sexta-feira, 16 de agosto de 2019

O Segundo Sexo - 48. Fatos e Mitos: Claudel e a serva do Senhor (2)

Simone de Beauvoir



48. Fatos e Mitos






III




CLAUDEL E A SERVA DO SENHOR 




... continuando



Fidelidade, lealdade são as maiores virtudes humanas da vassala. Doce, humilde, resignada como mulher, é ela, em nome de sua raça, de sua linhagem, orgulhosa e indomável; assim são a altiva Sygne de Coûfontaine e a princesa de Tête d'Or que carrega sobre os ombros o cadáver do pai assassinado, que aceita a miséria de uma vida solitária e selvagem, as dores de uma crucificação e que assiste Tête d'Or antes de morrer ao lado dele. Conciliadora, mediadora, assim a mulher se nos apresenta amiúde: ela é Ester, dócil às ordens de Mardoqueu, Judite obedecendo aos sacerdotes; sua fraqueza, sua pusilanimidade, seu pudor, ela é capaz de vencer por lealdade para com a Causa que é sua porque é dos senhores; ela retira de seu devotamento uma força que faz dela o mais precioso dos instrumentos. 

No plano humano, ela se apresenta, portanto, como extraindo sua grandeza de sua própria subordinação. Mas, aos olhos de Deus, ela é uma pessoa perfeitamente autônoma. O fato de que, para o homem, a existência se supera enquanto para a mulher ela se mantém, não estabelece diferença entre eles senão em relação à terra; de qualquer maneira não é na terra que a transcendência se realiza; é em Deus. E a mulher tem com ele uma ligação tão direta, mais íntima mesmo e mais secreta do que seu companheiro. É por uma voz de homem — e de um padre — que Deus fala a Sygne; mas Violaine ouve sua voz na solidão de seu coração, e Prouhèze só se entende com o Anjo da Guarda. As personagens mais sublimes de Claudel são mulheres: Sygne, Violaine, Prouhèze. E isso em parte porque, aos olhos dele, a santidade está na renúncia. E a mulher acha-se menos empenhada nos projetos humanos, ela tem menos vontade pessoal: feita para entregar-se, não para possuir, encontra-se mais perto do perfeito devotamento. Por ela é que se fará a superação das alegrias terrestres, que são lícitas e boas mas cujo sacrifício é melhor ainda. Sygne realiza-o por uma razão definida: salvar o papa. Prouhèze resigna-se primeiramente porque ama Rodrigo com amor proibido:

"Desejarias então que pusesse entre teus braços uma adúltera?... Não teria sido senão uma mulher morrendo sobre teu coração e não essa estrela eterna de que tens sede" (Le Soulier de Satin). 

Mas quando esse amor poderia tornar-se legítimo, ela nada faz para realizá-lo neste mundo, porque o Anjo lhe murmurou:

"Prouhèze, minha irmã, esse filho de Deus na luz que eu saúdo, 

"Essa Prouhèze que os anjos vêem, é essa, sem o saber, que ele olha, é a que fizeste a fim de lhe dar."

Ela é humana, é mulher, não se resigna sem revolta: 

"Ele não conhecerá esse gosto que tenho!" 

Mas ela sabe que seu verdadeiro casamento com Rodrigo só se consuma com sua recusa:

"Quando não houver mais nenhum meio de escapar, quando ele estiver preso a mim para sempre neste impossível himeneu, quando não houver mais meio de se arrancar dessa torquês de minha carne poderosa e desse vazio impiedoso, quando eu tiver provado seu nada com o meu, quando não houver mais segredo em seu nada que o meu não seja capaz de verificar. 

"Então é que o darei a Deus, descoberto e estraçalhado, para que ele o encha num fragor de trovão, então é que terei um esposo e apertarei um deus em meus braços." 

A resolução de Violaine é mais misteriosa e mais gratuita ainda, porque escolhe a lepra e a cegueira quando um laço legítimo teria podido uni-la ao homem que amava e que a amava. 

"Jacques, talvez.

"Nós nos amávamos demais para que fosse justo que pertencêssemos um ao outro, para que fosse bom ser um do outro" (La Jeune Filie Violaine).

Mas, se as mulheres são assim singularmente votadas ao heroísmo da santidade, é principalmente porque Claudel as encara ainda por uma perspectiva masculina. Sem dúvida, cada um dos sexos encarna o Outro aos olhos do sexo complementar; mas a seus olhos de homem é principalmente a mulher que se apresenta amiúde como o outro absoluto. Há uma superação mística de que "sabemos que somos por nós mesmos incapazes e daí esse poder da mulher sobre nós, semelhante ao da Graça (Le Soulier de Satin). O nós representa aqui somente os homens e não a espécie humana, e, ante sua imperfeição, a mulher é o apelo do infinito. Em certo sentido, há nisso um novo princípio de subordinação; pela comunhão dos santos cada indivíduo é instrumento para todos os outros; mas a mulher é mais precisamente instrumento de salvação para o homem, sem que a recíproca apareça. Le Soulier de Satin é a epopeia da salvação de Rodrigo. O drama inicia-se com a prece que seu irmão dirige a Deus em seu favor; termina com a morte de Rodrigo que Prouhèze conduziu à santidade. Mas, em outro sentido, a mulher conquista, assim, a mais alta autonomia, porque sua missão se interioriza nela e, salvando o homem ou lhe servindo de exemplo, ela chega na solidão à sua própria salvação. Pierre de Craon profetiza o destino dele a Violaine, e recolhe em seu coração os frutos maravilhosos do seu sacrifício: êle a exaltará perante os homens nas pedras das catedrais. Mas é Violaine que o realiza sem auxílio. Há em Claudel uma mística da mulher que se aparenta à de Dante diante de Beatriz, à dos gnósticos e até à da tradição saint-simoniana chamando a mulher regeneradora. Mas sendo homens e mulheres igualmente criaturas de Deus, êle também atribui a ela um destino autônomo. De modo que em Claudel é fazendo-se outro — sou a serva do Senhor — que a mulher se realiza como sujeito; e é em seu para-si que ela se apresenta como o Outro.

Há uma página das Aventures de Sophie que resume mais ou menos toda a concepção claudeliana. Deus, lê-se, confiou à mulher "esse rosto que, por deformado e longínquo que seja, é uma exata imagem da perfeição. Tornou-a desejável. Colocou juntos o fim e a origem. Fê-la depositária de seus desígnios e capaz de devolver ao homem o sono criador em que ela mesma foi concedida. Ela é o suporte do destino, é o dom, é a possibilidade da posse. . . É a presilha desse laço afetuoso que une a cada instante o criador a sua obra. Ela O compreende. Ela é a alma que vê e que faz. Ela partilha com ele de certo modo a paciência e o poder da criação".

Em certo sentido, parece que a mulher não poderia ser mais exaltada. Mas, no fundo, Claudel não faz senão exprimir poeticamente a tradição católica ligeiramente modernizada. Foi dito que a vocação terrestre da mulher não prejudica em nada sua autonomia sobrenatural; mas, inversamente, reconhecendo-lhe esta, o católico acredita-se autorizado a manter as prerrogativas masculinas neste mundo. Venerando a mulher em Deus, trata-a neste mundo como uma serva: mais ainda, quanto mais se exigir dela uma submissão completa, mais seguramente será ela dirigida para o caminho da salvação. Devotar-se aos filhos, ao marido, ao lar, à propriedade, à Pátria, à Igreja, é sua função, a função que a burguesia sempre lhe indicou; o homem dá sua atividade, a mulher sua pessoa; santificar essa hierarquia em nome da vontade divina, não é modificá-la em nada; ao contrário, é pretender fixá-la no eterno.




continua...
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O SEGUNDO SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR

Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.

Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.

Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.


4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES



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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.

No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.



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Leia também:




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O Segundo Sexo - 39. Fatos e Mitos: A Mãe

O Segundo Sexo - 40. Fatos e Mitos: A Alma e a Ideia

O Segundo Sexo - 41. Fatos e Mitos: ... a expressão "ter uma mulher"...

O Segundo Sexo - 42. Fatos e Mitos: A mãe, a noiva fiel, a esposa paciente

O Segundo Sexo - 43. Fatos e Mitos: Montherlant ou o Pão do Nojo

O Segundo Sexo - 44. Fatos e Mitos: Montherlant ou o Pão do Nojo (2)

O Segundo Sexo - 44. Fatos e Mitos: Montherlant ou o Pão do Nojo (3)

O Segundo Sexo - 45. Fatos e Mitos: D. H. Lawrence ou o orgulho fálico (1)

O Segundo Sexo - 46. Fatos e Mitos: D. H. Lawrence ou o orgulho fálico (2)

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