quinta-feira, 27 de junho de 2019

O Segundo Sexo - 46. Fatos e Mitos: D. H. Lawrence ou o orgulho fálico (2)

Simone de Beauvoir



46. Fatos e Mitos






II




D. H. LAWRENCE OU O ORGULHO FÁLICO



continuando...



Dom recíproco, fidelidade recíproca: será realmente o reinado do reconhecimento mútuo? Longe disso. Lawrence acredita apaixonadamente na supremacia do homem. A própria expressão "casamento fálico", a equivalência que estabelece entre sexual e fálico provam-no suficientemente. Das duas correntes de sangue que misteriosamente se casam, a corrente fálica é privilegiada. "O falo serve de traço de união entre os dois rios: conjuga os dois ritmos diferentes em uma única corrente." "Desse modo, o homem é não somente um dos termos do casal, mas ainda sua relação; sua superação: "A ponte que conduz ao futuro é o falo". Ao culto da Deusa-Mãe, Lawrence pensa substituir um culto fálico; quando quer ressaltar a natureza sexual do cosmo, não é o ventre da mulher mas a virilidade do homem que evoca. Quase nunca pinta um homem perturbado pela mulher, mas cem vezes descreve a mulher secretamente transtornada pelo apelo vivo, sutil, insinuante do homem; suas heroínas são belas e sadias mas não capitosas, ao passo que seus heróis são faunos inquietantes. São os animais machos que encarnam o poderoso e perturbador mistério da vida; as mulheres sentem-lhe o sortilégio: uma comove-se com um raposo, outra apaixona-se por um garanhão, Gudrun desafia febrilmente um bando de bezerros; impressiona-a o vigor rebelde de um coelho. Nesse privilégio cósmico enxerta-se um privilégio social. Sem dúvida por ser a corrente fálica impetuosa, agressiva, por projetar-se no futuro — Lawrence não o explica muito claramente — ao homem é que cabe "marchar à frente carregando as flâmulas da vida" (Fantasia do Inconsciente); ele se retesa em direção a metas, encarna a transcendência; a mulher é absorvida por seus próprios sentimentos, é toda interioridade; está votada à imanência. Não somente o homem desempenha o papel na vida sexual, como ainda é por ele que essa vida é ultrapassada; acha-se arraigado ao mundo sexual mas evade-se; eia permanece encerrada nele. O pensamento e a ação têm suas raízes no falo; por não possuir falo, a mulher não tem direito nem a um nem a outra; pode desempenhar o papel de homem, e até brilhantemente, mas seu desempenho é falso. "A mulher é polarizada para baixo, para o centro da terra. Sua polaridade profunda é o fluxo dirigido para baixo, a atração lunar. O homem é, ao contrário, polarizado para cima, para o Sol e para a atividade diurna" (Fantasia do Inconsciente). Para a mulher, "a mais profunda consciência jaz em seu ventre e em seus rins... Se ela se volta para o alto ocorre um momento em que tudo desmorona". No terreno da ação o homem é que deve ser o iniciador, o positivo; a mulher é o positivo no terreno da emoção. Desse modo, Lawrence reencontra a concepção burguesa tradicional de Bonald, Auguste Comte, Clément Vautel. A mulher deve subordinar sua existência à do homem. "Ela deve acreditar em vós, na meta profunda para a qual tendeis." Então o homem lhe devotará ternura e gratidão infinitas. "Ah! Doçura de voltar para casa junto da mulher quando ela acredita em nós e aceita que nosso desígnio a supere. . . Sentimos uma gratidão insondável para com a mulher que nos ama..." Lawrence acrescenta que, para merecer esse devotamento, cumpre que o homem seja autenticamente habitado por um grande desígnio; se o projeto não passa de uma impostura, o casal soçobra em uma mistificação irrisória; mais vale ainda encerrar-se no ciclo feminino; amor e morte, como Ana Karênina e Vronsky, Carmen e D. José, do que mentir um a outro como Pierre e Natacha. Mas, sob essa reserva, o que propugna Lawrence é, à maneira de Proudhon, de Rousseau, o casamento monógamo em que a mulher encontra no marido a justificação da própria existência. Contra a mulher que aspira a inverter os papéis, Lawrence tem inflexões tão pejadas de ódio quanto Montherlant. Que ela renuncie a desempenhar o papel de Magna Mater, a pretender deter a verdade da vida; açambarcadora, devorante, ela mutila o macho, fá-lo recair na imanência e o desvia de seus fins. Lawrence está longe de amaldiçoar a maternidade, ao contrário; alegra-se em ser carne, aceita o nascimento, adora a mãe. As mães apresentam-se em sua obra como magníficos exemplos de verdadeira feminilidade; elas são pura renúncia, generosidade absoluta, todo seu calor vivo é dedicado ao filho; aceitam que êle se torne homem e se orgulham disso. Mas é preciso temer a amante egoísta que busca reconduzir o homem à infância. Ela quebra o impulso do macho. "A lua, planeta das mulheres, chama-nos para trás" (Fantasia do Inconsciente). Ela fala incessantemente de amor; mas amar, para ela, é possuir, é encher o vazio que ela sente em si; esse amor assemelha-se ao ódio; por isso é que Hermione, de Mulheres Amorosas, sofre de horrível deficiência, porque nunca soube dar-se e desejaria incorporar Bikrin a si. Malogra. Tenta matá-lo e o êxtase voluptuoso que experimenta ao batê-lo ' idêntico ao espasmo egoísta do prazer. Lawrence detesta as mulheres modernas, criaturas de celuloide e de borracha que reivi dicam uma consciência. Quando a mulher toma sexualmente consciência de si própria, ei-la que "caminha pela vida, agindo de uma maneira inteiramente cerebral e obedecendo às ordens de uma vontade mecânica" (Fantasia do Inconsciente). Ele proíbe-lhe ter uma sensualidade autônoma; ela é feita para entreear-se, não para possuir. Pela boca de Mellors, Lawrence proclama seu horror às lésbicas. Mas censura também a mulher que, diante do homem, assume uma atitude desinteressada ou agressiva. Paul sente-se magoado e irritado quando Myriam acaricia-lhe os flancos dizendo: "És belo". Gudrun, como Myriam, erra quando se encanta com a beleza do amante. Essa contemplação separa-os, tanto quanto a ironia das frias intelectuais que julgam o pênis irrisório e ridícula a ginástica masculina; a procura encarniçada do prazer não é menos censurável; há um gozo agudo, solitário que também separa, e a mulher não deve voltar-se para ele. Lawrence esboçou vários retratos dessas mulheres independentes, dominadoras, que falham em sua vocação feminina. Ursule e Gudrun, de Mulheres Amorosas, são dessa espécie. Inicialmente, Ursule é uma açambarcadora. "O homem teria que se entregar a ela até a borra..." Ela aprende a dominar a vontade. Mas Gudrun obstina-se; cerebral, artista, inveja ferozmente a independência e as possibilidades de ação dos homens; faz questão de conservar intata sua individualidade; quer viver para si mesma. Irônica, possessiva, ficará para sempre encerrada em sua subjetividade. A figura mais significativa, por ser a menos sofisticada, é a de Myriam de Amantes e Filhos. Gérard e em parte, responsável pelo malogro de Gudrun; diante de Paul, Myriam carrega sozinha o fardo de sua desgraça. Ela também gostaria de ser homem; odeia os homens; não se aceita em sua generalidade, quer "distinguir-se"; por isso a grande corrente da vida não a atravessa; pode assemelhar-se a uma feiticeira, a uma sacerdotisa, nunca a uma bacante; só se comove com as coisas quando as recria em sua alma, dando-lhes um yalor religioso, e esse próprio fervor separa-a da vida; ela é poética, mística, inadaptada. "Seu esforço exagerado fechava-se sobre si mesmo... ela não era inábil e no entanto nunca fazia o movimento que convinha." Ela procura alegrias muito interiores a realidade amedronta-a; a sexualidade amedronta-a; quando se deita com Paul, seu coração conserva-se arredio numa espécie de terror tem sempre consciência, nunca vida: não é uma companheira; não consente em se fundir com o amante, quer absorvê-lo nela. Ele se irrita com essa vontade; é tomado de violenta cólera quando a vê acariciar flores: dir-se-ia que quer arrancar-lhes o coração. Insulta-a: "Você é uma mendiga de amor; não tem necessidade de amar mas sim de ser amada. Quer encher-te de amor porque lhe falta alguma coisa, não sei o quê". A sexualidade não é feita para encher um vazio; deve ser a expressão de um ser acabado. O que as mulheres chamam amor é sua avidez diante de força viril de que gostaria de apossar-se. A mãe de Paul pensa lucidamente acerca de Myriam: "Ela quer tudo, quer extraí-lo de si mesmo e devorá-lo". A jovem alegra-se quando o amigo está doente porque poderá tratar dele: pretende servi-lo, mas é uma maneira de lhe impor sua vontade. Porque fica separada dele, excita em Paul "um ardor semelhante à febre, como faz o ópio", mas é incapaz de dar-lhe alegria e paz; do fundo de seu amor, no segredo de si mesma, "detestava Paul porque ele a amava e dominava". Por isso mesmo Paul afasta-se dela. Busca seu equilíbrio junto de Clara; bela, viva, animal, esta entrega-se sem reservas e os amantes atingem momentos de êxtase que os superam a ambos. Mas Clara não compreende essa revelação. Acredita que deve sua alegria ao próprio Paul, à sua singularidade, e deseja apropriar-se dele: mas não consegue guardá-lo porque também o quer todo para ela. A partir do momento em que o amor se individualiza, transforma-se em egoísmo ávido e o milagre do erotismo dissipa-se. 

É preciso que a mulher renuncie ao amor pessoal: nem Mellors nem Don Cipriano consentem em dizer palavras de amor a suas amantes. Teresa, que é mulher exemplar, indigna-se quando Kate lhe pergunta se ama Dom Ramon, em A Serpente Emplumada. Êle é minha vida", responde. O dom em que consentiu e coisa muito maior do que o amor. A mulher como o homem deve abdicar todo orgulho e toda vontade; se, para o homem, encarna a vida, encarna-o também para si; Lady Chatterley só encontra paz e alegria porque reconhece essa verdade: "renunciaria a seu duro e brilhante poder feminino que a cansava e detestava, mergulharia no novo banho de vida, na profundidade de suas entranhas que cantavam a canção sem voz da adoração"; não ela alcança a embriaguez das bacantes; obedecendo cegamente ao amante, não se procurando nos braços dele, com ele forma um casal harmônico, afinado com a chuva, as árvores, as flores da primavera. De igual modo, Ursule, entre os braços de Bikrin, renuncia à própria individualidade e eles atingem juntos um "equilíbrio estelar". Mas é principalmente A Serpente Emplumada que reflete em sua integridade o ideal de Lawrence. Porque Don Cipriano é um desses homens que "vão à frente carregando as flâmulas da vida"; tem uma missão a que se entrega completamente a tal ponto que a virilidade nele se supera e se exalta até a divindade: faz-se sagrar deus e não é mistificação, é que todo homem plenamente homem é um deus; merece, portanto, a dedicação absoluta de uma mulher. Imbuída de preconceitos ocidentais, Kate recusa, a princípio, essa dependência, apega-se à sua personalidade e à sua existência limitada; mas, pouco a pouco, deixa-se penetrar pela grande corrente da vida, dá a Cipriano seu corpo e sua alma. Não é uma rendição de escrava: antes de resolver ficar com ele, exige que ele reconheça a necessidade que tem dela; ele a reconhece, porquanto efetivamente a mulher é necessária ao homem; ela consente então em não ser nunca mais outra coisa senão sua companheira: adota os objetivos, os valores, o universo dele. Essa submissão exprime-se no próprio erotismo; Lawrente não quer que a mulher se crispe na busca do prazer, separada do homem pelo espasmo que a sacode; ele recusa-lhe deliberadamente o orgasmo; Don Cipriano afasta-se de Kate quando sente nela a aproximação desse gozo nervoso; ela renuncia até a essa autonomia sexual. "Sua ardente vontade de mulher e seu desejo aplacavam-se nela e dissipavam-se, deixando-a toda doçura e submissão como as nascentes de água quente que saem da terra sem ruído e são, entretanto, tão ativas e poderosas em seu poder secreto."

Compreende-se por que os romances de Lawrence são antes de tudo "educação de mulheres". É infinitamente mais difícil para a mulher do que para o homem submeter-se à ordem cósmica, porque ele se submete de maneira autônoma, ao passo que ela precisa da mediação do homem. É quando o Outro assume a figura de uma consciência e de uma vontade alheias que há realmente rendição; uma submissão autônoma, ao contrário, assemelha-se estranhamente a uma decisão soberana. Os heróis de Lawrence ou são condenados desde o início ou desde o início detêm o segredo da sabedoria (1); sua submissão ao cosmo consumou-se desde muito e eles tiram dela tamanha segurança interior que parecem tão arrogantes como um individualista orgulhoso; um deus fala pelas suas bocas: o próprio Lawrence. Ao passo que a mulher deve inclinar-se diante da divindade. Que o homem seja um falo e não um cérebro, o indivíduo que participa da virilidade conserva seus privilégios; a mulher não é o mal, ela é até boa, mas subordinada. É ainda o ideal da "verdadeira mulher" que Lawrence nos propõe, isto é, da mulher que aceita, sem reticência, definir-se como o Outro.

(1) Com exceção de Paul, de Amantes e Filhos, o mais vivo de todos. Mas é o único romance que nos mostra um aprendizado masculino. 




continua...
266

_________________



O SEGUNDO SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR

Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.

Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.

Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.


4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES



______________________




Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.

No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.



________________________


Leia também:





O Segundo Sexo - 35. Fatos e Mitos: A hesitação do macho entre o medo e o desejo

O Segundo Sexo - 36. Fatos e Mitos: "Está cheio de teia de aranha lá dentro..."

O Segundo Sexo - 37. Fatos e Mitos: a masturbação é considerada um perigo e um pecado

O Segundo Sexo - 38. Fatos e Mitos: Mulher! És a porta do diabo

O Segundo Sexo - 39. Fatos e Mitos: A Mãe

O Segundo Sexo - 40. Fatos e Mitos: A Alma e a Ideia

O Segundo Sexo - 41. Fatos e Mitos: ... a expressão "ter uma mulher"...

O Segundo Sexo - 42. Fatos e Mitos: A mãe, a noiva fiel, a esposa paciente

O Segundo Sexo - 43. Fatos e Mitos: Montherlant ou o Pão do Nojo

O Segundo Sexo - 44. Fatos e Mitos: Montherlant ou o Pão do Nojo (2)

O Segundo Sexo - 44. Fatos e Mitos: Montherlant ou o Pão do Nojo (3)

O Segundo Sexo - 45. Fatos e Mitos: D. H. Lawrence ou o orgulho fálico (1)

O Segundo Sexo - 47. Fatos e Mitos: Claudel e a  serva do Senhor (1)

Nenhum comentário:

Postar um comentário