tinha quadra de tênis e tudo, mas eu só agradeci e disse a ela que ia para a América do Sul com minha avó. Essa era mesmo de amargar, porque minha avó quase nunca sai nem de casa, a não ser talvez para ir a uma porcaria duma matinée ou coisa que o valha. Mas eu não ia visitar aquele filho da puta do Morrow nem por'todo o dinheiro do mundo, nem que eu estivesse desesperado.

O Apanhador no Campo de Centeio - 8: Era muito tarde

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