sábado, 15 de junho de 2019

O Segundo Sexo - 45. Fatos e Mitos: D. H. Lawrence ou o orgulho fálico (1)

Simone de Beauvoir



45. Fatos e Mitos






II




D. H. LAWRENCE OU O ORGULHO FÁLICO




Lawrence situa-se nos antípodas de um Montherlant. Não se trata para ele de definir as relações singulares da mulher com o homem, mas sim de recolocá-los ambos dentro da verdade da Vida. Essa verdade não é nem representação nem vontade: ela envolve a animalidade em que o ser humano mergulha suas raízes. Lawrence recusa com paixão a antítese sexo-cérebro; há nele um otimismo cósmico que se opõe radicalmente ao pessimismo de Schopenhauer; o querer-viver que se exprime no falo é alegria: e é nele que pensamento e ação devem ter sua fonte, sob pena de serem conceito vazio, mecanismo estéril. O simples ciclo sexual é insuficiente porque recai na imanência: é sinônimo de morte; porém, vale mais ainda essa realidade mutilada: sexo e morte, do que uma existência desligada do humo carnal. O homem não tem somente necessidade, como Anteu, de retomar por momentos contato com a terra; sua vida de homem, deve ser inteiramente expressão de sua virilidade que põe e exige imediatamente a mulher; esta não é, portanto, nem divertimento nem presa, não é um objeto em face de um sujeito e sim um pólo necessário à existência do pólo de sinal contrário. Os homens que menoscabaram essa verdade, um Napoleão, por exemplo, falharam em seu destino de homem: são uns frustrados. Não é afirmando sua singularidade, é realizando sua generalidade da maneira mais intensa possível que o indivíduo pode salvar-se: macho ou fêmea, nunca deve procurar nas relações eróticas o triunfo de seu orgulho nem a exaltação de seu eu; servir-se do sexo como instrumento de sua vontade é um erro irreparável; é preciso destruir as barreiras do ego, ultrapassar os próprios limites da consciência, renunciar a toda soberania pessoal. Nada é mais belo do que essa estatueta representando uma mulher parindo, em Mulheres Amorosas: "Uma figura terrivelmente vazia, pontuda, tornada abstrata até a insignificância sob o peso da sensação experimentada". Esse êxtase não é nem um sacrifício nem um abandono; não se trata para nenhum dos sexos de ser tragado pelo outro, nem o homem nem a mulher devem apresentar-se como o fragmento partido de um casal; o sexo não é ferimento; cada um dos indivíduos é um ser completo, perfeitamente polarizado; quando um se afirma em sua virilidade e o outro em sua feminilidade, "um e outro realizam a perfeição do circuito polarizado dos sexos"; o ato sexual é, sem anexação, sem rendição de nenhum dos parceiros, a realização maravilhosa de um pelo outro. Quando Ursule e Bikrin, de Mulheres Amorosas, se encontram enfim, "eles se dão reciprocamente esse equilíbrio estelar, o único que se pode chamar liberdade. Ela era para ele o que ele era para ela, a magnificência imemorial da outra realidade, mística e palpável". Ascendendo um ao outro no arranco generoso da paixão, os dois amantes ascendem juntos ao Outro, ao Todo. Assim ocorre cora Paul e Clara, de Filhos e Amantes, no momento de seu amor: ela é para ele "uma vida forte, estranha, selvagem que se misturava à dele. Era tão maior do que eles que se viam reduzidos ao silêncio. Tinham-se encontrado e em seu encontro confundia-se o impulso das inumeráveis folhazinhas de erva, os turbilhões das estrelas". Lady Chatterley e Mellors alcançam as mesmas alegrias cósmicas: misturando-se um a outro, misturam-se às árvores, à luz, à chuva. Lawrence desenvolveu amplamente essa doutrina na Defesa de Lady Chatterley: "O casamento não passa de uma ilusão, se não é duradouro e radicalmente fálico, se não se liga ao sol e à terra, à lua, às estrelas e aos planetas, ao ritmo dos dias e ao ritmo dos meses, ao ritmo das estações, dos anos, dos lustros e dos séculos. O casamento não é nada, se não se alicerça numa correspondência de sangue. Porque o sangue é a substância da alma". "O sangue do homem e da mulher são dois rios eternamente diferentes que não se podem misturar." Eis por que esses rios envolvem com seus meandros a totalidade da vida. "O falo é um volume de sangue que enche o vale de sangue da mulher. O poderoso rio de sangue masculino envolve em sua última profundidade o grande rio do sangue feminino... no entanto nenhum dos dois rompe suas comportas. É a comunhão mais perfeita... e é um dos maiores mistérios." Essa comunhão é um milagroso enriquecimento; mas exige que as pretensões da "personalidade" sejam abolidas. Quando as personalidades procuram atingir-se sem se renegar, como acontece comumente na civilização moderna, a tentativa é fadada ao malogro. Há então uma sexualidade "pessoal, lívida, fria, nervosa, poética" que é dissolvente para a corrente vital de cada um. Os amantes tratam-se como instrumentos, o que engendra o ódio entre eles: assim ocorre entre Lady Chatterley e Michaelis; permanecem encerrados em sua subjetividade; podem conhecer uma febre análoga à que dá o álcool ou o ópio, mas que é sem objeto: não descobrem a realidade do outro; não chegam a nada. Lawrence teria condenado Costals sem apelo. Pintou em Gérard, de Mulheres Amorosas, um desses machos orgulhosos e egoístas; e Gérard é, em grande parte, responsável por esse inferno em que se precipita com Gudrun. Cerebral, obstinado, compraz-se na afirmação vazia de seu eu e retesa-se contra a vida; pelo prazer de domar uma égua fogosa, mantém-na encostada a uma cerca por trás da qual um trem passa ruidosamente; ensanguenta-lhe os flancos rebeldes e embriaga-se com seu próprio poder. Essa vontade de domínio avilta a mulher contra a qual se exerce; fraca, ei-la transformada em escrava. Gérard debruça-se sobre Minette: "Seu olhar elementar de escrava violentada, cuja razão de ser é ser perpetuamente violentada, fazia os nervos de Gérard vibrarem... A única vontade era a dele; ela era a substância passiva dessa vontade". Eis uma soberania miserável; se a mulher não passa de uma substância passiva, o que o homem domina não é nada. Ele pensa possuir, enriquecer-se: é uma ilusão. Gérard aperta Gudrun nos braços: "Ela era a substância rica e adorável do seu ser. . . Ela esvaíra-se nele e ele atingia a perfeição". Mas logo que a deixa, torna a encontrar-se só e vazio. E, no dia seguinte, ela não comparece ao encontro marcado. Se a mulher é forte, a pretensão do macho nela suscita uma pretensão simétrica; fascinada e rebelde, faz-se masoquista e sádica alternativamente. Gudrun sente-se transtornada e perturbada quando vê Gérard apertar entre as coxas os flancos da égua assustada; mas perturbava-se também quando a ama de Gérard lhe conta que outrora "ela lhe beliscava a bundinha". A arrogância masculina exaspera as resistências femininas. Enquanto Ursule é vencida e salva pela pureza sexual de Bikrin, como Lady Chatterley pela do guarda florestal, Gérard arrasta Gudrun para uma luta sem saída. Certa noite, infeliz, alquebrado por um luto, entrega-se aos braços dela. "Ela era o grande banho de vida, ele a adorava. Ela era a mãe e a substância de todas as coisas. A emanação milagrosa e doce de seu seio de mulher invadia-lhe o cérebro ressequido e doente como uma ninfa reconfortante, como o fluxo calmante da própria vida, perfeito como se ele se banhasse de novo no seio materno." Nessa noite, ele pressente o que poderia ser uma comunhão com a mulher; mas é demasiado tarde; sua felicidade está viciada, pois Gudrun não se acha realmente presente. Deixa Gérard dormir sobre o ombro, mas permanece acordada, impaciente, separada. É o castigo do indivíduo em luta consigo mesmo; não pode, sozinho, romper a solidão: erguendo as barreiras do eu, ergueu as do Outro, não os alcançará nunca mais. No fim, Gérard morre, morto por Gudrun e por si mesmo.

Nenhum sexo portanto se apresenta inicialmente como privilegiado. Nenhum é sujeito. Assim como não é uma presa, não é a mulher um simples pretexto. Malraux, no Prefácio ao Amante de Lady Chatterley, observa que para Lawrence não basta, como basta ao hindu, que a mulher seja a oportunidade de um contato com o infinito, à maneira, por exemplo, de uma paisagem: seria fazer dela, de outro modo, um objeto. Ela é tão real quanto o homem; é a comunhão real que cumpre alcançar. Por isso é que os heróis aprovados por Lawrence exigem muito mais do amante do que do corpo: Paul não aceita que Myriam se entregue a ele por um terno sacrifício; Bikrin não quer que Ursule se restrinja a buscar prazer em seus braços; fria ou ardente, a mulher que permanece encerrada em si mesma deixa o homem com sua solidão: ele deve rechaçá-la. É preciso que ambos se entreguem de corpo e alma. Se esse dom se realizou, eles devem continuar fiéis para sempre. Lawrence é partidário do casamento monógamo. Só existe busca de variedade quando se interessa pela particularidade dos seres: mas o casamento fálico é baseada na generalidade. Quando o circuito virilidade-feminilidade se estabelece, nenhum desejo de mudança é concebível: é um circuito perfeito, fechado em si, definitivo.




continua...
262

_________________



O SEGUNDO SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR

Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.

Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.

Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.


4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES



______________________




Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.

No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.



________________________


Leia também:





O Segundo Sexo - 35. Fatos e Mitos: A hesitação do macho entre o medo e o desejo

O Segundo Sexo - 36. Fatos e Mitos: "Está cheio de teia de aranha lá dentro..."

O Segundo Sexo - 37. Fatos e Mitos: a masturbação é considerada um perigo e um pecado

O Segundo Sexo - 38. Fatos e Mitos: Mulher! És a porta do diabo

O Segundo Sexo - 39. Fatos e Mitos: A Mãe

O Segundo Sexo - 40. Fatos e Mitos: A Alma e a Ideia

O Segundo Sexo - 41. Fatos e Mitos: ... a expressão "ter uma mulher"...

O Segundo Sexo - 42. Fatos e Mitos: A mãe, a noiva fiel, a esposa paciente

O Segundo Sexo - 43. Fatos e Mitos: Montherlant ou o Pão do Nojo

O Segundo Sexo - 44. Fatos e Mitos: Montherlant ou o Pão do Nojo (2)

O Segundo Sexo - 44. Fatos e Mitos: Montherlant ou o Pão do Nojo (3)

O Segundo Sexo - 45. Fatos e Mitos: D. H. Lawrence ou o orgulho fálico (2)


Nenhum comentário:

Postar um comentário