sábado, 8 de junho de 2019

O Segundo Sexo - 44. Fatos e Mitos: Montherlant ou o Pão do Nojo (3)

Simone de Beauvoir



44. Fatos e Mitos




continuando...


I




MONTHERLANT OU O PÃO DO NOJO




Esse encontro nada tem de casual. Sabe-se muito bem que Montherlant admira a ideologia nazista. Encanta-o ver a cruz gamada, que é a Roda solar, triunfar em uma das festas do Sol. "A vitória da Roda solar não é somente vitória do Sol, vitória do paganismo. É vitória do princípio solar de que tudo gira... Vejo triunfar neste dia o princípio de que estou imbuído, que cantei, que com inteira consciência sinto governar minha vida", escreve em Le Solstice de ]uin. Sabe-se também com que adequado sentido de grandeza, durante a ocupação, ele propôs como exemplo, aos franceses, esses alemães "que respiram o grande estilo da força". O mesmo gosto pânico da facilidade que o levava a fugir diante dos iguais põe-no de joelhos ante os vencedores: crê que, em se ajoelhando, se identifica a eles; ei-lo vencedor, o que sempre desejou, contra um touro, contra lagartas ou contra mulheres, contra a própria vida e a liberdade. É justo dizer que já antes da vitória ele incensava os "sedutores solitários" (L'Êquinoxe de Septembre). Como eles, sempre fora niilista, sempre detestara os homens. "Não vale sequer a pena conduzir os indivíduos (e não é necessário que a humanidade nos tenha feito alguma coisa para detestá-la a esse ponto)", escreve em Aux Fontaines du Désir; como eles, acreditava que certos seres: raça, nação ou ele próprio, Montherlant, detêm um privilégio absoluto que lhes confere todos os direitos sobre outrem. Toda sua moral justifica e quer a guerra e as perseguições. Para julgar sua atitude com as mulheres, convém examinar essa ética mais de perto. Porque fora preciso afinal saber em nome de quê elas são condenadas.

A mitologia nazista tinha uma infra-estrutura histórica: o niilismo exprimia o desespero alemão; o culto do herói servia fins positivos pelos quais milhões de soldados morreram. A atitude de Montherlant não tem nenhuma contrapartida positiva e não exprime senão sua própria escolha existencial. Em verdade, esse herói escolheu o medo. Há, em toda consciência, uma pretensão à soberania: mas só pode afirmar-se arriscando-se. Nunca nenhuma superioridade é dada, porque reduzido à sua subjetividade o homem não é nada; é entre os atos e as obras que se podem estabelecer hierarquias. Cumpre conquistar o mérito, sem cessar; Montherlant, ele próprio, o sabe. "Só se tem direito sobre o que se está disposto a arriscar." Mas ele jamais quis arriscar-se no meio de seus semelhantes. E é porque não ousa enfrentá-la que quer abolir a humanidade. "Odioso obstáculo o dos seres", diz o rei de La Reine Morte". Sim, porque desmentem a "fantasia" complacente que o vaidoso cria em torno de si. É preciso negá-los. É notável que nenhuma das obras de Montherlant descreva-nos um conflito de homem com homem; a coexistência é que é o grande drama vivo: êle o evita. Seu herói ergue-se sempre apenas perante animais, crianças, mulheres, paisagens; luta contra seus próprios desejos (como a rainha de Pasiphaé) ou contra suas próprias exigências (como o Màitre de Santiago) mas nunca há alguém a seu lado. O próprio Alban, em Le Songe, não tem companheiro: desdenha Prinet vivo e só se exalta sobre seu cadáver. A obra como a vida de Montherlant só admite uma consciência.

Em consequência, todo sentimento desaparece desse universo; não pode haver relação intersubjetiva se há um sujeito. O amor é irrisório; mas não é em nome da amizade que é desprezível, pois a "amizade carece de vísceras" (Aux Fontaines du Désir). E toda solidariedade humana é recusada com altivez. O herói não foi engendrado, não é limitado pelo espaço e pelo tempo: "Não vejo nenhum motivo razoável para me interessar pelas coisas exteriores que me são contemporâneas, como não vejo tampouco para me interessar por qualquer ano do passado" (La Possession de soi-même). Nada do que acontece a outrem tem importância para ele: "Em verdade, os acontecimentos nunca me importaram. Só os amava nos raios de luz que produziam em mim ao me atravessarem... Que sejam pois o que querem ser" {Le Solstice de Juin). A ação é impossível: "Ter tido o ardor, a energia, a audácia e não ter podido pô-los à disposição de quem quer que seja por falta de fé em alguma coisa de humano!" (Aux Vontaines du Désir). Isto significa que toda transcendência é proibida. Montherlant reconhece-o. O amor e a amizade são tolices, o desprezo impede a ação; ele não crê na arte pela arte, e não crê em Deus. Resta apenas a imanência do prazer: "Minha única ambição foi usar meus sentidos melhor do que os outros", escreve em 1925 em Aux Foniaines du Désir. E ainda: "Em suma, que quero? A posse dos seres que me agradam na paz e na poesia". E em 1941, em Le Solstice de ]uin: "Mas eu que acuso, que fiz desses vinte anos? Foram um sonho cheio de meu prazer. Vivi de cá para lá embriagando-me do que amo: de lábios colados com a vida!" Seja. Mas não é precisamente porque chafurda na imanência que a mulher é espezinhada? Que fins mais elevados, que grandes desígnios opõe Montherlant ao amor possessivo da mãe, da amante? Ele também busca a "posse"; e quanto aos "lábios colados com a vida" muitas mulheres poderiam dar-lhe troco. É verdade que êle aprecia singularmente os prazeres insólitos: os que se podem tirar dos animais, dos rapazes, das meninas impúberes; fica indignado porque uma amante apaixonada se recusa a pôr em em sua cama a filha de doze anos: mesquinharia muito pouco solar. Não sabe ele que a sensualidade das mulheres não é menos atormentada que a dos homens? Se se trata de hierarquizar os sexos segundo esse critério, talvez elas ganhem. Para dizer a verdade, as incoerências de Montherlant são aqui monstruosas. Em nome da "alternância" ele declara que, exatamente porque nada tem valor, tudo igualmente tem valor; aceita tudo, quer tudo abraçar e agrada-lhe que sua largueza de espírito assuste as mães de família; era ele, entretanto, que durante a ocupação reclamava uma "inquisição" (1), que censurasse filmes e jornais; as coxas das girls norte-americanas dão-lhe nojo, o sexo luzidio de um touro exalta-o; gosto não se discute. Cada qual recria a seu modo a "fantasia"; em nome de que valores esse grande devasso cospe com repugnância sobre as orgias alheias? Porque não são suas? Mas toda moral consiste então em ser Montherlant?


(1) "Reclamamos um organismo que tenha poder discricionário para deter tudo o que julgue ser nocivo à qualidade humana francesa. Uma espécie de inquisição em nome da qualidade humana francesa". (Le S,olstice de Juin). 


Ele responderia evidentemente que gozar não é tudo: depende do jeito. É preciso que o prazer seja o reverso de uma renúncia, que o voluptuoso se sinta também com o estofo de um herói e de um santo. Mas muitas mulheres são peritas em conciliar seus prazeres com a alta opinião que têm de si mesmas. Por que deveremos acreditar que os sonhos narcisistas de Montherlant valem mais do que os delas?

Pois, em verdade, é de sonhos que se trata. Como Montherlant recusa todo conteúdo objetivo às palavras com que joga, grandeza, santidade, heroísmo não passam de brinquedos. Montherlant tem medo de arriscar sua superioridade perante os homens. Para se embriagar com esse vinho exaltante, refugiou-se nas nuvens: o Único é certamente soberano. Ele se encerra em seu gabinete de miragens: os espelhos devolvem-lhe a imagem de todos os lados e ele acredita que pode, sozinho, povoar a terra. Porém não passa de um recluso prisioneiro de si mesmo. Acredita-se livre, mas aliena a liberdade em proveito de seu ego; molda a estátua de Montherlant segundo normas tomadas de empréstimo às imagens de Epinal. Alban, afastando Dominique porque deparou no espelho com uma cara de papalvo, ilustra essa escravidão. Só se é tolo aos olhos de outrem. O orgulhoso Alban submete o coração a essa consciência coletiva que despreza. A liberdade de Montherlant é uma atitude, não uma realidade. Sendo-lhe impossível a ação, por falta de objetivos, consola-se com gestos: faz mímica. As mulheres são para ele parceiros cômodos; dão-lhe a réplica, ele açambarca o papel principal, cinge-se de louros e envolve-se em púrpura, mas tudo se passa em palco privado; na praça pública, sob um céu de verdade, o comediante não enxerga mais direito, não fica em pé, titubeia, cai. Em um assomo de lucidez, Costals, de Les Jeunes Filles, exclama: "No fundo, que palhaçada essas "vitórias" contra as mulheres!" Sim. Os valores, as façanhas que Montherlant nos propõe são uma triste farsa. Os grandes acontecimentos que o embriagam são também simples gestos, nunca empreendimentos; comove-se com o suicídio de Peregrinus, a ousadia de Pasifaé, a elegância do japonês que abriga o adversário sob o guarda-chuva antes de trespassá-lo em duelo. Mas declara que "a pessoa do adversário e as ideias que se admite que este representa não têm tanta importância" (Le Solstice de Juin). Essa declaração ecoa de maneira singular em 1941. Toda guerra é bela, diz ele ainda, qualquer que seja o fim; a força é sempre admirável, sirva a quem servir. "O combate sem a fé, é a fórmula a que chegamos forçosamente se queremos conservar a única ideia aceitável do homem: essa em que ele é, a um tempo, o herói e o sábio." Mas é curioso que a nobre indiferença de Montherlant por todas as causas o tenha inclinado, não para a resistência, e sim para a Revolução nacional; que sua soberana liberdade tenha escolhido a submissão, e que o segredo de sua sabedoria heroica, ele o fosse buscar não nos maquis, mas entre os vencedores. Isso não é tampouco um acidente. E a tais mistificações que atinge o pseudo-sublime de La Reine Morte e do Maítre de Santiago. Nesses dramas, tanto mais significativos quanto pretensiosos, vêem-se dois machos imperiosos que sacrificam a seu orgulho vazio mulheres culpadas tão-somente de serem seres humanos; elas aspiram ao amor e à felicidade terrestre. Para puni-las tira-se a vida de uma e a alma de outra. Mais uma vez perguntamos: em nome de quê? O autor responde com altivez: de nada. Não quis que o rei tivesse motivos imperiosos para matar Inês: o assassínio não passaria de um crime político trivial. "Por que a mato? Há sem dúvida uma razão mas não a distingo", afirma ele. A razão está em que é necessário que o princípio solar triunfe sobre a trivialidade terrestre; mas esse princípio, já o vimos, não ilumina nenhum fim: exige a destruição, nada mais. Quanto a Álvaro, Montherlant diz-nos, em um prefácio, que se interessa por certos homens desse tempo "por sua fé decidida, seu desprezo pela realidade exterior, seu gosto pela ruína, seu furor do nada". A esse furor é que o senhor de Santiago sacrifica a filha. Enfeitá-lo-ão com a linda e brilhante palavra misticismo. Não é medíocre preferir a felicidade à mística? Em verdade, os sacrifícios e as renúncias só têm sentido dentro da perspectiva de um fim, um fim humano; e os fins que ultrapassam o amor singular, a felicidade pessoal, só podem existir num mundo que reconhece o valor do amor e da felicidade; a "moral das costureirinhas" é mais autêntica do que as fantasias do vazio, porque tem suas raízes na vida e na realidade. E é daí que podem nascer as aspirações mais vastas. Imaginamos facilmente Inês de Castro em Buchenwald e o rei a cortejar a embaixada da Alemanha por razão de Estado. Muitas costureirinhas mereceram durante a ocupação um respeito que não temos por Montherlant. As palavras vazias com que se empanturra são perigosas para seu próprio vazio: a mística sobre-humana autoriza todas as devastações temporais. O fato é que nos dramas de que falamos, ele se afirma mediante dois assassínios: um físico e outro moral. Álvaro não tem muito que caminhar para se tornar arisco, solitário, menosprezado, um grande inquisidor; nem o rei, incompreendido, renegado, um Himmler. Mata-se às mulheres, aos judeus, aos homens efeminados e aos cristãos judaizantes, a tudo o que se tem interesse ou prazer em matar em nome de grandes idéias. É somente por negações que se podem afirmar as místicas negativas. A verdadeira superação é uma marcha positiva para o futuro, o futuro dos homens. O falso herói, para se persuadir de que foi muito longe, de que paira muito alto, olha sempre para trás, para os pés; despreza, acusa, oprime, persegue, tortura, extermina. E pelo mal que faz ao próximo que se estima superior a este. Tais são os cumes que Montherlant nos aponta de dedo em riste quando interrompe seu "lábios colados com a vida".

"Como o burro das noras árabes, giro, giro, cego e passando sempre de novo sobre minhas pegadas. Só que não faço jorrar água fresca." Há pouco que acrescentar a essa confissão que Montherlant assinava em 1927. A água fresca nunca jorrou. Talvez Montherlant devesse ter acendido a fogueira de Peregrinus: era a solução mais lógica. Preferiu refugiar-se em seu próprio culto. Ao invés de entregar-se a esse mundo que não sabia fertilizar, contentou-se em mirar-se nele, e ordenou sua vida em atenção a essa miragem somente visível a seus olhos. "Os príncipes sentem-se à vontade em quaisquer circunstâncias, mesmo na derrota", escreve em Le Solstice de ]uin; e como se compraz na derrota, acredita-se rei. Aprendeu com Nietzsche que "a mulher é o passatempo do "herói" e crê que basta divertir-se com mulheres para se consagrar herói. O resto segue a mesma linha. Como diz Costals: "No fundo, que palhaçada!"


continua...
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O SEGUNDO SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR

Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.

Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.

Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.


4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES



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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.

No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.



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Leia também:





O Segundo Sexo - 35. Fatos e Mitos: A hesitação do macho entre o medo e o desejo

O Segundo Sexo - 36. Fatos e Mitos: "Está cheio de teia de aranha lá dentro..."

O Segundo Sexo - 37. Fatos e Mitos: a masturbação é considerada um perigo e um pecado

O Segundo Sexo - 38. Fatos e Mitos: Mulher! És a porta do diabo

O Segundo Sexo - 39. Fatos e Mitos: A Mãe

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O Segundo Sexo - 41. Fatos e Mitos: ... a expressão "ter uma mulher"...

O Segundo Sexo - 42. Fatos e Mitos: A mãe, a noiva fiel, a esposa paciente

O Segundo Sexo - 43. Fatos e Mitos: Montherlant ou o Pão do Nojo

O Segundo Sexo - 44. Fatos e Mitos: Montherlant ou o Pão do Nojo (2)

O Segundo Sexo - 45. Fatos e Mitos: D. H. Lawrence ou o orgulho fálico (1)


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