sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Pedagogia do Oprimido - Ninguém Liberta Ninguém, Ninguém se Liberta Sozinho (6)

Paulo Freire





“educação como prática da liberdade”:
alfabetizar é conscientizar 






AOS ESFARRAPADOS DO MUNDO 
E AOS QUE NELES SE 
DESCOBREM E, ASSIM 
DESCOBRINDO-SE, COM ELES 
SOFREM, MAS, SOBRETUDO, 
COM ELES LUTAM. 




1. Justificativa da «pedagogia do oprimido» 


NINGUÉM LIBERTA NINGUÉM, NINGUÉM SE LIBERTA SOZINHO: OS HOMENS SE LIBERTAM EM COMUNHÃO  




É este caráter de dependência emocional e total dos oprimidos que os pode levar a manifestações que Fromm chama de necrófilas. De destruição da vida. Da sua ou da do outro, oprimido também. 

Somente quando os oprimidos descobrem, nitidamente, o opressor, e se engajam na luta organizada por sua libertação, começam a crer em si mesmos, superando, assim, sua “conivência” com o regime opressor. Se esta descoberta não pode ser feita em nível puramente intelectual, mas da ação, o que nos parece fundamental, é que esta não se cinja a mero ativismo, mas esteja associada a sério empenho de reflexão, para que seja práxis.

O diálogo critico e libertador, por isto mesmo que supõe a ação, tem de ser feito com os oprimidos, qualquer que seja o grau em que esteja a luta por sua libertação. Não um diálogo às escâncaras, que provoca a fúria e a repressão maior do opressor.

O que pode e deve variar, em função das condições históricas, em função do nível de percepção da realidade que tenham os oprimidos é o conteúdo do diálogo. Substituí-lo pelo anti-diálogo, pela sloganização, pela verticalidade, pelos comunicados é pretender a libertação dos oprimidos com instrumentos da “domesticação”. Pretender a libertação deles sem a sua reflexão no ato desta libertação é transformá -los em objeto que se devesse salvar de um incêndio. É fazê-los cair no engodo populista e transformá -los em massa de manobra.

Os oprimidos, nos vários momentos de sua libertação, precisam reconhecer-se como homens, na sua vocação ontológica e histórica de Ser Mais. A reflexão e a aço se impõem, quando não se pretende, erroneamente, dicotomizar o conteúdo da forma histórica de ser do homem.

Ao defendermos um permanente esforço de reflexão das oprimidos sobre suas condições concretas, não estamos pretendendo um jogo divertido em nível puramente intelectual. Estamos convencidos, pelo contrário, de que a reflexão, se realmente reflexão, conduz à prática.

Por outro lado, se o momento já é o da ação, esta se fará autêntica práxis se o saber dela resultante se faz objeto da reflexão critica. Neste sentido, é que a práxis constitui a razão nova da consciência oprimida e que a revolução, que inaugura o momento histórico desta razão, não possa encontrar viabilidade fora dos níveis da consciência oprimida.

A não ser assim, a aço é puro ativismo.

Desta forma, nem um diletante jogo de palavras vazias – quebra-cabeça intelectual – que, por não ser reflexão verdadeira, não conduz à ação, nem ação pela ação. Mas ambas, ação e reflexão, como unidade que não deve ser dicotomizada.

Para isto, contudo, é preciso que creiamos nos homens oprimidos. Que os vejamos como capazes de pensar certo também.

Se esta crença nos falha, abandonamo s a ideia ou não a temos, do diálogo, da reflexão, da comunicação e caiamos nos slogans, nos comunicados, nos depósitos, no dirigismo. Esta é uma ameaça contida nas inautênticas adesões à causa da libertação dos homens.

A ação política junto aos oprimidos tem de ser, no fundo, "ação cultural” para a liberdade, por isto mesmo, ação com eles. A sua dependência emocional, fruto da situação concreta de dominação em que se acham e que gera também a sua visão inautêntica do mundo, não pode ser aproveitada a não ser pelo opressor. Este é que se serve desta dependência para criar mais dependência.

A ação libertadora, pelo contrário, reconhecendo esta dependência dos oprimidos como ponto vulnerável, deve tentar, através da reflexão e da ação, transformá-la em independência. Esta, porém, não é doação que uma liderança, por mais bem intencionada que seja, lhes faça. Não podemos esquecer que a libertação dos oprimidos é libertação de homens e não de “coisas”. Por isto, se não é auto libertação – ninguém se liberta sozinho, também não é libertação de uns feita por outros.

Não se pode realizar com os homens pela “metade” [1]. E, quando o tentamos, realizamos a sua deformação, Mas, deformados já estando, enquanto oprimidos, não pode a ação de sua libertação usar o mesmo procedimento empregado para sua deformação.


[1] Referimo -nos à reduço dos oprimidos à condiço de meros objetos da aço libertadora que, assim, é realizada mais sobre e para eles do que com eles, como deve ser.


O caminho, por isto mesmo, para um trabalho de libertação a ser realizado pela liderança revolucionário não é a “propaganda libertadora”. Não está no mero ato de “depositar” a crença da liberdade nos oprimidos, pensando conquistar a sua confiança, mas no dialogar com eles.

Precisamos estar convencidos de que o convencimento dos oprimidos de que devem lutar por sua libertação não é doação que lhes faça a liderança revolucionária, mas resultado de sua conscientização.

É necessário que a liderança revolucionária descubra esta obviedade: que seu convencimento da necessidade de lutar, que constitui uma dimensão indispensável do saber revolucionário, não lhe foi doado por ninguém, se é autêntico. Chegou a este saber, que não é algo parado ou possível de ser transformado em conteúdo a ser depositado nos outros, por um ato total, de reflexão e de ação.

Foi a sua inserção lúcida na realidade, na situação histórica, que a levou à crítica desta mesma situação e ao ímpeto de transformá-la.

Assim também é necessário que os oprimidos, que hão se engajam na luta sem estar convencidos e, se não se engajam, retiram as condições para ela, cheguem, como sujeitos, e não como objetos, a este convencimento. É preciso que também se insiram criticamente na situação em que se encontram e de que se acham marcados. E isto a propaganda não faz. Se este convencimento, sem o qual, repitamos, não é possível a luta, é indispensável à liderança revolucionária, que se constitui a partir dele, o é também aos oprimidos. A não ser que se pretenda fazer para eles a transformação e não com eles – somente como nos parece verdadeira esta transformação [2].


[2] No Capítulo IV voltaremos detidamente a estes pontos.


Ao fazermos estas considerações, outra coisa não estamos tentando senão defender o caráter eminentemente pedagógico da revolução.

Se os líderes revolucionários de todos os tempos afirmam a necessidade do convencimento das massas oprimidas para que aceitem a luta pela libertação – o que de resto é óbvio – reconhecem implicitamente o sentido pedagógico desta luta. Muitos, porém, talvez por preconceitos naturais e explicáveis contra a pedagogia, terminam usando, na sua ação, métodos que são empregados na “educação” que serve ao opressor. Negam a ação pedagógica no processo de libertação, mas usam a propaganda para convencer...

Desde o começo mesmo da luta pela humanização, pela superação da contradição opressor-oprimidos, é preciso que eles se convençam de que esta luta exige deles, a partir do momento em que a aceitam, a sua responsabilidade total. É que esta luta não se justifica apenas em que passem a ter liberdade para comer, mas “liberdade para criar e construir, para admirar e aventurar-se”. Tal liberdade requer que o indivíduo seja ativo e responsável, não um escravo nem uma peça bem alimentada da máquina. Não basta que os homens não sejam escravos; se as condições sociais fomentam a existência de autômatos, o resultado não é o amor à vida, mas o amor à morte. Os oprimidos que se "formam” no amor à morte [3], que caracteriza o clima da opressão, devem encontrar, na sua luta, o caminho do amor à vida, que não está apenas no comer mais, se bem que implique também nele e dele não possa prescindir.


[3] Erich Fromn, op. cit., pp. 54-5.


É como homens que os oprimidos têm de lutar e não como "coisas”. É precisamente porque reduzidos a quase “coisas” , na relação de opressão em que estão, que se encontram destruídos. Para reconstruir- se é importante que ultrapassem o estado de quase “coisas”. Não podem comparecer à luta como quase "coisas”, para depois ser homens. É radical esta exigência. A ultrapassagem deste estado, em que se destroem, para o de homens, em que se reconstroem, não é “a posteriori”. A luta por esta reconstrução começa no auto- reconhecimento de homens destruídos.

A propaganda, o dirigismo, a manipulação, corno armas da dominação, não podem ser instrumentos para esta reconstrução [4].


[4] No Capítulo IV voltaremos pormenorizadamente a este tema. 


Não há outro caminho senão o da prática de uma pedagogia humanizadora, em que a liderança revolucionária, em lugar de se sobrepor aos oprimidos e continuar mantendo -os como quase “coisas”, com eles estabelece uma relação dialógica permanente.

Prática pedagógica em que o método deixa de ser, como salientamos no nosso trabalho anterior, instrumento do educador (no caso, a liderança revolucionária), com o qual manipula os educandos (no caso, os oprimidos) porque é já a própria consciência.

“O método é, na verdade (diz o professor Álvaro Vieira Pinto), a forma exterior e materializada em atos, que assume a propriedade fundamental da consciência: a sua intencionalidade. O próprio da consciência é estar com o mundo e este procedimento é permanente e irrecusável. Portanto, a consciência é, em sua essência, um ‘caminho para’ algo que não é ela, que está fora dela, que a circunda e que ela apreende por sua capacidade ideativa. Por definição, continua o professor brasileiro, a consciência é, pois, método, entendido este no seu sentido de máxima generalidade. Tal é a raiz do método, assim como tal é a essência, da consciência, que só existe enquanto faculdade abstrata e metódica.” [5]


[5] Álvaro Vieira Pinto, Ciência e Existência, R. J., Paz e Terra, 1986, 2ª ed. Deixamos aqui o nosso agradecimento ao mestre brasileiro por nos haver permitido citá- lo antes da publicação de sua obra. Consideramos o trecho citado de grande importância para a compreensão de uma pedagogia da problematização, que estudaremos no capítulo seguinte. 

Porque assim é, a educação a ser praticada pela liderança revolucionária se faz co-intencionalidade.

Educador e educandos (liderança e massas), co-intencionados à realidade, se encontram numa tarefa em que ambos são sujeitos no ato, não só de desvelá- la e, assim, criticamente conhecê-la, mas também no de re-criar este conhecimento. 

Ao alcançarem, na reflexão e na ação em comum, este saber da realidade, se descobrem como seus refazedores permanentes.

Deste modo, a presença das oprimidos na busca de sua libertação, mais que pseudo-participação, é o que deve ser: engajamento.



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PAULO FREIRE
PEDAGOGIA DO OPRIMIDO
23ª Reimpressão
PAZ E TERRA

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Leia também:

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Pedagogia do Oprimido - A Situação concreta de Opressão e os Opressores (4)

Pedagogia do Oprimido - A Situação concreta de Opressão e os Oprimidos (5)

Pedagogia do Oprimido - 2. A concepção «bancária» da educação como instrumento da opressão.

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© Paulo Freire, 1970
Capa
Isabel Carballo
Revisão
Maria Luiza Simões e Jonas Pereira dos Santos
(Preparaço pelo Centro de Catalog aço -na-fonte do
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ)



Freire, Paulo

F934p      Pedagogia do oprimido, 17ª. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1987

(O mundo, hoje, v.21)

1.   Alfabetizaço – Métodos 2. Alfabetizaço – Teoria I. Título II. Série

CDD-374.012
-371.332

77-0064                          CDD-371.3:376.76

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Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967; e Pedagogia do Oprimido

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