domingo, 29 de abril de 2018

Gente Pobre - 26. deixe-se guiar pela longa experiência deste velho - Dostoiévski

Fiódor Dostoiévski


26.




5 de agosto



Minha querida Bárbara: 


Está bem, meu anjo, está bem! Crê então que não é caso para aflições o facto de eu não haver conseguido o dinheiro? Bem, nesse caso, também estou tranquilo e contente. Até sinto alegria por saber que não abandonará este pobre velho e continuará na mesma casa. É para lhe dizer a verdade, devo confessar-lhe que fiquei radiante com as bonitas palavras que me dirigia na sua carta e a apreciação que fez dos meus sentimentos. Não é por orgulho que lhe digo isto, mas sim por ver o afeto que me tem, uma vez que tanto se esforça por me tranquilizar o coração. Mas deixemos o meu coração, que não é agora cá chamado. Aconselha-me a pôr de parte o receio e tem toda a razão; nada de pusilanimidade. Mas, isto cá para nós: que botas hei de levar amanhã para a repartição, não me dirá? A questão é esta, fique sabendo; esta é que é a realidade. Basta esta ideia para dar cabo de um homem, aniquilá-lo pura e simplesmente. A falar a verdade, não é a minha pessoa que me dá cuidado e me faz inquietar. Cá por mim, não me ensaiava para ir através dessas ruas sem casaco e descalço; isso ser-me-ia indiferente, de nada me importaria, porque sou um homem simples e modesto. Mas que diriam os outros? Que diriam os meus inimigos e todas essas más línguas se me vissem sem casaco? Usa-se casaco por causa dos outros e por causa deles também é que se calçam botas. Quer dizer, meu amor, quer as botas servem simplesmente para a conservação da honra e da boa fama do homem. Quem andar com o calçado roto, perde as duas coisas. Acredite no que lhe digo, minha querida; deixe-se guiar pela longa experiência deste velho, siga os meus conselhos e não dê ouvidos a qualquer peralvilho!

Mas ainda lhe não contei pormenorizadamente o meu insucesso de hoje, meu amor. Talvez, nesta manhã, eu tenha sofrido tanto, passado por tantas torturas morais como num ano inteiro.

Eis como as coisas se passaram: saí de casa muito cedo para me avistar com o homem e chegar ao meu trabalho a tempo. Chovia e o chão estava coberto de lama. Embrulhado no capote, pus-me a caminho, pensando no meu íntimo: «Meu Deus, perdoai-me todos os meus pecados e permiti que os meus desejos se realizem! Ao passar diante da igreja de …, benzi-me e fiz ato de contrição; mas ao mesmo tempo pensei que não devia pedir estas coisas a Nosso Senhor. Assim, voltei a mergulhar nos meus pensamentos e continuei o meu caminho, sem sequer olhar para o lado. As ruas encontravam-se desertas e os transeuntes que de vez em quando se me deparavam pareciam preocupados e pensativos... Não é, porém, para admirar; com um tempo destes e a tal hora só anda fora de portas quem a isso é obrigado. Nisto, passou por mim um grupo de trabalhadores esfarrapados, que me deram um grande encontrão. Senti-me então atacado de timidez e, para dizer a verdade, nem queria lembrar-me do dinheiro. Contudo, lá fui à aventura, à sorte de Deus.

Precisamente ao atravessar a ponte Vrokresenski, soltou-se-me a sola de uma das botas e, depois disto, não compreendo como pude caminhar. Nesse momento encontrei-me com o amanuense lá da repartição, Ermolaiev, que parou e me seguiu com a vista, como se quisesse pedir-me uma gorjeta. «Ah, meu amigo — pensei —, querias uma gorjeta! Mas como dar-te com os bolsos vazios como os levo?»

Sentia-me terrivelmente cansado; parei um momento para repousar, e depois prosseguir no meu caminho.

Comecei então a olhar para toda a banda, a ver se descobria qualquer coisa que me distraísse, afastando-me o pensamento da realidade; mas foi em vão. E como se isto ainda não fosse pouco, cobri-me de tal modo de lama, que até senti vergonha. Finalmente, divisei ao longe uma casa amarela, de madeira, com uma espécie de mirante. «Deve ser aquela, a avaliar pela descrição que dela me fez Emelia Ivanovitch. A casa de Markov». (É assim que se chama o homem que empresta dinheiro a juros.) Mas naquele momento fervilharam-me no espírito tantos pensamentos que fiquei quase sem ideias. Dirigi-me então a um guarda perguntando-lhe de quem era aquela casa. O agente da autoridade, um bruto, com maus modos e como se estivesse zangado comigo, resmungou por entre dentes: «Essa casa pertence a um tal Markov.» Os guardas são todos uns grosseiros, o que, de resto, não me interessa absolutamente nada. Contudo, aquele causou-me uma impressão má e desagradável. Quer dizer: se vinha aborrecido, mais aborrecido fiquei. Sucede sempre assim. Quando qualquer coisa nos preocupa, surge outra contrariedade, como que relacionada com a primeira.

Passei diante da porta por três vezes; mas, à medida que me aproximava, mais a minha perturbação crescia. «Não — pensava —, nada consigo deste homem; nunca conseguirei dele coisa alguma, não há dúvida. Sou um estranho, completamente desconhecido para ele; o meu caso é bastante melindroso, e o meu aspecto não é lá muito recomendável.» «Bom — prosseguia comigo mesmo —; seja o que Deus quiser; ao menos, assim não sentirei remorsos de não ter tentado o remédio. Decerto não me hão de matar!»

Assim pensando, abri a porta com muito jeitinho. Mas surgiu-me outro contratempo: mal tinha transposto o limiar, atirou-se a mim um estúpido cão, a ladrar desesperadamente, com tal fúria que me atroava os ouvidos. São sempre incidentes fúteis como aquele, minha querida, que nos perturbam e nos infundem receio, aniquilando num instante a coragem que com tanto esforço conseguíramos ganhar. Entrei naquela casa mais morto do que vivo, mas já dentro, outra desgraça me sobreveio: devido à obscuridade, não vi um degrau ali existente e dei um passo em falso, indo inesperadamente tropeçar numa mulher que, de cócoras, estava a vazar uma medida de leite num canado. Foi tal o empurrão, que o leite entornou-se todo, e a tola da mulher desatou a apostrofar-me em altos gritos: «Não vê onde põe os pés, seu estúpido? Traz os olhos fechados? Que quer daqui?» e muitas outras amabilidades do género. Contei-lhe isto, meu amor, porque quando me encontro em circunstância semelhantes, sucede-me sempre qualquer contratempo como aquele; dir-se-ia que é este o meu destino. há de surgir-me sempre algum obstáculo, aparentemente sem importância, que se me atravessa no caminho.

Atraída pelos gritos da mulher, apareceu uma bruxa, uma finlandesa. Dirigi-me logo a ela e perguntei-lhe se era ali que morava o Sr. Markov .

— Não — respondeu-me ela com maus modos; mas depois olhou-me de alto a baixo, perguntando-me, por seu turno, em tom desabrido: — E que lhe quer?

Então expliquei-lhe tudo; falei-lhe de Emelia Ivanovitch e disse-lhe que... que... enfim, contei-lhe tudo, acabando por declarar-lhe: «Venho tratar de um negócio.»

Ao ouvir isto, a velha chamou a filha, uma moçoila que apareceu imediatamente, descalça.

— Vai chamar o teu pai — disse-lhe. — Anda com os criados... Entre, faça o favor.

Entrei. A sala era confortável, como em geral sucede com os compartimentos destas casas. Das paredes pendiam alguns quadros, na maior parte retratos de generais, e via-se ali um sofá, uma mesa redonda, vasos de reseda e balsamina... Entretanto, eu ia pensando: «Não seria melhor retirar-me enquanto é tempo?» Confesso-lhe, minha boa amiga, que pouco faltou para me pôr ao fresco. «Sim — continuei —, talvez fosse preferível vir amanhã, que a ocasião deve ser mais propícia. Esperarei até amanhã! Hoje entornei o leite a essa mulher e esses generais olham-me com maus olhos...» E com franqueza, já me dirigia para a porta quando Markov entrou.

É um tipo absolutamente vulgar, baixinho, com o cabelo branco e uns olhos um pouco travessos, envolto num roupão cheio de nódoas, apertado na cinta com um cordão.

Perguntou-me em que me poderia servir e eu comecei a dizer-lhe que ia da parte de Emelia Ivanovitch e que…

— Resumindo, preciso que me empreste quarenta rublos... — concluí. Mas não pude acrescentar mais nada, pois li nos seus olhos que errara o alvo.

— Não — tornou-me ele —; lamento muito, mas de momento não disponho de dinheiro. De resto, que garantia me dá?

Comecei então a explicar ao homenzinho que, de fato, não podia oferecer qualquer garantia, mas que Emelia Ivanovitch me tinha dito... Isto é, expliquei-lhe tudo minuciosamente enquanto ele me ouvia em silêncio.

— Já disse — retorquiu —, não tenho dinheiro. Quero lá eu saber de Emelia Ivanovitch!

«Claro — pensei —, isso já eu sabia, tinha de ser assim, bem o suspeitava.»

Digo-lhe com franqueza, querida: naquele momento teria sido melhor que a terra se abrisse e me tragasse, pois os meus pés estavam gelados e sentia calafrios nas costas. Eu olhava para Markov e ele para mim, parecendo dizer-me: «Põe-te a mexer, meu caro amigo; não sei porque esperas.» Noutra ocasião qualquer, sentiria uma vergonha mortal.

— E para que quer o senhor esse dinheiro? — perguntou-me muito a sério, querida Bárbara!

Ia para lhe responder qualquer coisa, só para não ficar calado, mas ele não se dignou escutar-me.

— Não — disse —, não tenho dinheiro. Se o tivesse — acrescentou — seria com muito gosto que...

Eu insisti com ele, observei-lhe que não precisava de uma quantia muito avultada, que estava resolvido a pagar-lhe escrupulosamente no prazo combinado, que poderia cobrar-me os juros que entendesse e que eu, repeti-lhe, me comprometia a pagar-lhe tudo. Era em si que eu pensava nesse momento, nos seus infortúnios e dificuldades, e lembrava-me do seu meio rublo.

— Não — repetiu-me. — Quero lá saber de juros! Ainda se me desse um fiador... De momento, como disse, não disponho de dinheiro, juro-lhe por Deus. Se não fosse isso, teria muito gosto em...

O grande bandido até por Deus me jurava! Em suma, meu amor, não sei como consegui sair dali, percorrer a rua Viborskaia e chegar à ponte de Voskresenski.

Eram cerca de dez horas quando, muito fatigado e cheio de frio, cheguei à repartição.

Quis limpar a lama que me salpicara o fato, mas o contínuo teimou em não me emprestar a escova, alegando que as escovas pertencem ao Estado e que eu as estragava.

Ora veja, minha querida, como agora me tratam! Para essa gente represento menos do que o capacho a que limpam os pés. E é isto que me comove, meu amor... Não é propriamente a falta de dinheiro, mas esses dissabores que me pregam e o ver-me obrigado a passar pelos homens; são todas essas mexeriquices, esses sorrisos e essas partidinhas... E se qualquer ocasião, por acaso, sua excelência repara na minha indumentária! Ai, minha boa amiga, os meus dias de felicidade lá se foram! Hoje li outra vez todas as suas cartas... Que tristeza eu sinto, minha querida! Adeus! Que o Senhor a conserve sob a sua proteção!

M. Dievuchkin



P. S. — Pretendia contar-lhe as minhas desgraças em tom de brincadeira; mas verifico que a não consegui — a brincadeira, quero dizer. — O meu desejo era distraí-la. Irei visitá-la logo que possa, a ver se consigo entretê-la.






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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.



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Fiódor Dostoiévski

GENTE POBRE

Título original: Bednye Lyudi (1846)

Tradução anônima 2014 © Centaur Editions

centaur.editions@gmail.com


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