segunda-feira, 3 de julho de 2023

O Apanhador no Campo de Centeio - 6: Tem coisas difíceis da gente lembrar

O Apanhador no Campo de Centeio

J.D. Salinger

6

Tem coisas difíceis da gente lembrar. Por exemplo, a volta do Stradlater do encontro com a Jane. Quer dizer, não consigo lembrar direito o que é que eu estava fazendo quando ouvi a droga dos passos dele no corredor. Talvez ainda estivesse olhando pela janela, mas juro quê não me lembro. Estava preocupado demais, é por isso. Não brinco em serviço quando me preocupo com alguma coisa. Fico até precisando ir ao banheiro. Só que não vou, porque minha preocupação é tão grande que não quero interrompê-la só para ir lá. Qualquer um que conhecesse o Stradlater também ficaria preocupado. Já tínhamos saído juntos com garotas algumas vezes, e sei o que estou dizendo. Ele não tinha escrúpulos. Nem um pouco.Seja como for, o corredor era forrado de linóleo e tudo, e a gente ouvia a porcaria dos passos dele se aproximando do quarto. Não me lembro mais nem onde estava quando ele entrou - se na janela, ou na minha cadeira, ou na dele. Juro que não me lembro.
Chegou se queixando do frio lá fora. Aí disse:

- Onde é que se meteu o pessoal? Isso aqui tá parecendo mais uma droga dum necrotério.

Nem me dei ao trabalho de responder. Se a burrice dele não lhe permitiu ver que era sábado de noite e que quem não tinha ido passar o fim de semana em casa já estava dormindo - não era eu que ia perder meu tempo para ensinar isso a ele. Começou a tirar a roupa. Não disse nem uma porcaria duma palavra sobre a Jane. Nem umazinha. Nem eu, que fiquei só olhando para ele. Limitou-se a me agradecer pelo casaco que eu tinha emprestado. Pendurou-o num cabide e guardou no armário.
Aí, enquanto tirava a gravata, perguntou se eu havia escrito a droga da redação para ele. Respondi que estava em cima da porcaria da cama. Apanhou-a e foi lendo enquanto desabotoava a camisa. Ficou ali, de pé, lendo e alisando o peito e a barriga, com a maior cara de boçal. Ele vivia alisando o peito ou a barriga. Ele se adorava.
De repente, falou:

- Que negócio é esse, Holden? Você escreveu sobre uma droga duma luva de beisebol!

- E daí? - eu disse, com a maior frieza.

- E daí o quê? Eu te disse que tinha que ser sobre uma porcaria duma sala, uma casa ou outro troço assim.

- Você disse que tinha de ser descritiva. Qual é a diferença se é sobre uma luva de beisebol?

- Merda!

Ele estava com uma raiva dos diabos. Furioso mesmo.

- Por que é que tudo que você faz é enrolado, hem? - falou virando-se para mim.

- Não é à toa que você vai ser chutado daqui do colégio. Não há uma merda duma coisa que você faça direito. É isso mesmo. Nem uma única porcaria.
- Tá bem, então me dá aí a redação - falei. Fui até lá, arranquei o papel da mão dele e rasguei em pedacinhos. - Pra quê que você fez isso?

Nem respondi. Apenas joguei os pedacinhos na cesta de papéis. Aí me deitei na cama e nenhum de nós falou durante muito tempo. Ele tirou toda a roupa, ficando só de cuecas, e eu acendi um cigarro, ainda na cama. Era proibido fumar no dormitório, mas àquela hora da noite, com todo mundo dormindo ou na rua, ninguém podia sentir o cheiro e não tinha importância. Mas fumei mesmo só para chatear o Stradlater, que ficava doente quando a gente não cumpria o regulamento. Ele nunca fumava no dormitório, era sempre eu.
Ainda não tinha dito nem uma palavra sobre a Jane. Não me aguentei:

- Você está chegando um bocado tarde, se é que ela só tinha mesmo licença para voltar às nove e meia. Ela chegou atrasada por tua causa?

Quando perguntei, ele estava sentado na beirada da cama, cortando a porcaria das unhas dos pés.

- Só uns dois minutos. Também é o tipo da idéia infeliz ir dormir às nove e meia numa noite de sábado.

Puxa vida, como eu detestava aquele sujeito.

- Vocês foram a Nova York? - perguntei.

- Tá maluco? Como é que a gente podia ir a Nova York se às nove e meia ela tinha que estar de volta?

- É, é meio difícil mesmo.

Olhou para mim.

- Escuta aqui - ele disse. - Se você está com vontade de fumar, que tal dar uma chegadinha no banheiro, bem? Você está indo embora daqui, mas eu ainda preciso agüentar a mão até me formar.

Não dei pelota. Não dei mesmo. Continuei a fumar como uma chaminé. Só fiz me virar meio de lado e ficar olhando para ele, enquanto aparava a droga das unhas. Que colégio! A gente passava o tempo todo vendo alguém cortar a porcaria das unhas ou espremer as espinhas, ou coisa que o valha.

- Você deu minhas lembranças a ela? - perguntei.

- Dei.

Aposto que não deu, o sacana.

- E aí, o quê que ela disse? Você perguntou a ela se ainda guarda todas as damas na última fila?

- Não! Como é que ia perguntar um troço desses? Que é que você pensa que nós ficamos fazendo a noite inteira? Jogando damas, é? Essa não!

- Se você não foi a Nova York, então pra onde foi? - perguntei um pouco depois. Minha voz já estava saindo trêmula pra burro. Puxa, como eu estava nervoso. Tinha a impressão de que havia acontecido alguma coisa esquisita entre eles dois.

Stradlater acabou de cortar a porcaria das unhas. Levantou-se, só de cuecas e tudo, e começou a bancar o brincalhão. Chegou junto da minha cama, se abaixou e ficou dando uns murros de brincadeira no meu ombro.

- Para com isso - eu disse. - Se não foi a Nova York, pra onde é que você levou a Jane?

- Pra lugar nenhum. Ficamos no carro mesmo - respondeu e me deu novamente um daqueles murrinhos idiotas no ombro.

- Para com isso! No carro de quem?

- Do Ed Banky.

Ed Banky era o técnico de basquete do Pencey. O Stradlater era protegido dele porque jogava de pivô no time. Por isso o carro do Ed Banky estava sempre à sua disposição. Era proibido aos alunos dirigir os carros dos professores, mas os sacanas que praticavam esporte eram um bocado unidos. Em todos os colégios onde estive, esses sacanas formavam sempre a sua panelinha. Stradlater continuava a dar aqueles saquinhos de brincadeira no meu ombro. Botou na boca a escova de dentes que estava segurando.

- Você mandou brasa nela dentro do carro do Ed Banky? - perguntei, com a voz tremendo mais do que gelatina.

- Isso é coisa que se diga? Tá querendo que eu lave a tua boca com sabão?

- Mandou ou não mandou?

- Isso é segredo profissional, meu chapa.

Não me lembro direito do que aconteceu depois. Só sei que me levantei da cama, como se fosse para o banheiro ou coisa parecida, e tentei dar-lhe um murro de surpresa, com toda força, bem ali na escova de dentes, para furar a droga da garganta dele. Só que errei. Não consegui acertar direito. Quando muito, peguei-o no lado da cabeça. Talvez tivesse machucado um pouquinho, mas não como eu queria. Teria machucado de verdade, se eu não tivesse usado a direita, que é a minha mão fraca. Por causa daquele defeito de que eu já falei.

Afinal, quando vi já estava deitado no chão, e o Stradlater, com o rosto vermelho pra diabo, sentado em cima do meu peito. Quer dizer, a droga dos joelhos dele estavam fincados no meu peito e o safado pesava mais de uma tonelada. Meus pulsos também estavam presos, por isso não podia lhe dar outro murro. Tive vontade de matá-lo.

- Quê que há com você? - ele repetia, a cara estúpida cada vez mais vermelha.

- Tira essa merda desses joelhos de cima de mim - falei, quase urrando. Urrando mesmo. - Vamos, sai de cima de mim, seu filho da puta!

Mas ele não saiu. Continuou prendendo meus pulsos, e eu continuei a chamá-lo de filho da puta e tudo, durante mais de dez horas. Nem me lembro direito do que eu disse a ele. Disse que ele pensava que podia mandar brasa em quem bem entendesse. Disse que não fazia a menor diferença para ele se uma pequena deixava todas as damas na última fila ou não, e que ele só não se importava com isso porque era um imbecil total. Ele ficava furioso quando era chamado de imbecil. Todos os imbecis detestam ser chamados de imbecis.

- Cala a boca, Holden! - ele disse, com a carona imbecil toda vermelha. - Cala a boca!

- Você nem ao menos sabe se o nome dela é Jane ou Jean, seu boçalão!

- Cala essa boca, Holden, que merda! Estou avisando - ele disse. O cara estava alucinado. - Se você não calar a boca vou te dar uma porrada.

- Tira a droga desses joelhos de idiota de cima de mim.

- Se eu te soltar, você fica calado?

Nem respondi. Ele repetiu:

- Se eu te soltar, você vai ficar calado, Holden?

- Vou.

Ele se levantou e eu também. Meu peito estava doendo pra chuchu do peso dos joelhos dele.

- Você é um filho da puta dum imbecil - falei.

Aí o Stradlater virou fera de verdade. Ficou sacudindo o dedão na minha cara.

- Porra, Holden, tou te avisando. Pela última vez. Se você não fechar a matraca, vou te...

- Pra quê? - perguntei, quase gritando. - Esse é que é o problema com os imbecis como você. Nunca querem discutir coisa nenhuma. É assim que a gente descobre quem é boçal. Não discutem nunca um troço com inteligên...

Aí ele me mandou um murro tremendo e eu capotei. Não me lembro se cheguei a perder os sentidos, mas acho que não. Não é nada fácil nocautear uma pessoa, a não ser no cinema. Mas meu nariz pingava sangue pelo quarto todo. Quando abri os olhos, o Stradlater estava em pé, bem ao meu lado

- Por que diabo você não cala a boca quando eu mando? - perguntou.

Ele estava um bocado nervoso. Acho que estava apavorado, com medo que eu tivesse fraturado o crânio ou coisa parecida quando bati com a cabeça no chão. É pena que isso não tenha acontecido.

- A culpa é tua, toda tua - ele disse.

Puxa, estava preocupado pra burro.
Nem me dei ao trabalho de levantar do chão. Continuei espichado ali mesmo, chamando-o de imbecil e filho da puta. Minha raiva era tanta que eu estava quase berrando

- Quer saber de uma coisa, vai lavar a cara - ele falou. - Tá ouvindo?

Disse que ele, se quisesse, que fosse lavar sua cara de boçal. Era o tipo da resposta infantil, mas eu estava com uma raiva desgraçada. Disse ainda que, no caminho do banheiro, desse uma parada e mandasse uma brasinha na Sra. Schmidt. A Sra. Schmidt era a mulher do zelador. Andava aí pelos sessenta e cinco anos.
Fiquei sentado no chão até ouvir o Stradlater fechar a porta e seguir para o banheiro, no fim do corredor. Então me levantei. Não conseguia achar a droga do meu chapéu de caça em lugar nenhum. Procurei um pouco mais e acabei encontrando, debaixo da cama. Botei-o na cabeça e virei a aba para trás, até ficar como eu gostava. Aí fui até o espelho dar uma olhada na minha cara de imbecil. Garanto que ninguém nunca viu ferimento igual àquele. Tinha sangue espalhado pela boca e pelo queixo, e até no pijama e no roupão. Fiquei meio assustado e meio fascinado. Todo aquele sangue me dava um jeitão de machão. Na minha vida inteira só tinha entrado numas duas brigas, e apanhei nas duas vezes. Não sou muito de briga. Para dizer a verdade, eu sou é pacifista.
Tinha a impressão de que o Ackley tinha ouvido a bagunça toda e estava acordado. Por isso atravessei as cortinas do banheiro que ficavam entre o quarto dele e o nosso, só para ver o que ele estava fazendo. Eu quase nunca ia ao quarto dele, porque o sacana era tão relaxado em seus hábitos pessoais que o quarto dele sempre tinha um fedor meio esquisito.

Nenhum comentário:

Postar um comentário